Já no seu título, Euphoria não faz
questão de esconder a sua face mais provocadora. Estamos diante de uma obra
pesada, melancólica, com muito a dizer sobre males reconhecíveis, daqueles que
permeiam o nosso estilo de vida urbano. Muito mais do que um drama de redenção
e reconexão entre duas afastadas irmãs, o longa dirigido por Lisa Langseth se
arrisca ao ir além da superfície, ao encontrar nas agruras delas o material
para tecer uma crônica pessoal sobre duas mulheres vítimas das suas próprias
escolhas. Sob a perspectiva do fim iminente, a realizadora toca em questões
naturalmente complexas ao refletir sobre o vazio que nos cerca, sobre as nossas
contradições na busca por algo pelo que viver. Uma discussão por si só densa,
mas que ganha contornos mais inquietantes quando nos deparamos com o contexto
proposto pelo longa e as poderosas performances de Alicia Vikander e Eva Green.
Influenciado por títulos como o
insinuante Persona, de Ingmar Bergman, Euphoria usa o choque de mentalidades com
uma espécie de agente catalisador no processo de construção\desconstrução das
suas protagonistas. Com argumento assinado pela própria Lisa Langseth, o longa
é inteligente ao se concentrar mais no tempo presente, nas desventuras de duas
irmãs separadas – dentre outras coisas – por um desconcertante segredo. O
passado passou. Dele restam as feridas. As cicatrizadas e as não cicatrizadas.
Sem a intenção de apelar para os diálogos expositivos, o que, de certa forma,
ajuda a contribuir para o clima de mistério em torno da jornada das duas, a
diretora é astuta ao gradativamente entendê-las melhor. Sob uma perspectiva
genuinamente feminina, o roteiro é impecável ao, logo nas primeiras cenas, mostrar
o “abismo” que separava as duas irmãs. De um lado temos a pragmática Ines
(Vikander), uma pintora cascuda, irritável, sem tempo para relações
consideradas supérfluas. Do outro surge a receptiva Emilie (Green), uma mulher
serena, compreensiva, daquelas que parecem ter finalmente entendido o sentido
das coisas. Após um longo tempo separadas, as duas, a pedido da irmã mais
velha, decidem viajar juntas para o que seria uma semana de férias num isolado
spa. Não demora muito, porém, para Ines desconfiar das intenções de Emilie e
dos verdadeiros motivos por trás deste repentino reencontro. Uma novidade
desoladora capaz de colocar de vez em cheque os laços afetivos entre duas irmãs
separadas pelo tempo.
Seguindo uma linha tipicamente
nórdica, um viés comedido\reflexivo consagrado por nomes como os do próprio
Ingmar Bergman, Lisa Langseth rompe com qualquer traço de sentimentalismo ao
invadir a intimidade de duas personagens quebradas. Duas mulheres que, logo
cedo, foram obrigadas a experimentar o impacto da ausência e a reagir a isso. Sem
nunca perder tempo demais com o passado, a realizadora sueca é astuta ao
moldá-las a partir do divórcio na infância, a partir da dor causada por ele,
fazendo um inteligente uso de uma personagem ausente (no caso a problemática
mãe) para que possamos compreendê-las melhor. Embora ela não ganhe um rosto e
sequer um nome, é interessante ver como, a partir das suas apenas citadas
ações, o roteiro reflete sobre o comportamento das irmãs. Mesmo indo por
caminhos distantes, tanto Ines quanto Emilie trouxeram consigo as sequelas da
ausência, sofriam com os traumas das feridas mal curadas e por consequência não
conseguiram se distanciar quanto queriam\deveriam do destino da sua finada
figura materna. Nas entrelinhas, Langseth parece sugerir um círculo vicioso,
questionando a dependência afetiva de mulheres tão independentes.
A força de Euphoria, entretanto,
reside justamente na sua face mais provocadora. Além de tocar num tema
delicadíssimo aos olhos de muitos, Lisa Langseth extrai o máximo do melancólico
cenário proposto ao discutir o vazio que nos cerca. Com objetividade e pulso
narrativo, a realizadora busca no olhar raivoso\incrédulo de Ines e no misto de
serenidade e urgência de Emilie escancarar alguns problemas genuinamente
urbanos. Embora ambientado num cenário reduzido e quase paradisíaco, a diretora
não foge da raia a capturar a sensação de solidão que cercavam os “hóspedes”
desta instituição. Euphoria coloca o dedo na ferida ao falar sobre as
oportunidades perdidas, sobre falhas de comunicação, sobre egoísmo, inseguranças
e o medo de no fim tudo não fazer o menor sentido. Sem querer revelar muito, o
personagem do veterano Charles Dance, em especial, é daqueles capazes de nos
fazer pensar sobre o que queremos das nossas vidas. Uma sensação que, aliás, se
reflete também na conflitante relação entre Ines e Emilie. Com uma direção
silenciosa e muito elegante, Langseth respeita os reconhecíveis dilemas das
suas personagens ao não reduzir tudo a uma conversa amistosa. Por trás da
(tardia) tentativa de reconexão existe rancor, existem verdades nunca
reveladas, obstáculos que nos ajudam a entender o porquê de uma relação tão
estremecida. As duas têm razão, mas também culpa. Um predicado potencializado
pelas robustas performances de Alicia Vikander, explosiva ao interiorizar a tristeza,
a raiva reprimida e desconforto da contraditória Ines, e Eva Green, intensa ao
encarar o misto de plenitude e fragilidade da sua Emilie. Numa sequência chave
do longa, inclusive, a eclética atriz francesa dá uma verdadeira aula de
delicadeza ao interpretar uma daquelas situações naturalmente desafiadoras.
Embora afaste demais as duas
protagonistas ao longo do filme, um pecado quando percebemos a instável (e marcante) conexão
entre Alicia Vikander e Eva Green, Euphoria usa a iminência do fim para discutir
a nossa péssima relação com os inúmeros dilemas afetivos que nos cercam. Uma
obra disposta a nos tirar da zona de conforto, a questionar as nossas
prioridades. E isso com um drama acessível, conduzido com maturidade e um
particular senso de urgência que casa perfeitamente com a proposta da
trama.
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