domingo, 18 de março de 2018

Patti Cake$

Música, alma e verdade

Boyhood (2014), Whiplash (2014), Ex_Machina (2015), Dope (2015), Moonlight (2016), Corra! (2017), Colossal (2017), Bom Comportamento (2017), Lady Bird (2017), A Ghost Story (2017), Projeto Flórida (2017)… Nenhum outro segmento tem produzidos tantos ‘hits’ quanto o cinema ‘indie’ norte-americano. Com poucos recursos e grandes ideias, realizadores como Richard Linklater, Alex Garland, Barry Jenkins, Greta Gerwig, David Lowery e Jordan Peele encontraram neste gênero uma espécie de refúgio, um espaço em que as ideais originais ganham forma sem a tão preocupante necessidade de fazer dinheiro. Embora alguns filmes citados acima também tenham lucrado muito nas bilheterias, o fato é que o mercado ‘indie’ tem dado a liberdade necessária para que grandes histórias possam sair do papel. Produzido pelo brasileiro Rodrigo Teixeira, da já respeitada RT Features (Me chame pelo seu Nome), o adorável Patti Cake$ merece figurar nesta seleta lista. Sob a enérgica batuta Geremy Jesper, reconhecido por dirigir clipes de estrelas como Selena Gomez e Florence + The Machine, o longa estrelado pela carismática Danielle MacDonald encanta ao dar voz aos “vira latas” da música. Na sua estreia em longas-metragens, o realizador mostra pulso narrativo ao acompanhar os sonhadores passos de uma aspirante a rapper “fora dos padrões de beleza” obrigada a encarar a dura realidade que a cercava. No embalo da extraordinária trilha sonora, recheada de letras atuais e uma original sonoridade, Jesper entrega uma película com alma, um longa por vezes clichê, mas em sua maioria crítico, enérgico e realístico. 


Embora o roteiro siga um caminho marcado por algumas generosas concessões narrativas típicas do universo blockbuster, Geremy Jasper o faz imprimindo verdade em cada segundo de projeção. Os diálogos são honestos. O drama familiar naturalmente comovente. Os personagens são multidimensionais. Os cenários são habitáveis. O contexto é socialmente opressor. Tudo parece condizente com a rotina de uma jovem de classe média acima do peso, filha de uma mãe divorciada, que tenta correr atrás dos seus sonhos enquanto precisa ajudar no sustento da sua disfuncional família. Impecável ao estabelecer o sincero vínculo entre os cativantes personagens, o longa narra a trajetória da dedicada Patti (Danielle Macdonald), a.k.a Patti Cake$, a.k.a Kill P, uma jovem apaixonada pelo rap que desejava seguir os passos do seu ídolo\mestre O-Z (Sahr Ngaujah) e se tornar uma gigante da música. Ao lado do seu grande parceiro, o esforçado Jheri (Siddharth Dhananjay), ela contava com o suporte da sua querida avó, a fragilizada Nana (Cathy Moriarty), e o descrédito da sua decadente mãe, a desiludida Barb (Bridget Everett). Diante do preconceito e da desconfiança geral, ela tentava se livrar do rótulo de piada, mas esbarrava na falta de oportunidades e nas dificuldades que a cercava. Disposta a agarrar a sua chance, Patty cruza o caminho do excêntrico Basterd (Mamoudou Athie), um jovem talentoso e anarquista que parece ser o único a reconhecer o seu talento. Numa parceria improvável, os dois se unem a Jheri na tentativa de gravar a sua tão cobiçada demo, sem sequer desconfiar de o quão cruel pode ser o mundo do show biz. 


Com a sua enérgica câmera na mão e os seus enquadramentos fechados, Jasper é astuto ao extrair o naturalismo presente no texto sem sacrificar o vigor estético do longa. Transitando habilmente entre o sonho e a realidade, o realizador realça os contrastes em torno da jornada de Patty ao traduzir visualmente os altos e baixos da protagonista, criando uma dinâmica original ao aliar as cores e o ritmo da linguagem dos videoclipes à veracidade intimista do tom documental. Por mais que o argumento se sustente em algumas soluções convenientes, que, diga-se de passagem, injetam um teor fabulesco à trama, como se estivéssemos diante de um conto de fadas urbano, o diretor esbanja maturidade ao transitar por temas espinhosos com delicadeza e profundidade. Com um roteiro recheado de pequenos e interessantes arcos, Jasper é inicialmente habilidoso ao se debruçar sobre a instável relação entre Patty e a sua mãe. Impulsionado pela latente química entre as duas, o diretor é cuidadoso ao criar o choque entre as duas, reforçando os porquês de tamanha rixa ao estabelecer a proximidade entre as duas personagens. Indo além da simples questão afetiva, é legal ver o esmero do texto ao aproximar esta relação do universo fonográfico, explorando as desilusões e os medos de uma figura materna falha que acreditava que a filha estava próxima de repetir os seus erros do passado. 


