É difícil não gostar de uma obra
como Green Book. Quase impossível. Estamos diante de uma fascinante história
real conduzida com muito coração que, embora subaproveite algumas
oportunidades, cumpre as expectativas ao escancarar a face mais estúpida do
preconceito. Sob a surpreendente batuta de Peter Farrelly, das escrachadas
comédias Debi e Lóide (1994) e Quem Vai Ficar com Mary (1997), o edificante
longa inspira ao narrar a jornada de dois homens de raízes diferentes unidos
pelo acaso, refletindo sobre os efeitos da segregação racial nos EUA em um
‘road-movie’ denso e revigorante. Uma obra que, apesar dos seus nítidos
predicados estéticos e narrativos, encontra a sua força nas expressivas
performances de Viggo Mortensen e Mahershala Ali, magníficos ao darem uma
comedida voz ao drama de muitos em uma realidade ora revoltante e
desconcertante, ora tenra e amistosa.
O grande trunfo de Green Book está na maneira com que o argumento assinado pelo trio Nick Vallelonga, Brian Currie e pelo próprio Peter Farrelly rompe com o maniqueísmo. Embora pese a mão em um ou dois momentos na tentativa de expor o preconceito enraizado na sociedade norte-americana na década de 1960, o argumento é astuto ao vilanizar o racismo e não os racistas. A segregação racial é tratada como algo (infelizmente) quase cultural, um odioso traço social que se torna mais latente à medida que a jornada dos protagonistas invade o “coração” da América. O que fica bem claro quando conhecemos o persuasivo Tony Vallelonga (Viggo Mortensen), um “leão de chácara” de uma popular boate nova iorquina que não fazia nada para mudar o arquétipo do italiano "carcamano". Ele era bruto quando tinha que ser, esperto quanto tinha que ser, preconceituoso quando tinha que ser. Tony simplesmente parecia agir como todos que estavam a sua volta esperava. Ao longo da trama, entretanto, Peter Farrelly é astuto ao expor a incoerência, ao mostrar o que levava um fã da música negra (Chuck Berry, Aretha Franklin), respeitoso no trato diário com os “homens de cor”, a ter atos de puro (e velado) racismo. Medo? Desconfiança? Desconhecimento? Sem a intenção de dar respostas, o realizador é cuidadoso ao não só desconstruir os pré-conceitos do personagem, mas principalmente ao escancarar o quão superficiais eram esses sentimentos. Por mais que o fato do filho de Tony ser um dos roteiristas explique a (óbvia) visão afetuosa com que o protagonista é estudado, Farrelly é astuto ao não perder a oportunidade de refletir sobre a ignorância por trás do preconceito, ao escancarar o vazio acerca de tudo isso, tratando a sincera amizade entre o motorista e o pianista como o símbolo da mudança de mentalidade que viria a tomar conta dos EUA nos anos seguintes.
Com isso, porém, não quero dizer
que Green Book pegue leve quando o assunto é a reprodução da rotina de
segregação e ódio racial presente na América dos anos 1960. Fiel aos fatos,
Peter Farrelly é cuidadoso ao escancarar, a partir da turnê do pianista Don Shirley (Mahershala Ali) pelo sul dos EUA, a dolorosa situação enfrentada pelos
negros numa sociedade em que o racismo era legalizado. Uma abordagem dura que
ganha contornos singulares quando observada a partir da perspectiva de um
afro-americano “privilegiado”. Com inesperada sutileza para os padrões da sua
filmografia, o realizador norte-americano provoca um misto de sensações ao tentar entender a posição do músico. Um virtuoso do piano que,
disposto a dar a sua interpretação para os “clássicos dos brancos”, não queria
ser mais um Little Richard ou Sam Cooke. Ainda que, num primeiro momento,
Shirley soe um tanto quanto pedante e egocêntrico, Farrelly não perde tempo ao
investigar além da casca. Ao ouvir a voz de um homem nobre que não queria
pertencer a nichos, que lutava para fazer a diferença, para quebrar tabus e
barreiras. O que faz todo o sentindo no momento em que descobrimos os motivos
pelo qual um talentosíssimo e estabelecido músico se viu tentado a tocar em
território hostil para a sua etnia.
Num cenário tão vil e agressivo, é interessante
ver como o público que aplaudia os shows de Don Shirley era o mesmo que não
aceitava que ele usasse o banheiro da sua casa, que compartilhasse da mesma
refeição que todos os convidados. No final das contas, por trás das grandes
apresentações, do terno caro, do carro luxuoso, da bajulação e da condescendência
ele era apenas mais um negro aos olhos daquela sociedade. Uma degradante rotina
de contrastes e lutas diárias exploradas com brilhantismo por Peter Farrelly. Uma
pena que, na ânsia de se concentrar na perspectiva de Tony e na espirituosa
relação de amizade entre os dois, o argumento perca a oportunidade de realmente
investigar os conflitos mais íntimos de Shirley. Do pianista solitário
consciente que, apesar da coragem de encarar os seus perseguidores ao longo da
turnê, estava longe de viver a mesma realidade dos seus irmãos. Embora Farrelly
explore com habilidade o misto de embaraço e peso dos ombros do protagonista,
apenas em um momento, na magistral cena da chuva, o roteiro consegue expor as
verdadeiras agruras do musicista. Uma sequência impar que reforça a falta de
contundência do longa quando o assunto é o tema em questão. A impressão que
fica, inclusive, é que Mahershala Ali entrega bem mais do que o texto parecia
exigir do personagem, conferindo peso e complexidade numa interpretação à altura
da postura do pianista.
