segunda-feira, 13 de maio de 2019

Crítica | Quem Somos Agora (Who We Are Now)

A farsa da ressocialização

Por quanto tempo você acha que uma pessoa deve carregar o peso de um crime? Por toda sua vida?Pelo período enquanto durar a sua pena? Uma questão delicada e recorrente dentro dos grandes centros urbanos que guia o excelente drama ‘indie’ Quem Somos Agora. Muito mais do que um simples filme de tribunal, o longa escrito e dirigido por Mathew Newton escancara a farsa por trás da ressocialização penal ao acompanhar as desventuras de uma ex-presidiária em busca da guarda do seu filho. Sob uma perspectiva intima e naturalista, o realizador parte de um arco universal para investigar a fundo as sequelas por trás do distorcido senso de justiça do sistema judiciário norte-americano. Embora sob um escopo reduzidíssimo, Newton mostra propriedade ao desvendar uma realidade que muitos insistem em renegar, se insurgindo contra a hipocrisia enquanto traduz a desgastante rotina de indignidades enfrentada por mulher pretensamente recuperada aos olhos frios da lei.



Com um tema extremamente delicado em mãos, Mathew Newton é cuidadoso ao nunca julgar os seus falíveis personagens. O foco, na verdade, está no meio em que eles vivem, um ambiente incapaz de realmente enxergar um ex-detento como alguém pronto para recomeçar. Por mais que o longa se concentre na jornada de Beth (Julianne Nicholson) e na sua complexa briga pela guarda parcial do seu filho após uma década na prisão, é legal vem como o roteiro consegue usá-la como uma espécie de isca, fisgando a nossa atenção para um problema muito maior ao escancarar uma dura rotina que a grande maioria desconhece. A abordagem naturalista, aqui, ajuda Newton a ampliar o escopo da trama. A dar voz àqueles que costumeiramente são “abandonados” pelo sistema prisional. Sem nunca se distanciar demais da sua humana protagonista, o realizador não titubeia ao, nas entrelinhas, trazer a desigualdade social para o centro da trama, ao dar um rosto (em sua maioria latino e\ou negro) aos esquecidos. As pontuais subtramas, de fato, são muito bem costuradas ao arco central, o que nos permite uma visão mais abrangente sobre o tema proposto. O que fica bem claro, em especial, quando nos deparamos a jovem advogada vivida por Emma Roberts. A partir da perspectiva dela, uma jovem de família rica disposta a oferecer os seus serviços a uma ONG em defesa dos menos favorecidos, Newton é astuto ao estabelecer este choque de realidade, ao revelar o esforço diário de alguns poucos abnegados na tentativa de trazer um pouco mais de equilíbrio a desregulada balança da justiça.


Consciente de o quão mais pesada pode ser a mão do Estado contra as minorias nos EUA, Quem Somos Agora é igualmente habilidoso ao desvendar a farsa por trás do processo de ressocialização sob a perspectiva de uma mulher branca, de família classe média, condenada a quinze anos de prisão no seu único grande delito. Para Mathew Newton, ao menos aqui, sob a perspectiva de um ex-detento, existe algo próximo a uma democracia. A questão racial\origem tem pouco a dizer quando a “sociedade” descobre estar diante de um criminoso condenado. Sem nunca pender para o maniqueísmo, o realizador é enfático ao expor a marca deixada pela prisão, ao escancarar o misto de desconfiança, medo e indignidade em torno do processo de reconstrução pessoal fora da cadeia. Beth é apenas mais uma a lidar com a desconfiança da própria família, com a falta de raízes sólidas, com o desemprego, com a degradação. Um turbilhão de emoções capturado com rara intensidade pela talentosa Julianne Nicholson. Uma daquelas atrizes que, sabe-se lá o porquê, nunca teve o seu talento tão reconhecido, ela interioriza os conflitos da sua personagem com rara complexidade, criando uma mulher ora raivosa e agressiva, ora serena e vulnerável. As feridas não cicatrizadas de Beth estão no olhar de Nicholson, na sua dor reprimida, na sua postura irritadiça, na sua completa desconfiança envolvendo todos que a cercam. Newton, aliás, é inteligente ao nunca entregar demais sobre o passado da protagonista, sobre os motivos que a conduziram a tal posição. Sem pressa para desconstruí-la perante o público, o diretor é cuidadoso ao, a partir das suas relações pessoais, invadir a intimidade dela, discorrer sobre os seus erros, a sua culpa, o que poderia ter sido a sua vida. Com naturalidade e apreço pelo realismo proposto pela trama, Newton consegue até mesmo criar certo suspense em torno do destino de Beth, em torno dos motivos dela, nos mantendo conectados até o sucinto e contundente clímax.


Com uma direção discreta e intimista, um forte elenco de apoio (Zachary Quinto e Emma Roberts estão excelentes) e um realístico viés crítico, Quem Somos Agora causa um impacto natural ao refutar o ideal de redenção tão alardeado pelo cinema. No mundo real, as segundas chances são poucas e algumas manchas são praticamente impossíveis de serem apagadas. Uma triste realidade que merece (ou melhor, precisa) ser debatida com mais seriedade pelos nossos governantes.



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