Embora não seja uma abordagem propriamente nova, muito pelo contrário, Geremy Jasper revigora esse plot ao colocar o amor pela música na equação, evidenciando não só as semelhanças (inclusive física) entre elas, como também as diferenças que as separavam. Na verdade, ao espelhar as trajetórias de mãe e filha, ele encontra as brechas necessárias para questionar o preconceito, a falta de oportunidade, o vazio nas letras e as barreiras impostas por uma indústria sedenta por corpos esbeltos e pela pasteurização sonora. Uma crítica inteligente e atual que diz muito, principalmente por se tratar de um diretor que até pouco tempo estava prestando os seus serviços para os gigantes do showbiz. Por mais que em poucos momentos o roteiro pese a mão, algumas ofensas parecem milimetricamente pensadas para tornar a jornada de amadurecimento da protagonista mais “saborosa” aos olhos do público, Jasper vai no cerne da questão ao valorizar os “vira latas”, os “diferentes”, se insurgindo contra os clichês estéticos ao sair em defesa do talento, da alma do artista. Um sentimento puro e recorrente ao longo das envolventes 1 h e 40 min de projeção. 


O grande diferencial de Patti Cake$, porém, está no zelo do roteiro na construção dos seus magnéticos personagens. Com inocência, ímpeto juvenil e uma maledicência típica do segmento musical, Danielle MacDonald encanta ao criar uma protagonista forte e resiliente. A heroína da representatividade. Além de soltar a voz nas velozes rimas urbanas, a promissora atriz interioriza os dramas da sua Patty com intensidade e honestidade, convencendo ora como um tipo frágil e humano, ora como uma música talentosa e radiante. Numa magnífica escalação de elenco, Bridget Everett enche a tela de sentimento ao viver a complicada Barb. Como se não bastasse a espantosa semelhança física entre as duas, a atriz esconde na desilusão da sua personagem um emocionante traço de esperança, como se ali, por trás de um corpo castigado pelo tempo e pelo álcool, existisse uma mãe zelosa, uma mulher vaidosa e um talento bruto. Enquanto Everrett reforça a carga dramática do longa, a experiente Cathy Moriarty surge em tela envelhecida como a compreensiva Nana. Muito mais do que um simples alívio cômico, a avó surge como uma espécie de equilíbrio nesta balança, a voz de conforto num momento de evidente crise familiar. O mesmo, aliás, podemos dizer do otimista melhor amigo vivido por Siddharth Dhananjay, adorável na pele de um músico mediano disposto a ajudar Patty na busca por seus sonhos. Quem realmente rouba a cena, porém, é o introspectivo Mamoudou Athie. Na pele de um tipo soturno e anárquico, o talentoso ator convence tanto como o elemento mais sábio da película, quanto como um talento discreto escondido no anonimato, enfatizando o viés disfuncional defendido pela trama ao criar uma persona singular. 


Inspirado por títulos como Escola do Rock e No Ritmo de um Sonho, Patti Cake$ cumpre as expectativas também quando o assunto é a ferocidade sonora. Enquanto a empolgante trilha base composta por Jason Binnick e pelo próprio Geremy Jesper parece homenagear os grandiosos vocais do mestre Ennio Morricone em alguns momentos, as canções do grupo PBNJ transitam entre o rap, o hip hop e o rock com peso e autoralidade, refletindo o vazio geracional e alguns dos conflitos mais íntimos da protagonista com energia e uma linguagem completamente atual. Um predicado valorizado pela ritmada montagem, dinâmica ao capturar o envolvente processo de criação dos músicos e o nascer das suas criativas batidas. Dito isso, moderno, denso e naturalmente emocionante, Patti Cake$ exalta a verdade de um artista num meio corrosivo ao mostrar que música se faz com alma, com coração e que pode nascer dos lugares mais improváveis. O resultado é uma obra crítica e ao mesmo tempo otimista que, tal qual a sua personagem principal, traz consigo uma luz própria, uma chama capaz de aquecer e nos lembrar que existe vida fora do mercado blockbuster.

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