sexta-feira, 1 de março de 2019

Crítica | Como Falar com Garotas em Festas

Romeu, Julieta e alienígenas

Uma espécie de releitura pop e psicodélica do clássico Romeu e Julieta, Como Falar com Garotas em Festas é facilmente um dos filmes mais subestimados dos últimos anos. Sob a subversiva batuta de John Cameron Mitchell, o homem por trás do indispensável musical Hedwig: Rock, Amor e Traição (2001), o longa volta para os conservadores anos 1970 na Inglaterra numa fábula Sci-Fi sobre o valor da imperfeição. Fazendo um perspicaz uso dos dualismos, o realizador propõe um criativo choque entre o equilíbrio e o caos ao narrar a peculiar história de amor entre um punk purista (Alex Sharp) e uma alienígena descontente com o seu destino (Elle Fanning). 

Inspirado no conto de Neil Gaiman, Mitchell esbanja a sua reconhecida assinatura desconstruída ao defender o desequilíbrio, a beleza da mistura, da miscigenação, da troca de experiências. Do caos nasce a criação, nasce a beleza da vida. Uma mensagem enfática construída a partir da revigorante relação entre o rebelde romântico Enn e a fascinada pela vida terráquea Zan. Enquanto se concentra neste adorável arco, Mitchell enche a tela de sentimentos pueris ao estreitar o elo entre os dois, ao mostrar como um de certa forma passa a transformar o outro. Extraindo o máximo do cenário proposto, o submundo punk de uma pacata cidade inglesa, o diretor captura a aura deste movimento no desenvolvimento deste cativante casal, flertando com elementos dos 'coming of age movies' ao investigar os conflitos dos dois, as incoerências, as contradições e a verdade por trás das suas devidas máscaras. Tudo isso sob uma perspectiva íntima e delicada. 


É bom frisar, entretanto, que não estamos diante de uma típica comédia 'teen' do mestre John Hughes (A Garota de Rosa Shocking). Assim como em Hedwig, Mitchell valoriza o aspecto sensorial da sua obra, propondo uma experiência no mínimo curiosa ao estabelecer a mitologia dos 'aliens', os seus anseios e as suas motivações. É aqui, inclusive, que os contrastes entre os dois lados ficam mais evidentes. Quando se concentra no "nicho" Punk, Mitchell é feroz ao capturar a vibe anárquica, suja, musical e pretensamente caótica. Já quando filma os alienígenas, o diretor esbanja originalidade ao expressar a singularidade deles através do 'boom' da arte moderna setentista, prezando pela experimentalismo ao criar um cenário difícil de se descrever em palavras. Sem querer revelar muito, a sequência da festa é estonteantemente esquisita, uma mistura de cores vivas, figurinos excêntricos (de látex) e acordes nada ortodoxos.


O mais legal, entretanto, é o esforço de John Cameron Mitchell em escancarar as imperfeições dos dois lados. Embora sejam os "mocinhos" da história, o argumento não foge da raia ao explorar a face mais 'poser' dos punk's, dos rebeldes "sustentados pela mamãe", questionando as incoerências e o quão frágil pode ser o idealismo quando você realmente não acredita no que defende. Neste sentido, a ferina personagem interpretada por Nicole Kidman (excelente!) surge como a porta voz das verdades, como uma mulher no topo da cadeia alimentar acostumada a ver os seus "filhos" virarem as costas para o "movimento". A crítica ganha um contexto mais político e universal, no entanto, no momento em que se direciona aos alienígenas. Brincando com os símbolos do conservadorismo, o andrógino líder parece uma mistura da Rainha Elizabeth com a "dama de ferro" Margaret Thatcher, Mitchell se insurge através dos extraterrestres contra a imposição parental, contra a "castração" da liberdade juvenil, contra os perigos da perpetuação no poder, transformando a dissidente em potencial Zan como o símbolo máximo da sua visão de anarquia. Uma abordagem mais sentimental, mais individual e menos politizada. 


Impulsionado pelas magnéticas performances do casal Elle Fanning e Alex Sharp, pelo ecleticismo da envolvente trilha sonora, pela energia multicolorida da fotografia de Frank G. De Marco (Até o Fim) e pelo esperto senso de humor do roteiro, How To Talk a Girl at Parties (no original) é o tipo de filme que nasceu para ser 'cult'. Embora flerte com o pretensiosismo aqui ou ali, John Cameron Mitchell entrega uma experiência dinâmica recheada de símbolos, uma película com um ritmo próprio, uma identidade singular e uma peculiar história de amor. Pena que títulos assim, mesmo sob a inventiva chancela da produtora A24, cada vez mais tenham menos espaços nas grandes "janelas" de exibição. 

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