sábado, 30 de março de 2019

Entre a ousadia e o fetichismo, os altos e baixos de Love, Death & Robots

Sim, isso é uma animação!
Só por dar relevância ao formato curta-metragem, Love, Death & Robots merece entrar para o ‘hall’ dos acertos da Netflix. Mais do que simplesmente dar voz a novos realizadores, a coletânea de ‘short stories’ desfilou ao longo dos seus 18 capítulos o melhor que a animação tem a oferecer, reunindo num mesmo projeto uma vasta gama de técnicas e estilos com indiscutível originalidade. Com o fim da série, porém, uma pergunta ficou martelando na minha cabeça. Love, Death + Robots atingiu as elevadas expectativas criadas em torno do projeto? Numa análise sobre o todo, a meu ver, não. Em meio aos evidentes altos e baixos dos curtas, a impressão que fica em alguns momentos é que por trás da ousadia estética existe um quê fetichista um tanto quanto incômodo. Com a intenção de entregar uma animação voltada para o público adulto, a coletânea de curtas produzida por David Fincher e Tim Miller em muitos casos pendeu para a banalização. O que fica claro logo no início com o oco The Witness (foto abaixo). Um dos projetos imageticamente impressionantes da lista, o curta dirigido por Alberto Mielgo enche a tela de cores ao investir num visual pop, surfando na onda Homem-Aranha no Aranhaverso (2018) ao propor uma estilizada visão da realidade. O problema é que, ao invés de se concentrar na sua instigante trama, um jogo de gato e rato envolvendo uma striper e um assassino, o realizador reduz tudo a hipersexualização. Um exibicionismo gratuito que, além de não acrescentar praticamente nada a trama, só serve para esgotar o clima de tensão em torno dos primeiros minutos da obra. A impressão que fica, na verdade, é que alguns dos animadores se empolgaram demais com a ideia de “desnudar” os seus personagens perante o público, uma visão um tanto quanto imatura sobre as possibilidades permitidas pela elevada classificação etária.


Uma espécie de vício que, infelizmente, contamina a coletânea praticamente como um todo. Até em alguns dos ótimos episódios. Com raríssimas exceções, a sexualidade\nudez é explorada sempre com uma dose de banalidade, como se os criadores tivessem preocupados em mostrar o que conseguiriam\poderiam fazer dentro da animação com liberdade. De Love mesmo a série tem bem pouco. Uma distorção da proposta inicial do projeto que se faz presente também no trabalho mais visualmente verossímil da lista, o superestimado Beyond The Aquila Rift. Esteticamente espetacular, o curta dirigido por Dominique Boidin, Léon Bérelle, Rémi Kozyra e Maxime Luère causa um impacto natural ao narrar as desventuras de uma tripulação numa perigosa viagem pela galáxia. Numa mistura de Alien: O Oitavo Passageiro com O Enigma do Horizonte, a obra fisga a nossa atenção, alimenta as nossas dúvidas, mas desperdiça o seu potencial ao reduzir basicamente tudo a uma realística sequência de sexo entre os protagonistas. Uma cena marcante, é verdade, mas que “rouba” tempo demais da obra. O resultado, outra vez, é um desfecho frouxo, sugestivo e um tanto quanto decepcionante. Como se toda a trama servisse apenas como uma desculpa para a realização da sequência. O mesmo, aliás, podemos dizer quando o assunto é a violência gráfica. Em muitos curtas fica claro que a intenção é criar o choque pelo choque. Como podemos perceber no apenas competente Shape-Shifters. Embora parta de uma premissa instigante, um cenário em que militares usavam lobisomens como armas de guerra no Oriente Médio, o curta dirigido por Gabriele Pennacchioli não consegue conferir profundidade à história de amizade proposta pelo material. Enquanto esteticamente o capítulo funciona a contento, invadindo a rotina do conflito com muito realismo e brutalidade, narrativamente a obra se esvai à medida que se aproxima do esperado clímax, um sangrento duelo entre criaturas transmorfas. Legal? É, claro! Mas não o bastante para saciar o nosso apetite por um produto mais maduro, reflexivo e inquietante.


