quinta-feira, 27 de junho de 2019

Crítica | O Mau Exemplo de Cameron Post

Um ‘coming of age movie’ reativo

Em pleno 2019, é duro perceber a importância de filmes como Boy Erased (leia a nossa crítica aqui) e O Mau Exemplo de Cameron Post. Num momento em que uma retrógrada corrente conservadora tem ganhado força em algumas das grandes nações do mundo, títulos como os citados acima chegam para colocar os pingos nos is, para de maneira distintas questionar as perigosas consequências em torno do absurdo (e ultimamente tão comentado) processo de “cura gay”. Enquanto Boy Erased, sob a cínica batuta de Joel Edgerton, escancara com espanto o repressivo ‘modus operandi’ em torno desta terapia homossexual, O Mau Exemplo de Cameron Post toca em questões ainda mais complexas ao invadir a intimidade de uma convicta adolescente às avessas com as imposições de um ambiente que ele não gostaria de fazer parte. Numa proposta mais passional, o afetuoso longa dirigido por Desiree Akhavan transita por questões naturais ao universo ‘teen’ ao se concentrar no processo de descoberta sexual da protagonista e na sua luta para não sucumbir ao peso da culpa. Por mais que, como esperado, o impositivo contexto religioso esteja no centro da reflexão aqui defendida, a realizadora enriquece a sua crítica ao nunca reduzir a personagem a sua opção sexual, flertando com elementos do romance e dos populares ‘coming of age movie’ ao entregar um retrato mais completo (e humano) sobre uma das mais complexas fases de nossas vidas. 



Uma proposta levemente naturalista que já fica bem clara nos primeiros minutos de projeção. Se em Boy Erased uma das minhas críticas foi para o desdém do argumento para com os anseios sexuais do protagonista, em O Mau Exemplo de Cameron Post Desiree Akhavan não titubeia em estabelecer uma jovem consciente daquilo que ela queria. Com dinamismo, estilo e muita intimidade, a realizadora trata com uma bem-vinda franqueza os anseios afetivos da sua descolada personagem. Em pouco menos de cinco minutos conhecemos a cativante Cameron (Chloe Grace Moretz). Ela é jovem, bonita, popular. A sua relação com a igualmente radiante Cooley (Quinn Shepard) é afetuosa, terna e quente. A felicidade das duas era evidente. O clipe inicial ao som de “Anyone Who Knows What Love Is”, inclusive, poderia ser facilmente o desfecho de um tradicional ‘coming of age movie’, com direito a tão esperada sequência da formatura e uma “noite de amor” no banco de trás de um carro. Quer dizer, isso num cenário diferente do proposto pelo longa. Numa solução perspicaz, o que era para ser o cinematográfico fim de uma história de amor e descobertas, no entanto, ganha contornos bem mais densos quando o namorado de uma delas flagra as duas transando no estacionamento. Acuada, Cameron é obrigada pela sua religiosa tia a se “matricular” numa instituição conhecida por propor a terapia de conversão sexual. Sem ter a quem recorrer, ela decide então socializar com os demais internos, desenvolvendo uma inesperada relação de amizade e companheirismo enquanto tenta superar a repressão, os medos e as dúvidas geradas neste cruel processo.


