sábado, 5 de janeiro de 2019

Crítica | As Boas Maneiras

Muito mais que um filme de lobisomem


2018 não foi um grande ano para o cinema nacional. Enquanto a maior parte dos considerados blockbusters naufragaram nas bilheterias, os títulos mais autorais (como de costume) não conseguiram sequer chegar ao grande público. Aos poucos, porém, algumas destas produções começam a ganhar uma sobrevida no ‘streaming’. Taxado erroneamente como o filme de lobisomem nacional, As Boas Maneiras tem muito a dizer e também a mostrar. Numa fábula urbana recheada de camadas, o longa dirigido pela Marco Dutra e Juliana Rojas sai em defesa do potencial inexplorado do cinema de gênero brasileiro numa obra corajosa, poética e ao mesmo tempo implacável. Uma película instigante que, embora abra generosas brechas para a construção de uma preciosa crônica social\familiar, não titubeia ao trazer o horror para o centro para trama, fazendo jus ao status de “filme de monstro” ao oferecer aquilo que os fãs do segmento esperavam ver. E algumas outras coisinhas a mais. 

Dividido em duas metades completamente distintas, As Boas Maneiras é um “filme de autor” que não se faz de rogado ao replicar algumas das fórmulas mais tradicionais deste clássico segmento. Claramente influenciado pelos “monstros da Universal”, Marco Dutra e Juliana Rojas esbanjam astúcia ao urbanizar um arco indiscutivelmente tradicional, trazendo o fantástico para os dias de hoje ao narrar as desventuras de uma solitária mulher grávida (Marjorie Estiano) e da sua introspectiva cuidadora (Izabél Zuaa) quando misteriosos fatos passam a cercar o até então inofensivo feto. Ao longo da imersiva hora inicial, a dupla de realizadores é cuidadosa ao estreitar os laços entre as duas, ao construir uma relação que tem muito a acrescentar ao arco central. E isso sem nunca sacrificar o gradativo clima de Horror que cerca a jornada de ambas. Enquanto estabelece com maestria a mitologia por trás dos episódios bizarros envolvendo a futura mamãe Ana, Dutra e Rojas preenchem as múltiplas camadas da película ao trazer outros interessantes assuntos a trama, a maioria deles envolvendo o grito de independência de duas mulheres sufocadas pelas pressões sociais que as cercavam.



Com um afiado pulso narrativo e uma competente construção de personagens, a dupla de diretores cruza a linha da fantasia para a realidade ao tirar do papel duas mulheres castigadas pela vida. Fazendo um precioso uso dos símbolos, não demora muito para percebermos a sagacidade do roteiro ao, a partir da bizarra gestação, tecer um sutil comentário sobre o abandono, o preconceito e a vulnerabilidade feminina perante o machismo patriarcal que cercava a protagonista. No momento em que mais precisava, a ‘cowgirl’ Ana foi deixada sozinha, largada a sua própria sorte ao ver o seu senso de maternidade falar mais alto. Carente e assustada, ela encontra na figura da babá Clara muito mais do que um ombro amigo, uma mulher resiliente cansada de fugir e de viver de migalhas. Estamos diante de dois tipos complexos, com segredos e anseios reprimidos, que pouco a pouco encontram uma na outra a força para se reerguer. Inteligente ao permitir que o público preencha algumas das lacunas insinuadas pelo argumento, Dutra e Rojas extraem o máximo do contexto monstruoso, investigando as nuances sentimentais das duas personagens com um misto de intimismo e ferocidade. Inicialmente, a fera que nasce dentro de Ana surge como uma metáfora para o estado de espírito das duas, uma alegoria ora maternal (sob a perspectiva de Ana), ora sexual (sob a perspectiva de Clara) que tem muito a dizer sobre a dura realidade de muitas mulheres nos grandes centros urbanos. 