E aqui, na verdade, chegamos ao principal calcanhar de aquiles de Love, Death & Robots. Para uma coletânea de ficção científica, a seleção de curtas soa vazia demais. Ainda que em alguns momentos a série alcance um grau de reflexão mais complexo, daqui a pouco falaremos sobre eles, em outros o que vemos é uma tentativa tola de se brincar com o existencialismo pertencente ao universo do Sci-Fi. Vide o infame When the Yogurt Took Over (foto acima). De longe o episódio mais bobo da safra, o curta dirigido por Víctor Maldonado e Alfredo Torres debocha da ignorância humana ao nos levar para uma sociedade que foi dominada pelos lactobacilos geneticamente modificados de um iogurte. Por mais que, no papel, a comicidade seja óbvia, o desenvolvimento da ideia é inexplicavelmente oco, impedindo que a sátira social alcançasse um nível de discussão mais esperto ou provocante. Algo que se repete no pretensioso Fish Night. Fazendo um expressivo uso da rotoscopia, o projeto dirigido por Damian Nenow até se arrisca ao divagar sobre existencialismo, sobre as nossas parcas noções de tempo e espaço, mas esbarra nos seus próprios excessos ao reduzir tudo a uma viagem lisérgica com um quê fantasmagórico. De fato, falta texto em muitos episódios de Love, Death + Robots. Ficou claro que, no papel, algumas das ideias citadas acima eram por si só promissoras. Muitas, porém, passaram longe (bem longe) de serem habilmente exploradas dentro dos curtas. Vide o caso do exótico Alternate Histories. Com traços cartunescos e um lúdico uso da animação digital, o curta mais uma vez dirigido pela dupla Maldonado\Torres peca pelo excesso ao reduzir tudo ao viés satírico. Na trama, vemos uma IA projetar o futuro da raça humana se Hitler fosse morto enquanto jovem, no ano de 1908. Diferente de When the Yougurt Took Over, o episódio começa bem, as três primeiras possibilidades são até engraçadas, mas o potencial cômico logo se perde quando o curta se rende a misoginia e ao absurdo. Aqui, em especial, o elemento sexual é terrivelmente usado. Por falar nos piores momentos da coletânea, os capítulos The Dump (o pior dos 18) e o divertido Blind Spot (o mais genérico) são daqueles que decepcionam qualquer fã de uma ficção-científica mais adulta.


Até aqui, confesso, você deve estar se perguntando os motivos que me levaram a tratar Love, Death & Robots como um acerto da Netflix. Realmente, diante das críticas expostas acima, não parece muito coerente da minha parte. Quando analisamos a obra individualmente, porém, é possível extrair algumas pequenas pérolas desta coletânea. Daquelas que, em alguns casos, mereciam durar até mais minutos. Entre os ‘highlights’ menos memoráveis, The Secret War fecha a coletânea com um thriller de horror travestido de filme de guerra com uma mitologia própria, personagens interessantes e um contexto original. Sob a perspectiva do lado soviético da Segunda Guerra Mundial, o virtuoso curta dirigido por István Zorkóczy faz um interessante uso do subtexto ao escancarar os perigos por trás de algumas nefastas alianças. Uma obra que, embora destoe da proposta defendida no título, é sagaz ao usar a verossimilhança da animação digital dentro de um novo gênero. Algo que, aliás, se repete no empolgante Sucker of Souls (foto acima). Com um traço clássico em 2-D, que me remeteu aos jogos de PC no estilo ‘point and click’ dos anos 1990, o longa dirigido por Owen Sullivan transita habilmente entre a aventura e o horror mitológico ao narrar as desventuras de um grupo de escavadores numa tumba habitada por perigosas criaturas. Com personagens cativantes, um texto ágil, ótimas gags e competentes sequências de ação, o realizador consegue em poucos minutos criar um nível de tensão\urgência digno de elogios. Já entre as obras mais cabeças, Ice Age pinta um retrato ímpar sobre os ciclos da vida. Numa mistura de ‘live-action’ com animação, a obra dirigida por Tim Miller (Deadpool) e estrelada por Topher Grace e Mary Elizabeth Winstead reflete sobre a nossa pequenez dentro uma perspectiva simples, original e indiscutivelmente inteligente. O melhor, porém, eu deixei para o fim. E, para fazer jus a cada um deles, decidi listá-los abaixo e fazer uma análise mais profunda sobre eles. Esses merecem. 

- Sonnie’s Edge


Love, Death + Robots não poderia começar de forma melhor. Num dos projetos que melhor soube capturar a proposta da coletânea, o curta dirigido por Dave Wilson e Gabriele Pennacchioli abriu os trabalhos com peso e profundidade ao narrar a jornada de uma lutadora às avessas com uma imoral proposta. Com virtuosismo técnico, traços incrivelmente realistas e muita intensidade narrativa, a obra mostrou aqui como se explorar a elevada classificação etária ao seu favor. Estamos diante de um curta sensual, violento, mas com muito conteúdo. Um filme capaz de impactar pelas suas sequências de ação, mas principalmente pela sua forte mensagem feminina. Um grito de libertação reconhecível que casa perfeitamente com o ‘background’ agressivo proposto pela produção. (Nota: 10)

- Three Robots


Eu provavelmente veria duas horas de Three Robots. Com uma adorável dose de niilismo, o curta dirigido por Víctor Maldonado e Alfredo Torres arranca sinceras risadas ao acompanhar as pesquisas de três cativantes robôs numa incursão dentro de um planeta Terra completamente devastado. De longe o curta com o melhor texto, a produção escancara a ignorância humana com requintes de crueldade, rindo da nossa estupidez numa espécie de ‘road movie’ por uma destruída megalópole. Sem querer revelar muito, os ‘insights’ sobre o nosso estilo de vida ganham uma engraçadíssima voz sob a perspectiva dos três robôs, culminando num desfecho genuinamente surpreendente. Quem tem um gato sabe que o clímax tem um grande fundo de verdade. (Nota: 9)

