domingo, 10 de fevereiro de 2019

Crítica | Dumplin’

A tênue linha entre a autoaceitação e a autoestima

Eu cresci num mundo em que era preciso se encaixar para passar ileso. Uns centímetros a menos, bullying! Uns quilinhos a mais, bullying! Um passo em falso, bullying! Escondido na aparente inocência de algumas “piadas” estava o deboche, a sensação de superioridade, a ignorância, o preconceito. Por mais que os educadores tentassem empurrar esse clichê, ser diferente no ambiente escolar não era normal, não era “aceitável”. Muito pelo contrário. As vezes poderia ser uma experiência bem incomoda e dolorosa. Um cenário que, infelizmente, parece ter mudado pouco. Diante da evidente toxicidade impressa em muitos filmes e séries, inclusive, a impressão que fica é que as coisas só pioraram com o efeito invasivo das redes sociais na rotina dos adolescentes. Uma sensação que só ajuda a validar filmes como o agradável Dumplin’, um autoafirmativo ‘coming of age movie’ cuidadoso ao realçar a importância de nos aceitarmos como somos. Por mais que a formulaica estrutura narrativa torne tudo muito previsível, a competente diretora Anne Fletcher (do ótimo A Proposta) esbanja sinceridade ao narrar as desventuras de uma jovem mulher fora dos padrões de beleza obrigada a olhar para si própria na tentativa resgatar a sua autoestima. Impulsionada pela cativante presença da expressiva Danielle Macdonald (Patty Cake$), a ‘dramédia’ envolve ao ir além do batido “seja você mesmo”, investigando as agruras de uma garota incapaz de enxergar o seu próprio valor com humor, coração e muita verdade. 



Muito mais do que o urgente tema central do longa, o grande diferencia de Dumplin’ está na astúcia com que a produção original Netflix expõe o quão tênue pode ser a linha entre a autoestima e a autoaceitação. Inspirado no livro de Julie Murphy, o roteiro assinado por Kristie Han se encanta pela universalidade do tema ao criar uma protagonista extremamente reconhecível. Uma jovem comum acostumada a esconder os seus reais sentimentos na casca criada para se proteger do bullying e da maldade alheia. Sob uma perspectiva superficial, a carismática Willowdean (Danielle Macdonald) se revelava uma garota forte e determinada preparada para reagir ao ambiente tóxico que sempre a cercou. Ao lado da sua fiel amiga de infância Ellen (Odeya Rush), ela tinha tudo o que achava necessário para ser feliz e superar a perda da sua querida tia\mentora Lucy (Hilliary Begley). Nem a sua magérrima mãe, a vaidosa e pouco atenciosa ex-miss Rosie (Jennifer Aniston), parecia assustá-la tanto assim. Prova disso é que, cansada de conviver com as piadinhas e as imposições de um mundo fútil e esbelto, Willowdean resolve desafiar os padrões tão estimados pela sua figura materna ao se inscrever no concurso de beleza juvenil organizado por Rosie. O que era para ser um ato de rebeldia, entretanto, ganha contornos mais densos à medida que Willow se vê obrigada a conviver com uma realidade que não julgava ser sua, encarando os seus próprios medos e inseguranças ao se deparar com uma crise de autoaceitação.


