sábado, 6 de abril de 2019

Crítica | Corações Batendo Alto – Hearts Beat Loud

Tempo de mudança

São por filmes assim que mantenho esse pequeno blog em atividade. Em meio ao frenesi das cada vez mais imponentes produções hollywoodianas, está cada vez mais difícil encontrar no "cinemão" atual obras espontâneas, despretensiosas e/ou honestas em sua proposta. Quem lê os meus posts sabe que eu sou um entusiasta dos grandes blockbusters, do escapismo, do senso épico dos filmes de super-heróis, da magia das produções Disney, da releitura de verdadeiros clássicos. É triste ver, entretanto, que diante do apetite voraz da indústria pelo lucro fácil, a autenticidade tem se perdido pelo caminho. Tem ficado reduzida ao revigorante e seleto mercado ‘indie’. Uma corrente que, felizmente, tem encontrado uma limitada, mas audível voz nos serviços de streaming. O que fica bem claro quando nos deparamos com esta pequena pérola chamada Corações Batendo Alto. Lançado diretamente no mercado doméstico no Brasil, o longa dirigido pelo promissor Brett Haley (do ótimo O Herói) comove ao imprimir em cada diálogo e em cada cena um grau de sinceridade reconfortante. A partir de uma premissa amplamente explorada pelo gênero, o duro processo de transição da adolescência para a vida adulta, o realizador é criativo ao propor um cativante choque geracional entre um pai sonhador e a sua prática filha, usando a música como uma espécie de agente catalisador ao defender que algumas mudanças são irremediáveis. O resultado é um drama familiar vibrante, com atuações fortes, uma direção sensível e uma abordagem verdadeira que tem muito a dizer sobre esta dura fase da vida. 



Com uma pegada natural que me lembrou muito as obras de John Carney (Apenas Uma Vez, Sing Street), Hearts Beat Lound (no original) encanta pela delicadeza com que invade a descomplicada relação entre pai e filha. Uma visão moderna e urbana que ajuda a refrescar um ‘plot’ num primeiro momento batido. Em outras palavras, você provavelmente já viu esta história antes, mas poucas vezes contada com tamanha franqueza. Com roteiro assinado pelo próprio Brett Haley, ao lado de Marc Basch, o longa acompanha a jornada de Frank (Nick Offerman), um cantor que, após fazer um relativo sucesso no passado, se manteve ligado a música como o dono de uma decadente loja de discos em Nova Iorque. Sem grandes pretensões, ele se vê obrigado a sair da sua zona de conforto quando a sua filha, a prática e dedicada Sam (Kiersey Clemons), se mostra irredutível quanto a opção de estudar medicina na Califórnia. Com dificuldades para manter a loja diante do ‘boom’ das plataformas de música digitais, ele decide passar o ponto após 17 longos anos no negócio na busca por uma nova fonte de renda para ajudar a bancar os estudos da sua filha. Num daqueles acasos do destino, porém, uma música composta por ele e a talentosa Sam ganha um repentino status dentro do Spotfy, reacendendo uma chama que parecia adormecida neste agora pacato homem de meia idade.


Corações Batendo Alto é o tipo de obra que traz uma série de elementos naturalmente cativantes. Os personagens, por exemplo, são singulares e carismáticos. Vide o barman boa praça vivido por um inesgotável Ted Denson e a locatária afetuosa interpretada por uma iluminada Tony Colette. Os diálogos são honestos dentro da sua proposta e comoventes. A trilha sonora é inebriante e dita o tom ‘feel good’ da película com personalidade. O visual ‘indie’ colorido e aconchegante confere a trama um grau de imersão ímpar. Nem parece que o longa é ambientado numa megalópole do porte de Nova Iorque. A direção de arte capricha na composição dos personalizados cenários, o que fica bem claro na loja de Frank. Sem a necessidade de dizer muito, através daquele imersivo estabelecimento conhecemos um pouco mais da personalidade do protagonista, da sua paixão pela música, do carinho ali dedicado. O que mais me atraiu no longa, entretanto, foi o grau de integridade nas relações construídas pelo roteiro. Embora, estruturalmente, o argumento até siga um caminho convencional, Brett Haley não se contenta em reciclar clichês. Os sentimentos pintados em tela, tal qual os acordes de Sam, são virtuosos. Sem grande esforço é possível enxergar o intenso elo entre pai e filha. Por mais evidente que sejam as diferenças entre eles, em alguns momentos eles dialogam com o olhar.