- Suits


Em 15 minutos, Suits conseguiu fazer o que a grande maioria das adaptações de videogames não consegue. Com uma pegada arcade, mas uma trama sólida e personagens marcantes, o curta dirigido po Franck Balson empolga ao narrar a luta de um grupo de bem armados fazendeiros contra uma predatória ameaça alienígena. Fazendo um criativo uso dos traços infantis dentro de um contexto ultraviolento, o realizador consegue mesmo em meio das frenéticas cenas de ação desenvolver o elo entre os personagens. Nos fazer torcer por eles, se importar, temer pelos seus respectivos destinos, empolgando ao entregar um curta que mais parece um clímax de um imponente blockbuster. (Nota: 8,5)

- Good Hunting


Chegamos aqui ao curta que mais faz jus a proposta de Love, Death & Robots. Outro projeto genuinamente feminino, a película dirigida por Oliver Thomas causa um misto de tristeza e encantamento ao narrar a história de amizade entre um jovem e uma criatura mitológica numa China ‘streampunk’ dominada por homens cruéis. Por trás da alegoria mitológica e dos traços reverentes ao universo dos mangas, o realizador esconde um comentário profundo sobre a posição de uma mulher dentro de uma sociedade machista, rompendo gradativamente com o contexto mágico ao revelar o seu desconcertante processo de deterioração. O contexto sexual, aqui, é brilhantemente explorado, assim com o viés robótico e o sincero sentimento de amizade entre os protagonistas. O amor entre os dois é fraterno. Puro. Embora em posições “sociais” diferentes, o elo entre os dois cresce harmoniosamente ao longo da envolvente premissa, se tornando a bussola moral da história de redenção e vingança da dupla dentro de um universo vil e impiedoso. Um belo exemplo de mitologia bem construída. E que desfecho. Outro memorável grito de independência e empoderamento. (Nota: 9,5)

- Helping Hand


Eis o curta que mais me impactou entre os 18. Com um grau de verossimilhança assombroso, Helping Hand mistura Gravidade com 127 Horas (os entendedores entenderão) ao narrar as desventuras de uma astronauta colocada numa situação desesperadora. Por trás da simplicidade narrativa, existe uma poderosa e imagética história de superação, um relato desconcertante sobre até onde o ser humano está disposto a ir para se manter vivo. Com um precioso trabalho de noção de física espacial, o diretor Jon Yeo dá uma verdadeira aula sobre a utilização do vácuo na atmosfera terrestre, causando uma angustia natural ao narrar o esforço dela para voltar para a sua nave. O resultado é uma impressionante experiência cinematográfica. Confesso que, por um segundo, tive que fechar os olhos, tamanho o grau de agonia diante dos fatos revelados. Algo que, por si só, diz muito sobre o nível de qualidade de Helping Hand. (Nota: 10)

- Lucky 13 


Numa época em que o público feminino clama por representatividade dentro da cultura pop, Lucky 13 é o correspondente a Capitã Marvel\Mulher-Maravilha dentro do universo de Love, Death & Robots. Com ‘girl power’ na veia, o empolgante curta dirigido por Jerome Chang acompanha a jornada de uma astuta pilota obrigada a comandar a nave considerada símbolo de azar dentro da sua esquadrilha. Sem vergonha de abraçar a ação, o projeto nos brinda com uma animação digital de altíssimo nível, especialmente nas memoráveis sequências aéreas. Além disso, Chang é habilidoso ao narrar o processo de afirmação da protagonista diante das desconfianças impostas a ela. Sem querer revelar muito, nas entrelinhas, é legal ver como o roteiro é astuto ao conferir uma identidade a nave, a estreitar o elo entre as duas num ambiente majoritariamente masculino, preparando o terreno para mais uma impactante história de empoderamento. (Nota: 9)

- Zima Blue


Por fim chegamos ao projeto mais denso da lista. Daqueles que, fiel a essência do Sci-Fi, nos permite uma vasta gama de interpretações acerca dos fatos apresentados. Com um expressivo traço desproporcional, que me fez lembrar do clássico Carmen Sandiego, o curta dirigido por Robert Valley esbanja delicadeza ao narrar a história de um recluso e aclamado artista às vésperas do seu último grande trabalho. Com uma abordagem inteligentemente reflexiva, o realizador busca nos detalhes construir o seu fortíssimo subtexto racial. Quer dizer, pelo menos essa é a minha interpretação. Traçando um brilhante paralelo entre a escravidão e a nossa pretensamente superior visão sobre o universo da robótica, Valley causa um inegável fascínio à medida que desconstrói o cultuado artista perante o público. Ao defender que nenhum homem deve ser reduzido a uma função. Da sua angústia nasce a arte, da arte a afirmação, da afirmação a desconstrução. Algo que faz todo o sentido quando olhamos para trás e vemos como a nossa sociedade se acostumou a estereotipar homens e mulheres negras. A rotulá-los. Sem querer revelar muito, o ‘plot twist’ faz todo o sentido dentro do contexto desigual proposto pelo longa. Uma metáfora genial. (Nota: 10)

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