Enquanto se concentra na figura de Cameron, O Mau Exemplo de Cameron Post é uma obra praticamente irretocável. Sob um filtro humano, Desiree Akhavan é cuidadosa ao revelar a reação desta convicta jovem as pressões impostas neste novo cenário. Inserida num ambiente bem mais funcional do que o revelado por Boy Erased, a jovem, num primeiro momento, esbanja cinismo ao não parecer se afetar pelos ensinamentos ali defendidos. Com um olhar de deboche natural, Chloe Grace Moretz cria uma protagonista convicta, uma jovem rebelde, incapaz de se submeter a algo que não acredita. Situado nos turbulentos anos 1990, uma época de reflexões mais profundas acerca das instituições tradicionais, o argumento assinado pela própria diretora é astuto ao expor tanto as certezas da jovem, quanto o seu lado mais questionador. Cameron não parece disposta a se aceitar como uma “pecadora”, ao enxergar a sua opção sexual como algo negativo. À medida que a trama avança, entretanto, Akhavan se debruça sobre a intimidade da personagem ao ir mais a fundo. Obrigada a conviver com uma pretensa sensação de culpa, absorvida com muito mais peso por alguns dos seus fragilizados colegas, Cameron naturalmente sucumbe. Existe dúvida nela. Existe tristeza. Existe amargor. Existe apetite. Muito “apetite”. Dona de um carisma natural, Moretz interioriza os gradativos conflitos da sua personagem com enorme intensidade, conseguindo reagir a rotina de julgamentos e imposições religiosas sem nunca deixar de ser uma adolescente. Sem querer revelar muito, a sequência em que a personagem tenta provocar a sua libido pensando em homens é trágica e ao mesmo tempo cômica, tendo muito a dizer sobre as perigosas sequelas causadas naquele internato. 


No momento em que resolve ampliar o escopo da obra, porém, O Mau Exemplo de Cameron Post vacila ao ofuscar demais os complexos personagens de apoio. Embora trate melhor os coadjuvantes do que, por exemplo, o dramático Boy Erased, Desiree Akhavan peca ao dar um espaço maior aos tipos mais convictos. Após introduzi-los numa montagem espertíssima, a realizadora se agarra demais na jornada de amadurecimento de Cameron ao destacar aqueles que obviamente virariam os seus amigos. Tanto a radiante Jane (Sasha Lane), quanto o introspectivo Adam (Forrest Goodluck) se revelam tipos divertidos e cativantes. O entrosamento entre eles é natural. Ambos, no entanto, possuem arcos bem mais retilíneos do que alguns dos demais personagens de apoio, entre eles o complexo Mark (Owen Campbell, excelente), o raivoso Dane (Christopher Dylan White) e principalmente o errático Reverendo Rick. Por mais que os três ganhem o espaço necessário para se destacar, fica nítido que eles tinham mais a acrescentar quando o assunto é a crítica envolvendo a ineficiência deste processo de “cura gay”. O “convertido” irmão da responsável pela instalação (Jennifer Ehle), em especial, confere uma subaproveitada aura inocente a trama, algo que, verdade seja dita, fica bem claro na desconcertante cena final do personagem. Ponto para a doce e incômoda performance do talentoso Joel Gallagher Jr. A impressão que fica, na verdade, é que Akhavan se repete quanto a exploração dos anseios sexuais de Cameron, sacrificando por consequência o tempo de tela de algumas importantes peças do seu roteiro. Se por um lado, por exemplo, a realizadora acerta em cheio ao valorizar a curiosa relação entre Cameron e a sua reprimida colega de quarto Erin (Emily Skeggs), por outro ela derrapa quando o assunto é a ausente namorada Cooley, encontrando nela (e no clichê do coração partido) as motivações para algumas das reações de maior fragilidade da protagonista.


Na transição para o último ato, felizmente, O Mau Exemplo de Cameron Post contorna estes pequenos deslizes com um desfecho intenso, dramático e genuinamente libertador. Mais do que simplesmente respeitar a aura indômita e\ou desequilibrada dos seus principais personagens, Desiree Akhavan é enfática ao expor o doloroso impacto deste processo de conversão na identidade dos ali presentes. Todos são modificados. Uns saem feridos, outros verdadeiramente quebrados e alguns (apenas alguns) com a consciência tranquila que não existe mal nenhum na sua opção sexual. Uma mensagem poderosa que, graças a direção estilosa e a abordagem natural proposta pela obra, tem tudo para encontrar o seu público alvo. Numa época de ignorância e retrocessos culturais\sociais\políticos, O Mau Exemplo de Cameron Post surge, em suma, como um relato indispensável sobre o nefasto efeito da repressão sentimental na personalidade de um jovem em formação.

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