segunda-feira, 6 de maio de 2019

Crítica | O Ódio Que Você Semeia

Uma questão de cor

Logo na sua desconcertante primeira cena, O Ódio Que Você Semeia é incisivo ao jogar na cara do público uma realidade cruel e injusta. Nela um pai de família negro, numa reunião com ares corriqueiros, ensina os seus filhos a se portar caso se depare com uma “batida” policial. A lição não é dada com serenidade. Não! A polícia, aos olhos daquele homem, não simbolizava proteção. Longe disso. Era mais uma ameaça imposta pela desigualdade e pelo racismo. Consciente da urgência temática da sua obra, o diretor George Tillman Jr. (Homens de Honra) é veemente ao refletir sobre a violência policial contra inocentes nos EUA sob uma perspectiva dura, trágica e agressiva. Impecável ao revelar a seletividade do Estado no que diz respeito a construção do estereótipo de possível ameaça, o realizador causa um misto de raiva e tristeza ao narrar a jornada de uma jovem dedicada e educada que desde cedo se acostumou a viver a segregação do nosso dia a dia. 


Criada num bairro pobre de uma grande metrópole, a obstinada Starr (vivida com energia por uma iluminada Amandla Stenberg, a pequena Rae de Jogos Vorazes) se torna mais uma estatística aos olhos do Estado ao sobreviver a uma desastrada batida policial. No olho de um verdadeiro furacão após perder o seu querido amigo Khalil (Algee Smith), ela vê a sua então equilibrada rotina ganhar um novo rumo quando passa a assumir o papel da mais nova jovem vítima de um sistema racista. Embora existam muitos filmes sobre o assunto em questão, Tillman Jr. adiciona elementos mais universais à discussão ao expor o impacto da violência policial numa família funcional, com raízes sólidas e uma realística visão sobre o mundo que os cercavam. O que fica bem claro, por exemplo, quando o assunto é a forte figura paterna vivida com intensidade por Russel Hornsby, um personagem integro e com muito a dizer sobre uma realidade que insiste em não mudar.


Sem a intenção de contemporizar, o diretor é igualmente contundente ao apontar a sua mira para o racismo policial, para a rotina de indignidades impostas a muitos apenas pela cor da sua pele. Com um texto sólido e sem floreios, George Tillman Jr. segue uma linha mais reativa (Malcom X é seguidamente lembrado pelo longa) ao desafiar o seu público, ao questionar a inércia coletiva, escancarando o quão cruel e hostil é o tratamento conferido pelas forças policiais às minorias em território norte-americano. Através de sequências fortíssimas, a ebulição social dentro do último ato soa bem realística, o longa impacta ao reproduzir em alta definição situações frequentemente exibidas em telejornais. Tudo aqui é muito reconhecível. Seja nos EUA, seja no Brasil. 


A cereja no bolo de O Ódio Que Você Semeia, no entanto, é a maneira com que o argumento invade a peculiar realidade de Starr, uma jovem que, para ter uma perspectiva de futuro melhor, se viu obrigada a estudar numa escola particular e (obviamente) de ampla maioria branca. Como se não bastasse o estrago causado pela tragédia, George Tillman Jr. amplia o escopo da trama ao dar contornos auto afirmativos a jornada de uma jovem mulher negra, escancarando o estrago também causado pelo preconceito velado à medida que Starr decide contrariar aquilo que se esperava dela naquele ambiente. Ela precisava ser uma no seu marginalizado bairro e outra no requintado ambiente escolar. Um passo em falso e toda a imagem da garota instruída poderia ruir. Um estudo de personagem intimista conduzido com muita delicadeza pelo roteiro. Por mais que, narrativamente, o universo da “elite” se revele mais pasteurizado que o ideal, os personagens brancos são em sua maioria subaproveitados pelo roteiro, o diretor compensa ao traduzir os obstáculos impostos a ela com sofisticação, fazendo, em especial, um interessante uso da palheta de cores ao criar uma ruptura clara entre os dois cenários\mundos. 


Uma divisão desconfortável que sintetiza a essência de O Ódio Que Você Semeia. Embora pese a mão dentro do carregado clímax e estique a sua obra além do necessário, algumas sequências didáticas e\ou redundantes, inclusive, comprovam a falta de acabamento do longa, George Tillman Jr. entrega um filme categórico, um relato desconcertante sobre a violência policial, o racismo enraizado e as inúmeras sequelas causadas pela desigualdade social.

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