Em pleno 2019, é duro perceber a
importância de filmes como Boy Erased (leia a nossa crítica aqui) e O Mau
Exemplo de Cameron Post. Num momento em que uma retrógrada corrente
conservadora tem ganhado força em algumas das grandes nações do mundo, títulos
como os citados acima chegam para colocar os pingos nos is, para de maneira
distintas questionar as perigosas consequências em torno do absurdo (e
ultimamente tão comentado) processo de “cura gay”. Enquanto Boy Erased, sob a
cínica batuta de Joel Edgerton, escancara com espanto o repressivo ‘modus
operandi’ em torno desta terapia homossexual, O Mau Exemplo de Cameron Post
toca em questões ainda mais complexas ao invadir a intimidade de uma convicta
adolescente às avessas com as imposições de um ambiente que ele não gostaria de
fazer parte. Numa proposta mais passional, o afetuoso longa dirigido por Desiree
Akhavan transita por questões naturais ao universo ‘teen’ ao se concentrar no
processo de descoberta sexual da protagonista e na sua luta para não sucumbir
ao peso da culpa. Por mais que, como esperado, o impositivo contexto religioso
esteja no centro da reflexão aqui defendida, a realizadora enriquece a sua crítica
ao nunca reduzir a personagem a sua opção sexual, flertando com elementos do
romance e dos populares ‘coming of age movie’ ao entregar um retrato mais
completo (e humano) sobre uma das mais complexas fases de nossas vidas.
Uma proposta levemente naturalista
que já fica bem clara nos primeiros minutos de projeção. Se em Boy Erased uma
das minhas críticas foi para o desdém do argumento para com os anseios sexuais
do protagonista, em O Mau Exemplo de Cameron Post Desiree Akhavan não titubeia
em estabelecer uma jovem consciente daquilo que ela queria. Com dinamismo,
estilo e muita intimidade, a realizadora trata com uma bem-vinda franqueza os
anseios afetivos da sua descolada personagem. Em pouco menos de cinco minutos
conhecemos a cativante Cameron (Chloe Grace Moretz). Ela é jovem, bonita, popular.
A sua relação com a igualmente radiante Cooley (Quinn Shepard) é afetuosa,
terna e quente. A felicidade das duas era evidente. O clipe inicial ao som de “Anyone
Who Knows What Love Is”, inclusive, poderia ser facilmente o desfecho de um
tradicional ‘coming of age movie’, com direito a tão esperada sequência da
formatura e uma “noite de amor” no banco de trás de um carro. Quer dizer, isso
num cenário diferente do proposto pelo longa. Numa solução perspicaz, o que era
para ser o cinematográfico fim de uma história de amor e descobertas, no
entanto, ganha contornos bem mais densos quando o namorado de uma delas flagra
as duas transando no estacionamento. Acuada, Cameron é obrigada pela sua
religiosa tia a se “matricular” numa instituição conhecida por propor a terapia
de conversão sexual. Sem ter a quem recorrer, ela decide então socializar com
os demais internos, desenvolvendo uma inesperada relação de amizade e
companheirismo enquanto tenta superar a repressão, os medos e as dúvidas
geradas neste cruel processo.
Enquanto se concentra na figura
de Cameron, O Mau Exemplo de Cameron Post é uma obra praticamente irretocável.
Sob um filtro humano, Desiree Akhavan é cuidadosa ao revelar a reação desta
convicta jovem as pressões impostas neste novo cenário. Inserida num ambiente
bem mais funcional do que o revelado por Boy Erased, a jovem, num primeiro
momento, esbanja cinismo ao não parecer se afetar pelos ensinamentos ali
defendidos. Com um olhar de deboche natural, Chloe Grace Moretz cria uma
protagonista convicta, uma jovem rebelde, incapaz de se submeter a algo que não
acredita. Situado nos turbulentos anos 1990, uma época de reflexões mais profundas
acerca das instituições tradicionais, o argumento assinado pela própria
diretora é astuto ao expor tanto as certezas da jovem, quanto o seu lado mais
questionador. Cameron não parece disposta a se aceitar como uma “pecadora”, ao
enxergar a sua opção sexual como algo negativo. À medida que a trama avança,
entretanto, Akhavan se debruça sobre a intimidade da personagem ao ir mais a
fundo. Obrigada a conviver com uma pretensa sensação de culpa, absorvida com
muito mais peso por alguns dos seus fragilizados colegas, Cameron naturalmente
sucumbe. Existe dúvida nela. Existe tristeza. Existe amargor. Existe apetite.
