segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

O que a reação de irritação do diretor Spike Lee tem a dizer sobre a vitória de Green Book no Oscar 2019

Foto: Getty Images
Bastou Green Book: O Guia levar o Oscar de Melhor Filme para as críticas ao longa recomeçarem a ganhar força nas redes sociais. Algumas muito justas. A reclamação dos familiares de Don Shirley quanto a veracidade dos fatos, em especial, me fez enxergar o filme com novos olhos. Outras um tanto quanto distorcidas. A que mais me incomoda é que estamos diante de um filme racista. Não vejo sentido algum neste discurso. Isso é uma ofensa a marcante performance de Mahershala Ali, a mensagem de respeito às diferenças que a trama traz e a maneira com que o longa dirigido por Peter Farrely ressalta a ignorância por trás do preconceito. A abordagem talvez não seja das mais complexas, o filme peca ao não se aprofundar como deveria na psique do músico, mas a jornada dos dois protagonistas é arquitetada com solidez, tridimensionalidade e fidelidade a realidade da época. Não podemos, porém, ser ingênuos. Num ano em que o magistral Infiltrado na Klan esmurrou o estômago do espectador com uma crítica poderosa ao racismo na sociedade norte-americana, triunfou o drama racial dirigido por brancos, produzidos por brancos e narrado sob a perspectiva de um homem branco. Por mais que as boas intenções da obra e as suas virtudes narrativas sejam claras, o fato é que mais uma vez uma película que teoricamente deveria defender a diversidade não conseguiu colocá-la em prática. Não conseguiu alcançar aqueles que deveriam se sentir representados. O que fica bem claro, de fato, quando percebemos a falta de pluralidade no palco da "festa" de Green Book. Confesso que, embora o filme em si tenha ficado longe de causar uma sensação semelhante em mim, ao ver aquela cena  (foto abaixo) fiquei com um gosto amargo. É duro observar que, em pleno 2019, mesmo com Infiltrado na Klan e Pantera Negra entre os indicados, a Academia ainda acha que um filme dirigido por um homem branco sobre o racismo tem mais a dizer do que um filme dirigido por um homem negro sobre o racismo. Isso, obviamente, para não falar da diferença de qualidade entre as obras.


Foto: Reprodução TV
A reação de irritação de Spike Lee ao anúncio da vitória de Green Book, entretanto, mostra que a questão tem raízes mais complexas do que parecia ser. No momento em que um legendário realizador negro, que ao longo da sua carreira se tornou um expoente do cinema negro, se sente tão incomodado a ponto de sequer ouvir o discurso de agradecimento dos vitoriosos, percebemos que essa é uma ferida ainda dolorosa para muitos dentro da indústria. E aqui, por estar longe da minha zona de fala, eu sequer me arrisco a opinar. Como podemos ver no flagra do crítico Denizcan Grimes, que estava na plateia durante o Oscar 2019, Lee (de roxo) levantou durante o discurso da vitória de Green Book e rumou para a saída (foto abaixo). Mais uma vez, mesmo após anos entre os maiores dentro da indústria, o realizador via a sua voz ser "esnobada" pela Academia. Isso porque, lá atrás, em 1990, o então novato Spike Lee teve que assistir o seu magnífico Faça a Coisa Certa ser derrotado na mesma categoria pelo drama racial "quadradão" Conduzido Miss Daisy. Na época, óbvio, a questão da representatividade dentro da Academia era muito mais problemática. Muito menos debatida. O pensamento era (infelizmente) outro. Mais arcaico. Hoje, porém, nada justifica. Quase trinta anos depois, Lee e o seu Infiltrado na Klan, que, a rigor, nem era o favorito na categoria, viu um filme com a mesma temática racial, inferior e dirigido por um homem branco levar outra vez o Oscar de Melhor Filme. Tinha Roma, A Favorita, Pantera Negra... Venceu Green Book. Em outras palavras, uma afronta que, desta vez, ele não pôde aguentar. E com completa razão. Na entrevista pós-Oscar, Lee tentou usar o humor. "Toda vez que alguém está conduzindo alguém, eu perco.", disse o diretor com uma risada no final da sentença. "Eles mudaram o arranjo dos assentos.", foi a segunda resposta irônica de Lee a uma nova pergunta sobre a relação com Conduzindo Miss Daisy. Ao se indagado sobre a sua reação ao triunfo de Green Book, ele foi curto e grosso. "Você sabe o porquê", expressou com certo desconforto. 


Na sua última resposta, porém, Spike Lee foi feroz e enfático como só ele sabe ser. "Quer tenhamos ganho o Oscar de Melhor Filme ou não, este filme (Infiltrado na Klan) resistirá ao teste do tempo no lado direito da história.", sentenciou o diretor para logo depois finalizar a entrevista (veja ela completa aqui). Boom! Como já havia escrito na minha crônica sobre o Oscar 2019 (leia aqui), no final os grandes filmes sempre vencem. E eu compartilho da mesma convicção de Spike Lee neste caso. Assim como Faça a Coisa Certa permaneceu vibrante, atual e influente até os dias de hoje, Infiltrado na Klan traz consigo algo que nenhum grande prêmio pode dar. Um misto de originalidade, verve crítica, relevância e autenticidade que só alguém que verdadeiramente experimentou o que está impresso em tela poderia contar. E, neste sentido, é até injusto comparar Green Book com Infiltrado na Klan. Enquanto o primeiro (volto a frisar, de maneira bem-intencionada) enxerga o copo meio cheio, o segundo pega o copo, quebra o copo com as próprias mãos e num misto de raiva e indignação é enfático ao escancarar as mais violentas sequelas do racismo e da intolerância. Tal qual seu filme, Spike Lee não parece mais tolerar esse tipo de situação e a sua reação deixa claro que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas ainda está longe de reconhecer a verdade das minorias. Apesar dos nítidos indícios de pluralidade e diversidade que a edição 2019 do Oscar trouxe, o próprio Lee reconheceu os ventos da mudança nas últimas edições na entrevista, ainda não foi desta vez tivemos a certeza que o estado das coisas parece próximo de uma mudança definitiva. 

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