segunda-feira, 3 de junho de 2019

Crítica | Blue Jay

Um reencontro doloroso

Sobram adjetivos para definir esta pequena pérola chamada Blue Jay. Apaixonante, verdadeiro, complexo, revigorante, maduro. Um filme cada vez mais raro dentro do megalomaníaco mercado Hollywoodiano. Uma das vozes mais autorais do cinema 'indie' norte-americano, Mark Duplass (e a sua produtora Duplass Brothers) nos presenteia com um exercício cinematográfico inspiradíssimo, um relato nostálgico e naturalista sobre um inesperado reencontro. Sob a refinada batuta de Alex Lehmann, Blue Jay envolve ao acompanhar o reencontro de Jim (Mark Duplass) e Amanda (Sarah Paulson), um casal da juventude que, duas décadas depois, numa coincidência do destino, se "esbarra" novamente em sua pequena cidade natal.

A partir desta premissa simples e honesta, o longa encanta ao propor um comovente estudo de personagem, investigando o impacto do tempo na identidade destas duas diferentes figuras. Numa proposta envolvente e ritmada, Lehmann é cuidadoso ao construir e desconstruir os seus protagonistas, ao estreitar gradativamente um laço desgastado pelo hiato que os separou. O filme começa capturando o desconforto entre os dois. A falta de assunto, a falsa tentativa de se criar uma imagem "bem-sucedida". Algo bem comum neste tipo de reencontro. Aos poucos, porém, a intimidade passa a tomar conta da tela. As máscaras começam a ruir à medida que os dois passam se conectar com os seus respectivos passados, com sentimentos que ficaram adormecidos e\ou esquecidos nos últimos anos. Fazendo um primoroso uso da fotografia em preto e branco, que confere uma beleza indescritível a produção, o realizador é sagaz ao transformar a bucólica pequena cidade como um agente catalisador. Cada cenário parece resgatar algum tipo de lembrança, reacendendo uma chama nostálgica que ajuda a os "despir" perante o público.


Neste cenário pouco a pouco passamos a conhecê-los melhor. O inicialmente rústico Jim, por exemplo, logo se revela um homem sensível e emotivo. Alguém que não titubeia em expor a sua vulnerabilidade e os seus problemas pessoais. Por outro lado, a descomplicada Amanda reluta em falar sobre a sua intimidade, prefere se concentrar no aspecto mais lúdico deste encontro, mas, inebriada por esta volta ao passado, encontra a oportunidade em um velho ombro amigo para conversar sobre aquilo que mais a machuca. Ao longo das imersivas 1 h e 20 min de película, Alex Lehmann explora a liberdade oferecida pelo cinema 'indie' ao tentar entendê-los melhor, ao estabelecer o quão forte foi esse vínculo em sequências ora divertidas e reconfortantes, ora incomodadas e reveladoras. A intimidade entre os dois é nítida. A química entre os expressivos Mark Duplass e Sarah Paulson é magnífica. É possível sentir a (re)conexão entre Jim e Amanda, experimentar o quão marcante foi esta relação do passado. A partir de um 'mise en scene' intimista e revigorante, Lehmann é cuidadoso ao evitar interferir tanto na dinâmica desta "adormecida" relação. Com poucos cortes e muitos planos médios\fechados, o realizador é sutil ao capturar as expressões do casal, ao permitir que os atores improvisem em cena, valorizando as nuances emocionais presente em cena com intensidade e muita realidade. Estamos diante de dois seres humanos comuns, com traumas reais, com frustrações reais, com anseios reais. Curiosamente, entretanto, apesar do viés íntimo e por vezes verborrágico, sempre que possível Lehmann reforça o aspecto imagético da sua obra, extraindo do aprazível cenário interiorano belas imagens e quadros dignos de moldura. O grande trunfo de Blue Jay, porém, está na maneira com que o roteiro decide revelar o impacto do tempo perdido. O foco, aqui, não está somente no presente dos dois, nem tão pouco no passado, mas naquilo que poderia ter acontecido nesta lacuna de duas décadas.


À medida que a noite avança e o álcool começa a "falar" mais alto, Jim e Amanda decidem se reconectar também com o seu "eu" jovem, decidem rever as expectativas de um casal imaturo cheio de sonhos e amor para dar. Por mais que, aos olhos mais críticos, algumas soluções encontradas pelo roteiro possam soar um tanto quanto convenientes, tudo é perdoado quando percebemos a delicadeza de Lehmann em explorar o sentimento de nostalgia. Com maturidade e energia, essa volta ao passado rende sequências de rara intimidade, momentos adoráveis que inteligentemente conduzem a raiz da questão: afinal de contas, o que levou um casal tão apaixonado a se separar? Sem meias palavras, o argumento é incisivo ao mostrar também a face mais "perigosa" deste amistoso reencontro, quebrando assim as expectativas do público na tentativa de lembrar que já era tarde demais para a tomada de algumas decisões. Além disso, numa bem fundamentada reviravolta, velhos "fantasmas" surgem na trama ao longo do emocionante último ato, escancarando o impacto da imaturidade na rotina deste entrosado casal. Sem querer revelar muito, Mark Duplass e Sarah Paulson dão um verdadeiro show dentro do clímax, mostrando como algumas feridas são difíceis de serem cicatrizadas. Na verdade, mais do que criar uma sólida ponte entre o passado e o presente dos seus personagens, Blue Jay esbanja delicadeza ao olhar para a juventude a partir da perspectiva de dois adultos, refletindo com um viés agridoce sobre o tempo perdido e as peças que só o destino é capaz de pregar. 

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