Impecável ao escancarar o lado mais funcional de uma franca relação disfuncional, o realizador realça a originalidade do seu texto ao subverter as nossas expectativas quanto aquilo que esperamos ver em um choque geracional. Existe uma clara e contextualizada "inversão de papéis". Frank, fruto dos anos 1970, acreditava nos seus sonhos, numa vida de desapego material, de valor pelos pequenos prazeres da vida. Uma boa música, uma boa companhia, um confortável lugar para se viver. Já Sam, fruto dos anos 2000, é a precocidade em pessoa. Ao contrário do seu imaturo pai, ela tem planos, acredita no poder da escolha segura, está disposta a se afastar daquilo que mais ama (incluindo o seu incrível dom musical) para fazer o que julga certo na busca pela concretização do que considera um futuro próspero. Deste choque de mentalidade nasce o melhor de Corações Batendo Alto, principalmente pela forma realística com que Brett Haley explora o elemento musical. Não estamos diante de mais um Nasce Uma Estrela. Ter talento não significa ter sucesso, tampouco ter dinheiro. Sam sabia disso. Seu pai não. O mais legal, contudo, é que o longa em nenhum momento contesta o respectivo amor dos dois pela música. Muito pelo contrário. Através das intimistas canções, o roteiro é inteligente ao expor mais de cada um dos protagonistas, ao desvendar os seus medos, anseios e frustrações. A música, aqui, é tratada como uma manifestação quase terapêutica. A música cura, alegra, une. Além disso, por mais que o argumento se concentre na humana relação entre Frank e Sam, Haley é igualmente habilidoso ao permitir que os dois tenham também um arco individual próprio. O que fica bem claro, em especial, com a magnética relação entre a jovem e a sua namorada Rose (Sasha Lane), uma história de amor por si só bonita e complexa filmada com enorme sensibilidade pelas lentes do diretor.


E o coração de Hearts Beat Lound, de fato, reside nas marcantes performances de Nick Offerman (Família do Bagulho) e Kiersey Clemons (Dope). Na pele de um homem sonhador e de mente aberta, o versátil ator mostra mais uma vez a sua subaproveitada intensidade dramática ao entregar um trabalho complexo. O seu Frank é imaturo sim, mas nunca um tolo. Com muita energia no olhar, Offerman cria uma figura paterna amiga e serena, um homem capaz de respeitar o espaço da sua filha mesmo não concordando com a sua visão de mundo. Além disso, como se não bastasse o seu reconhecido ‘timing cômico’, o ator convence como um músico “enferrujado” nas revigorantes performances musicais, se iluminando em cena sempre que o seu personagem faz aquilo que mais ama. O mesmo, aliás, podemos dizer da magnética Kiersey Clemons. Uma atriz com muito a oferecer ao mundo da Sétima Arte. Do alto dos seus 25 anos, ela cativa como uma jovem adulta com uma visão pragmática sobre a realidade que a cerca. Quer dizer, pelo menos no que diz respeito ao seu futuro. Com uma impressionante performance vocal e muita emoção, Clemons interioriza o misto de sentimentos da sua Sam com extrema propriedade, dialogando com questões extremamente reconhecíveis com honestidade e intimidade. Sem querer revelar muito, as sequências românticas entre ela e a radiante Sasha Lane são hipnotizantes, tamanho grau de conexão impressão em tela. Algo que, aliás, se repete na entrosada parceria entre Offerman e Clemons, que, graças a direção cuidadosa de Brett Haley, ganham a oportunidade de exibir os sentimentos dos seus íntegros personagens com uma bem-vinda naturalidade.


Um filme com essência ‘indie’, mas uma mensagem indiscutivelmente universal, Corações Batendo Alto causa um misto de fascínio e encantamento pela forma nada ingênua com que valida a visão de mundo dos seus respectivos protagonistas. Não existe certo ou errado aqui. O futuro é uma história prestes a ser escrita, como algumas das belas canções interpretadas por Frank e Sam.



3 comentários:

Junio disse...

!! Filme leve e sensível , q faz a gente torcer pelos personagens !! Elenco eficiente e afinado , principalmente o pai super carismático! Ótimas músicas! Nem a história super clichê atrapalha pq foi tudo muito bem conduzido ! Filme surpreendente gostoso de ver !!

thicarvalho disse...

Saber brincar com os clichês é uma arte Junio. E esse filme sabe lidar com eles com enorme autenticidade.

David Telio Duarte disse...

Peço licença para fazer minhas integralmente todas as suas palavras sobre o cinema com as quais iniciou o texto. Na minha idade, cada vez sinto mais o cinema em filmes como este "Corações Batendo Alto" e "Apenas uma Vez". E como tem sido difícil hoje encontrar pérolas como essas. E as cenas entre Nick Offerman e Kiersen Clemons a mim são impossíveis de desviar a atenção. Vontade de parar e rever cada uma delas. Fora os citados coadjuvantes, de presença incrível (Ted Danson brincando consigo mesmo "costumava ser tão bonito", impagável). Uma pérola do cinema indie.