Sem a intenção de se sustentar nos clichês autoafirmativos citados no primeiro parágrafo, Dumplin’ cativa ao encontrar no padronizado concurso de beleza o trampolim para a construção\desenvolvimento de uma personagem bem mais complexa do que parecia ser. Embora o filme não se faça de rogado ao seguir uma estrutura de atos previsível dentro do gênero,  Anne Fletcher compensa ao se concentrar na verdade de Willowdean, nos sentimentos de uma garota forte o bastante para cativar\conquistas, mas também insegura o bastante para perder\afastar. O foco, aqui, não está somente na questão da autoestima. Até porque, inicialmente, a protagonista não se mostrava nada abalada com a rotina de bullying e provocações. Dentro do mundinho dela, do nicho em que ela se acostumou a viver, Willow parecia imperar, parecia ser a senhora do seu destino. Não demora muito, porém, para o longa tocar na verdadeira ferida. Basta um desajuste, uma palavra mal dita, uma declaração inesperada, para que toda a sua confiança se dilua diante da incapacidade dela em se assumir merecedora de tanto afeto. Por mais que o longa seja objetivo ao expor a toxicidade do ambiente escolar, o grande diferencial deste ‘coming of age movie’ está na capacidade do script em mostrar como as vezes o problema está dentro de nós mesmos. Por trás da jovem mulher convicta e inteligente existiam as feridas, existia a desconfiança. Sem querer revelar muito, Fletcher eleva o nível da obra ao investigar a crise de identidade de Willow a partir das suas relações mais íntimas, entre elas com a sua querida (e bela) amiga vivida pela magnética Odeya Rush, com o seu comunicativo ‘affair’ interpretado pelo charmoso Luke Benward e com a sua saudosa tia.


É neste singelo arco familiar, aliás, que Dumplin’ alcança as suas notas mais emotivas. Um predicado potencializado pela capacidade de Anne Fletcher em trabalhar o elemento do personagem ausente. Mesmo com pouquíssimo tempo de tela, a radiante tia\figura materna interpretada por Hilliary Begley é inteligentemente transformada na bússola moral de Willowdean, uma mulher vibrante que permanece presente e influente na jornada da protagonista meses após a sua morte. Mais do que uma artimanha sentimentalista, a personagem tem muito a dizer e acrescentar ao arco desta jovem mulher, muito em função da sagacidade do roteiro em torna-la um agente catalisador dos dramas explorados pelo longa. O que fica bem claro, em especial, quando Willow e as suas novas amigas Millie (Maddie Baillio, puro carisma) e a impagável Hannah (Bex Taylor-Klaus, olho nela) decidem visitar um lugar tão estimado para ela, refrescando a trama ao trazer bem-vindos novos elementos ao arco central. Num todo, aliás, chama a atenção o esmero do argumento em construir o honesto elo entre os personagens, valorizados por diálogos sólidos e em sua grande maioria sinceros. Além disso, através da persona da tia Lucy, Fletcher encontra a ponte perfeita para trazer a estrela da música country Dolly Parton para o centro da trama, algo que casa perfeitamente com o teor feminino proposto pelo longa, principalmente por se tratar de uma cantora que ao longo da sua carreira se acostumou a dar voz a uma geração de mulheres americanas.


Uma pena que, um dos maiores atrativos do longa, a figura materna interpretada por Jennifer Aniston seja tão subaproveitada. Embora a ex-miss ganhe na transição para o último ato nuances bem mais densas e emotivas, toda a rixa comportamental entre mãe e filha rende bem pouco, se revelando, para a minha surpresa, um dos pontos mais fracos da obra. Somado a isso, fica claro que Dumplin’ se estica demais no terço final. Na tentativa de “humanizar” o concurso de beleza, Anne Fletcher acerta em não zombar dos sonhos daquelas que queriam disputar o posto de mais bela, em não se render ao maniqueísmo, mas escorrega nos clichês e na condescendência ao forçar uma barra que não condiz com a realidade dos concursos. Um pouquinho da incorreção de Pequena Miss Sunshine (2008), aqui, não faria mal algum. Em suma, leve, singelo e divertido, Dumplin’ cativa ao desvendar os obstáculos pessoais enfrentados por uma jovem em busca da autoaceitação. Cuidadosa ao não reduzir tudo a transformação estética, Fletcher se distancia dos clichês do estilo Miss Simpatia (2000) ao dar voz a jovem insegura, fragilizada, que, de tanto sofrer com a gordofobia e a maledicência, esqueceu de acreditar na sua própria beleza.


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