Muito “apetite”. Dona de um carisma natural, Moretz interioriza os gradativos
conflitos da sua personagem com enorme intensidade, conseguindo reagir a rotina
de julgamentos e imposições religiosas sem nunca deixar de ser uma adolescente.
Sem querer revelar muito, a sequência em que a personagem tenta provocar a sua
libido pensando em homens é trágica e ao mesmo tempo cômica, tendo muito a
dizer sobre as perigosas sequelas causadas naquele internato.
No momento em que resolve ampliar
o escopo da obra, porém, O Mau Exemplo de Cameron Post vacila ao ofuscar demais
os complexos personagens de apoio. Embora trate melhor os coadjuvantes do que,
por exemplo, o dramático Boy Erased, Desiree Akhavan peca ao dar um espaço maior
aos tipos mais convictos. Após introduzi-los numa montagem espertíssima, a
realizadora se agarra demais na jornada de amadurecimento de Cameron ao destacar
aqueles que obviamente virariam os seus amigos. Tanto a radiante Jane (Sasha
Lane), quanto o introspectivo Adam (Forrest Goodluck) se revelam tipos
divertidos e cativantes. O entrosamento entre eles é natural. Ambos, no entanto,
possuem arcos bem mais retilíneos do que alguns dos demais personagens de
apoio, entre eles o complexo Mark (Owen Campbell, excelente), o raivoso Dane (Christopher
Dylan White) e principalmente o errático Reverendo Rick. Por mais que os três
ganhem o espaço necessário para se destacar, fica nítido que eles tinham mais a
acrescentar quando o assunto é a crítica envolvendo a ineficiência deste
processo de “cura gay”. O “convertido” irmão da responsável pela instalação (Jennifer Ehle), em especial, confere uma
subaproveitada aura inocente a trama, algo que, verdade seja dita, fica bem
claro na desconcertante cena final do personagem. Ponto para a doce e incômoda
performance do talentoso Joel Gallagher Jr. A impressão que fica, na verdade, é
que Akhavan se repete quanto a exploração dos anseios sexuais de Cameron, sacrificando
por consequência o tempo de tela de algumas importantes peças do seu roteiro.
Se por um lado, por exemplo, a realizadora acerta em cheio ao valorizar a
curiosa relação entre Cameron e a sua reprimida colega de quarto Erin (Emily
Skeggs), por outro ela derrapa quando o assunto é a ausente namorada Cooley, encontrando
nela (e no clichê do coração partido) as motivações para algumas das reações de
maior fragilidade da protagonista.
Na transição para o último ato, felizmente, O Mau Exemplo de Cameron
Post contorna estes pequenos deslizes com um desfecho intenso, dramático e
genuinamente libertador. Mais do que simplesmente respeitar a aura indômita
e\ou desequilibrada dos seus principais personagens, Desiree Akhavan é
enfática ao expor o doloroso impacto deste processo de conversão na identidade
dos ali presentes. Todos são modificados. Uns saem feridos, outros
verdadeiramente quebrados e alguns (apenas alguns) com a consciência tranquila
que não existe mal nenhum na sua opção sexual. Uma mensagem poderosa que,
graças a direção estilosa e a abordagem natural proposta pela obra, tem tudo
para encontrar o seu público alvo. Numa época de ignorância e retrocessos
culturais\sociais\políticos, O Mau Exemplo de Cameron Post surge, em suma, como
um relato indispensável sobre o nefasto efeito da repressão sentimental na
personalidade de um jovem em formação.
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