sábado, 11 de maio de 2019

Crítica | Boy Erased: A Verdade Anulada

O suprassumo da ignorância

É inadmissível que em pleno 2019 filmes como Boy Erased: A Verdade Anulada sejam tão importantes. É inadmissível que em pleno 2019 pessoas acreditem\indiquem terapias de reorientação sexual. É inadmissível que em pleno 2019 alguns julguem um caráter de um ser humano pela sua opção sexual. É inadmissível que em pleno 2019 obras tão urgentes assim não ganhem o espaço que deveriam no circuito nacional. Lançado diretamente via ‘streaming’ no Brasil, devido, entre outros motivos, o fraco retorno financeiro da produção em solo norte-americano, o longa dirigido por Joel Edgerton (O Presente) é enfático ao questionar a lógica por trás daqueles que defendem este perigoso “processo” de terapia comportamental. Embora cuidadoso ao respeitar as crenças de alguns dos seus personagens, em especial as retrógradas figuras paternas, o realizador consegue ir além do polêmico tema proposto ao refletir sobre o impacto da repressão religiosa na rotina de jovens em busca da autoaceitação, compensando os evidentes desníveis narrativos ao se insurgir contra o preconceito escondido no discurso dogmático. 



Jared (Lucas Hedges) era um garoto comum. Um bom filho, popular no colégio, talentoso, respeitador. Um orgulho para os seus pais, o conservador pastor Marshall (Russel Crowe) e a submissa dona de casa Nancy (Nicole Kidman). Todo este status, porém, cai por terra quando ele se vê obrigado a assumir que era gay. Algo praticamente imperdoável no ambiente em que Jared cresceu. Com base nesta sucinta e reconhecível premissa, Boy Erased acerta em cheio ao tratar as imposições religiosas (e não a religião em si) como parte central do problema. O que era para confortar é transformado num instrumento de perseguição, de repressão. Sem nunca questionar a integridade e as boas intenções dos pais, Joel Edgerton esbanja maturidade ao capturar a complexidade do cenário em questão, ao não “vilanizar” a fé dos personagens. Enquanto Marshall surge como o intransigente da equação, o homem incapaz de aceitar a ideia de ter um filho homossexual, de ter um filho supostamente pecador aos olhos de Deus, a amorosa Nancy e o próprio Jared (em menor escala) também não parecem lidar bem com a situação em si. Por mais que, num primeiro momento, a figura materna soe mais apática do que deveria, aos poucos o argumento assinado pelo próprio diretor é cuidadoso ao conferir nuances mais humanas a ela. Embora assustada e despreparada para lidar com a revelação, Nancy, gradativamente, percebe o sofrimento do seu querido filho, passa a ter dúvidas, questionar o abominável processo que ele foi obrigado a se submeter. Maior que a sua fé em Deus é o seu amor por Jared, algo que, combinado com o seu instinto materno, faz de Nancy a personagem mais fascinante do longa.


Outro ponto que agrada, e muito, é a maneira com que Boy Erased olha para a fé de Jared e para a sua relação com a religião. Ele cresceu em um ambiente conservador, viu a sua identidade ser moldada seguindo os preceitos cristãos, se acostumou a ver a homossexualidade ser tratada como um pecado por “homens de Deus”. Consciente do perigo por trás deste tipo de repressão religiosa, Joel Edgerton é cuidadoso ao investigar também os conflitos mais íntimos do introspectivo protagonista, os obstáculos impostos por ele próprio na sua busca por autoafirmação. Ao confiar na fé dos personagens sem julgamentos, o diretor mostra o quão difícil é para um(a) jovem e o seu núcleo familiar se insurgir contra um distorcido dogma religioso. Jared só queria ser feliz, ser aceito, se relacionar com aqueles que o atraíssem. Por trás de sentimentos tão naturais, entretanto, existia a culpa, o medo de ir contra a algo tão estimado, de decepcionar as pessoas que mais ama. Mais do que simplesmente escancarar o absurdo em torno deste tipo de discurso e o preconceito escondido nele, Edgerton se mantém fiel aos fatos ao se preocupar com o recomeço, com a quebra dos tabus, com a chance de mudar um retrógrado pensamento. Mesmo subaproveitado pelo argumento durante boa parte da trama, o pai interpretado com intensidade por Russel Crowe ganha uma bem-vinda relevância dentro do último ato, comprovando que, no final das contas, alguns laços são bem mais fortes do um revoltante lugar comum religioso.


