quarta-feira, 22 de maio de 2019

Crítica | Euphoria

Entre a tristeza e a solidão

Já no seu título, Euphoria não faz questão de esconder a sua face mais provocadora. Estamos diante de uma obra pesada, melancólica, com muito a dizer sobre males reconhecíveis, daqueles que permeiam o nosso estilo de vida urbano. Muito mais do que um drama de redenção e reconexão entre duas afastadas irmãs, o longa dirigido por Lisa Langseth se arrisca ao ir além da superfície, ao encontrar nas agruras delas o material para tecer uma crônica pessoal sobre duas mulheres vítimas das suas próprias escolhas. Sob a perspectiva do fim iminente, a realizadora toca em questões naturalmente complexas ao refletir sobre o vazio que nos cerca, sobre as nossas contradições na busca por algo pelo que viver. Uma discussão por si só densa, mas que ganha contornos mais inquietantes quando nos deparamos com o contexto proposto pelo longa e as poderosas performances de Alicia Vikander e Eva Green. 


Influenciado por títulos como o insinuante Persona, de Ingmar Bergman, Euphoria usa o choque de mentalidades com uma espécie de agente catalisador no processo de construção\desconstrução das suas protagonistas. Com argumento assinado pela própria Lisa Langseth, o longa é inteligente ao se concentrar mais no tempo presente, nas desventuras de duas irmãs separadas – dentre outras coisas – por um desconcertante segredo. O passado passou. Dele restam as feridas. As cicatrizadas e as não cicatrizadas. Sem a intenção de apelar para os diálogos expositivos, o que, de certa forma, ajuda a contribuir para o clima de mistério em torno da jornada das duas, a diretora é astuta ao gradativamente entendê-las melhor. Sob uma perspectiva genuinamente feminina, o roteiro é impecável ao, logo nas primeiras cenas, mostrar o “abismo” que separava as duas irmãs. De um lado temos a pragmática Ines (Vikander), uma pintora cascuda, irritável, sem tempo para relações consideradas supérfluas. Do outro surge a receptiva Emilie (Green), uma mulher serena, compreensiva, daquelas que parecem ter finalmente entendido o sentido das coisas. Após um longo tempo separadas, as duas, a pedido da irmã mais velha, decidem viajar juntas para o que seria uma semana de férias num isolado spa. Não demora muito, porém, para Ines desconfiar das intenções de Emilie e dos verdadeiros motivos por trás deste repentino reencontro. Uma novidade desoladora capaz de colocar de vez em cheque os laços afetivos entre duas irmãs separadas pelo tempo.


Seguindo uma linha tipicamente nórdica, um viés comedido\reflexivo consagrado por nomes como os do próprio Ingmar Bergman, Lisa Langseth rompe com qualquer traço de sentimentalismo ao invadir a intimidade de duas personagens quebradas. Duas mulheres que, logo cedo, foram obrigadas a experimentar o impacto da ausência e a reagir a isso. Sem nunca perder tempo demais com o passado, a realizadora sueca é astuta ao moldá-las a partir do divórcio na infância, a partir da dor causada por ele, fazendo um inteligente uso de uma personagem ausente (no caso a problemática mãe) para que possamos compreendê-las melhor. Embora ela não ganhe um rosto e sequer um nome, é interessante ver como, a partir das suas apenas citadas ações, o roteiro reflete sobre o comportamento das irmãs. Mesmo indo por caminhos distantes, tanto Ines quanto Emilie trouxeram consigo as sequelas da ausência, sofriam com os traumas das feridas mal curadas e por consequência não conseguiram se distanciar quanto queriam\deveriam do destino da sua finada figura materna. Nas entrelinhas, Langseth parece sugerir um círculo vicioso, questionando a dependência afetiva de mulheres tão independentes.


A força de Euphoria, entretanto, reside justamente na sua face mais provocadora. Além de tocar num tema delicadíssimo aos olhos de muitos, Lisa Langseth extrai o máximo do melancólico cenário proposto ao discutir o vazio que nos cerca. Com objetividade e pulso narrativo, a realizadora busca no olhar raivoso\incrédulo de Ines e no misto de serenidade e urgência de Emilie escancarar alguns problemas genuinamente urbanos. Embora ambientado num cenário reduzido e quase paradisíaco, a diretora não foge da raia a capturar a sensação de solidão que cercavam os “hóspedes” desta instituição. Euphoria coloca o dedo na ferida ao falar sobre as oportunidades perdidas, sobre falhas de comunicação, sobre egoísmo, inseguranças e o medo de no fim tudo não fazer o menor sentido. Sem querer revelar muito, o personagem do veterano Charles Dance, em especial, é daqueles capazes de nos fazer pensar sobre o que queremos das nossas vidas. Uma sensação que, aliás, se reflete também na conflitante relação entre Ines e Emilie. Com uma direção silenciosa e muito elegante, Langseth respeita os reconhecíveis dilemas das suas personagens ao não reduzir tudo a uma conversa amistosa. Por trás da (tardia) tentativa de reconexão existe rancor, existem verdades nunca reveladas, obstáculos que nos ajudam a entender o porquê de uma relação tão estremecida. As duas têm razão, mas também culpa. Um predicado potencializado pelas robustas performances de Alicia Vikander, explosiva ao interiorizar a tristeza, a raiva reprimida e desconforto da contraditória Ines, e Eva Green, intensa ao encarar o misto de plenitude e fragilidade da sua Emilie. Numa sequência chave do longa, inclusive, a eclética atriz francesa dá uma verdadeira aula de delicadeza ao interpretar uma daquelas situações naturalmente desafiadoras.


Embora afaste demais as duas protagonistas ao longo do filme, um pecado quando percebemos a instável (e marcante) conexão entre Alicia Vikander e Eva Green, Euphoria usa a iminência do fim para discutir a nossa péssima relação com os inúmeros dilemas afetivos que nos cercam. Uma obra disposta a nos tirar da zona de conforto, a questionar as nossas prioridades. E isso com um drama acessível, conduzido com maturidade e um particular senso de urgência que casa perfeitamente com a proposta da trama. 

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