No momento em que As Boas Maneiras parecia perto de surfar a onda do cinema de horror mais reflexivo, uma corrente que tem sido muito presente no gênero nos últimos anos, Marco Dutra e Juliana Rojas surgem com uma reviravolta impactante que entrega tudo aquilo que um fã dos filmes de monstros gostaria de ver. Sem querer revelar muito, os preciosos efeitos práticos são explorados com brilhantismo no ponto de ruptura da trama, culminando em uma das sequências mais marcantes do cinema nacional em anos. Numa mudança de curso ambiciosa, que justifica as duas horas e quinze de película, a dupla de realizadores volta a pender para o terreno da fantasia ao projetar qual seria o destino deste inusitado recém-nascido na realidade em que vivemos. Indo de encontro ao viés intimista da primeira metade do longa, Dutra e Rojas revigoram a história ao seguir os passos do pequeno Joel (Miguel Lobo, esse personagem tinha que ser dele) e a reação do menino à sua peculiar identidade. Impecável ao (mais uma vez) ampliar a mitologia em torno da condição do garoto, os diretores reforçam o viés fabulesco da obra ao capturar o seu crescente desconforto diante da superproteção materna, estabelecendo uma nova (e disfuncional) dinâmica ao revelar o quão dura pode ser a missão de uma mulher sozinha obrigada a preparar uma criança para o mundo em que vivemos. Se num primeiro momento o show pertence a Marjorie Estiano, exuberante ao traduzir o misto de fragilidade, força e excentricidade da sua Ana, na transição para a hora final Izábel Zuaa assume as rédeas da trama com vigor, se tornando uma peça chave para a mensagem proposta pela produção. A primeira a identificar os perigos em torno da gestação, a intensa personagem surge como a única capaz de “domar” a pequena fera, um arco familiar denso que cresce consistentemente graças (também) a rigidez fraterna impressa pela atriz. Através do esforço de Clara em proteger o precoce Joel do seu destino, As Boas Maneiras traça um inspirado paralelo com a realidade dos mais jovens no ambiente urbano atual, um cenário hostil e perigoso em que um passo em falso pode ser fatal. Um contexto que casa perfeitamente com a primorosa cena final.



Mesmo com tantos predicados, entretanto, é preciso frisar que As Boas Maneiras tem os seus desníveis. E não, eu não estou me referindo ao irregular CGI. Embora a artificialidade dos efeitos salte aos olhos em alguns momentos, o que não chega a ser surpresa diante do baixo orçamento, é louvável o esforço da produção em entregar um personagem digital expressivo e convincente. Uma criatura singular que, quando necessário, consegue trazer uma pureza no olhar que não é fácil de ser concebida. Vide o comovente clímax. No que diz respeito ao visual, por sinal, o ponto baixo do longa fica pelo design de produção do cenário inicial, o apartamento de Ana, um ambiente impessoal que, apesar de ter alguns detalhes charmosos, não parece realmente abrigar duas pessoas. Por mais que o roteiro até tente justificar o aspecto ‘clean’ do imóvel, esta falha de acabamento é devidamente contornada pelo vistoso trabalho do experiente diretor de fotografia lusitano Rui Poças (Zama), delicado ao conferir uma leve atmosfera fria ao espaço sem prejudicar a aura lúdica da obra. Na verdade, o maior pecado do longa fica pelas pontuais dispersões narrativas do argumento. Em dois ou três momentos, Dutra e Rojas investem em soluções um tanto quando deslocadas, situações que, apesar de terem um significado, destoam do restante do filme. O que fica bem claro, em especial, no repentino número musical dentro do último ato, uma sequência bela, esteticamente refinada, mas pretensiosa, daquelas que testam as expectativas do público. Na transição para o clímax, aliás, o argumento também dá uma ligeira forçada de barra na tentativa de reverenciar um dos maiores clássicos do cinema de Horror, o marcante Frankenstein (1931), investindo numa solução conveniente que só não soa aleatória graças a mensagem por trás da já elogiada cena final e a integridade com que a dupla de diretores defende o viés fantástico proposto pela película.  



Um filme de lobisomem genuinamente feminino, o que por si só é uma grande sacada, As Boas Maneiras representa um passo adiante para o cinema nacional, uma produção ousada, elegante e inteligente capaz de refletir sobre alguns dos nossos enraizados problemas sociais sob uma perspectiva ao mesmo tempo clássica, doce e ironicamente monstruosa. Cuidadoso ao extrair o máximo do elenco infantil, em especial do intenso Miguel Lobo e do afetuoso Felipe Kenji, Marco Dutra e Juliana Rojas entregam um filme de monstro de respeito, uma obra que, como se não bastassem os seus múltiplos significados embutidos na alegoria sobrenatural, empolga ao soltar a sua fera sempre que possível. E tudo com um folclórico tempero tupiniquim e sem um pingo de vergonha. Um herdeiro natural de títulos como O Labirinto do Fauno (2006), Deixa Ela Entrar (2008), A Forma da Água (2018) e Um Lugar Silencioso (2018).

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