O melhor e o pior de Boy Erased, entretanto, está na maneira com que Joel Edgerton expõe os segredos por trás destas instituições que prometem “curar” a homossexualidade daqueles que a procuram. Inicialmente, com uma afiada dose de cinismo, o realizador não se contenta em exibir o absurdo ‘modus operandi’ deste lugar. Sob a incrédula perspectiva de Jared, o longa causa um misto de espanto e constrangimento ao tentar entender a bizarra metodologia deles, ao mostrar o vazio, a imposição e a perigosa dinâmica ali praticada. Num primeiro momento, tamanha excentricidade, Edgerton não se furta de explorar a sensação de humor involuntário. Algo que, diga-se de passagem, se reflete também nos personagens situados neste núcleo, entre eles o caricato supervisor Victor Skyes (vivido pelo próprio diretor) e o seu braço direito Brandon (interpretado pelo baixista Flea). Não demora muito, porém, para o longa mostrar o quão hostil poderia ser aquele lugar, o efeito do julgamento e da opressão na identidade daqueles inofensivos jovens. Por mais que o argumento perca algumas oportunidades aqui, personagens como o fechado Cameron (Britton Sear), o agressivo Jon (Xavier Dolan) e a acuada Sarah (Jesse LaTourette) dizem muito mesmo com poucas palavras, reforçando que a situação do protagonista estava longe de ser a pior entre os presentes. Infelizmente, as feridas causadas pela repressão sexual podem ser ainda mais profundas do que as experimentadas por Jared. O que fica bem claro, por exemplo, na bizarra sequência de “exorcismo”, um take de raro desconforto que só atesta o perigo por trás destes discursos. Falas retrógradas, preconceituosas e carregadas de ódio que, em pleno 2019, são defendidas de maneira quase que inconsequente por representantes do Estado em muitos países do mundo.


No momento em Boy Erased deveria se colocar como o filme definitivo sobre o tema, porém, Joel Edgerton peca pela falta de pulso ao investigar o passado de Jared e a sua descoberta sexual. Ainda que Lucas Hedges mostre naturalidade ao absorver os dilemas do seu personagem, o misto de culpa, relutância e raiva que passa a tomar conta da sua rotina quando o seu segredo é descoberto, o realizador passa com inegável superficialidade por temas e situações que mereciam maior espaço. Embora ganhem relativa importância em sequências chave da obra, tipos como a impulsiva Chloe (Madelin Clyne) e o abusivo Henry (Joe Alwyn), por exemplo, são repentinamente abandonados pelo script, reduzindo o peso de passagens que só ajudariam a situar melhor a posição de Jared dentro da trama. Além disso, por mais que a fotografia em tons amarelados de Eduard Grau (As Sufragistas) cause um incômodo natural, Edgerton investe num ‘mise en scene’ burocrático e visualmente pouco recompensador, algo frustrante quando comparado com o seu trabalho anterior, o enervante O Presente (2015). Por outro lado, nas sequências mais íntimas, o diretor esbanja maturidade em extrair o máximo dos seus comandados, evitando firulas estéticas e dispersões de qualquer tipo ao se concentrar na força do seu texto. Vide a marcante performance de Nicole Kidman, que, de volta a sua melhor forma após uma série de trabalhos de gosto duvidoso, entrega uma das melhores atuações da sua carreira ao traduzir o processo de aceitação da sua Nancy com muito carisma e delicadeza.


Um relato urgente e impactante, Boy Erased: A Verdade Anulada consegue ir além da importância temática ao se revelar um drama sólido, crítico e determinado a expor as dolorosas feridas causadas pela repressão religiosa. Em pleno século XXI, Joel Edgerton não titubeia em refutar toda e qualquer teoria de “reorientação sexual”, partindo de um cenário familiar reconhecível\funcional para escancarar a ignorância e o preconceito ocultados neste abominável processo de “lavagem cerebral”.


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