Como disse lá em cima, no
entanto, a força motora de Green Book está na revigorante relação de amizade
entre Tony Lip e Don Shirley. Indo de encontro, por exemplo, ao maniqueísmo
de títulos como o cativante Conduzindo Miss Daisy (1989), é legal ver a
presença de espírito de Peter Farrelly ao não colocar os protagonistas em
posições diametralmente opostas dentro da história. Os dois são mais parecidos
do que eles achavam ser, ambos têm falhas e virtudes, o que só torna a dinâmica
entre eles mais fascinante para o público. Embora em posições raciais\sociais
diferentes, Lip e Shirley logo percebem que tem muito a extrair desta
improvável jornada pela América sulista. Por mais que, inicialmente, a polidez
erudita do pianista se sobreponha a rudez prestativa do motorista, aos poucos
as valências da equação se invertem. Mesmo convicto das suas atitudes e da sua
firme postura enquanto negro, algo que, felizmente, nunca é contestado pelo
roteiro, Doc tem muito a aprender também com a humanidade de Vellalonga, com o
seu rígido senso de lealdade e apreço a família. Uma postura tipicamente
italiana que, aqui, é explorada com sutileza e um esperto senso de humor. Vide
a troca de cartas entre ele a sua afetuosa esposa vivida pela carismática Linda
Cardellini. Além disso, Farrelly esbanja maturidade ao desconstruir o
preconceito do motorista a partir das degradantes experiências dos dois em
território segregado. Ao invés de tratar a troca de experiências no convívio
diário como o grande elo entre os dois, o longa é perspicaz ao valorizar pura e
simplesmente a noção de empatia do motorista, ao revelar o quão duro é sentir
na pele o ódio e a violência. A injustiça e a indignação surgem aqui como o
agente transformador, mostrando a importância de nos colocarmos no lugar
daqueles que sofrem, daqueles que são perseguidos, daqueles que são agredidos.
Uma mensagem valorizada pelas
soberbas performances de Viggo Mortensen e Mahershala Ali. Comprovando ser
capaz de interpretar qualquer personagem, a estrela de O Senhor dos Anéis e do
recente Capitão Fantástico contorna os arquétipos ao interpretar um italiano
durão capaz de aprender com as diferenças. Por mais que, inicialmente,
Mortensen pareça carregar demais nas expressões e trejeitos do seu Tony, aos
poucos tudo começa a soar mais natural, principalmente quanto o eclético ator
consegue exprimir as nuances sentimentais do motorista. Por trás da rudeza
impositiva de Lip existe um homem afetuoso, compreensivo, por vezes estúpido,
mas nunca insensível. Uma performance cativante, principalmente pela franqueza
com que Mortensen exibe o melhor e o pior do seu Tony. O fato, porém, é que
mais uma vez que rouba o show é Mahershala Ali. Com um personagem desafiador em
mãos, o intenso ator eleva o nível do texto ao realçar a face mais humana do
seu Don Shirley. Ele consegue absorver o misto de virtuosismo, nobreza,
presunção, bravura e fragilidade do pianista com extrema naturalidade, se impondo
em cena com rara categoria. O que só reforça a minha tese que ele deveria ser o
grande protagonista desta história.
Enfim, impulsionado pela extraordinária
química entre Viggo Mortensen e Mahershala Ali, Green Book: O Guia se esquiva dos vícios das
agridoces comédia dramáticas ao se revelar uma produção consciente da sua
responsabilidade. Com uma direção de arte competente e arrepiantes números
musicais, Peter Farrelly rompe com o histrionismo cômico das suas principais
obras ao investir num drama racial comedido, recheado de virtudes narrativas,
que encanta ao reverenciar os transformadores efeitos de uma singela amizade.
Uma simples mudança de perspectiva e tudo passa a fazer um novo sentido.
Atualização: Não gosto de alterar a crítica dos filmes aqui postados. Acho que o texto acima reflete a minha opinião no dia em que assisti ao longa, o sentimento de quem havia lido bem pouco sobre a produção. Um fato recente, porém, me incomodou bastante e mudou parte da minha perspectiva sobre a obra. Há alguns poucos dias, a família do biografado Don Shirley fez críticas pesadas a exatidão dos fatos revelados. Segundo eles, o pianista não foi bem retratado e muitas das verdades defendidas pelo filme eram equivocadas. Óbvio que, em alguns casos, não é fácil para os familiares ver uma figura tão importante ter a sua intimidade exposta na tela grande e numa película de grande repercussão. Pelo que li, no entanto, os questionamentos aqui fazem muito sentido. E isso, por si só, já prejudicou a minha visão sobre Green Book. Sigo achando um filme com virtudes e brilhantemente atuado. O problema é que, com estas novas informações, a impressão que fica é que estamos diante de uma ficção, e não uma cinebiografia. Não dá para um obra inspirada em fatos apostar na distorção de situações. Tomar grandes liberdades criativas. Vide o recente Bohemian Rhapsody. No momento em que pessoas próximas a Don Shirley não se sentiram representados, a sensação que fica é que algo no longa não funcionou. Ou seja, sob esta nova perspectiva, fico com a certeza que Green Book é bem resolvido enquanto ficção, enquanto uma cativante e inspiradora história de amizade numa América segregada, mas não como uma cinebiografia, como o retrato de um pianista obrigado a enfrentar uma realidade que (felizmente) ele já não precisava mais encarar diariamente.
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