2018 não foi um grande ano para o
cinema nacional. Enquanto a maior parte dos considerados blockbusters naufragaram nas bilheterias, os títulos mais autorais (como de costume) não
conseguiram sequer chegar ao grande público. Aos poucos, porém, algumas destas produções começam a ganhar uma sobrevida no ‘streaming’. Taxado erroneamente como
o filme de lobisomem nacional, As Boas Maneiras tem muito a dizer e também a
mostrar. Numa fábula urbana recheada de camadas, o longa dirigido pela Marco
Dutra e Juliana Rojas sai em defesa do potencial inexplorado do cinema de
gênero brasileiro numa obra corajosa, poética e ao mesmo tempo implacável.
Uma película instigante que, embora abra generosas brechas para a construção de uma
preciosa crônica social\familiar, não titubeia ao trazer o horror para o centro
para trama, fazendo jus ao status de “filme de monstro” ao oferecer aquilo que
os fãs do segmento esperavam ver. E algumas outras coisinhas a mais.
Dividido em duas metades completamente distintas, As Boas Maneiras é um “filme de autor” que não se faz de rogado ao replicar algumas das fórmulas mais tradicionais deste clássico segmento. Claramente influenciado pelos “monstros da Universal”, Marco Dutra e Juliana Rojas esbanjam astúcia ao urbanizar um arco indiscutivelmente tradicional, trazendo o fantástico para os dias de hoje ao narrar as desventuras de uma solitária mulher grávida (Marjorie Estiano) e da sua introspectiva cuidadora (Izabél Zuaa) quando misteriosos fatos passam a cercar o até então inofensivo feto. Ao longo da imersiva hora inicial, a dupla de realizadores é cuidadosa ao estreitar os laços entre as duas, ao construir uma relação que tem muito a acrescentar ao arco central. E isso sem nunca sacrificar o gradativo clima de Horror que cerca a jornada de ambas. Enquanto estabelece com maestria a mitologia por trás dos episódios bizarros envolvendo a futura mamãe Ana, Dutra e Rojas preenchem as múltiplas camadas da película ao trazer outros interessantes assuntos a trama, a maioria deles envolvendo o grito de independência de duas mulheres sufocadas pelas pressões sociais que as cercavam.
Com um afiado pulso narrativo e
uma competente construção de personagens, a dupla de diretores cruza a linha da
fantasia para a realidade ao tirar do papel duas mulheres castigadas pela vida.
Fazendo um precioso uso dos símbolos, não demora muito para percebermos a
sagacidade do roteiro ao, a partir da bizarra gestação, tecer um sutil
comentário sobre o abandono, o preconceito e a vulnerabilidade feminina perante o
machismo patriarcal que cercava a protagonista. No momento em que mais
precisava, a ‘cowgirl’ Ana foi deixada sozinha, largada a sua própria sorte ao
ver o seu senso de maternidade falar mais alto. Carente e assustada, ela
encontra na figura da babá Clara muito mais do que um ombro amigo, uma mulher
resiliente cansada de fugir e de viver de migalhas. Estamos diante de dois
tipos complexos, com segredos e anseios reprimidos, que pouco a pouco encontram
uma na outra a força para se reerguer. Inteligente ao permitir que o público
preencha algumas das lacunas insinuadas pelo argumento, Dutra e Rojas extraem o
máximo do contexto monstruoso, investigando as nuances sentimentais das duas
personagens com um misto de intimismo e ferocidade. Inicialmente, a fera que
nasce dentro de Ana surge como uma metáfora para o estado de espírito das duas,
uma alegoria ora maternal (sob a perspectiva de Ana), ora sexual (sob a
perspectiva de Clara) que tem muito a dizer sobre a dura realidade de muitas mulheres
nos grandes centros urbanos.
No momento em que As Boas
Maneiras parecia perto de surfar a onda do cinema de horror mais reflexivo, uma
corrente que tem sido muito presente no gênero nos últimos anos, Marco Dutra e
Juliana Rojas surgem com uma reviravolta impactante que entrega tudo aquilo que
um fã dos filmes de monstros gostaria de ver. Sem querer revelar muito, os preciosos efeitos práticos são explorados com brilhantismo no ponto de ruptura da trama,
culminando em uma das sequências mais marcantes do cinema nacional em anos.
Numa mudança de curso ambiciosa, que justifica as duas horas e quinze de
película, a dupla de realizadores volta a pender para o terreno da fantasia ao
projetar qual seria o destino deste inusitado recém-nascido na realidade em que
vivemos. Indo de encontro ao viés intimista da primeira metade do longa, Dutra
e Rojas revigoram a história ao seguir os passos do pequeno Joel (Miguel Lobo,
esse personagem tinha que ser dele) e a reação do menino à sua peculiar
identidade. Impecável ao (mais uma vez) ampliar a mitologia em torno da
condição do garoto, os diretores reforçam o viés
fabulesco da obra ao capturar o seu crescente desconforto diante da
superproteção materna, estabelecendo uma nova (e disfuncional) dinâmica ao
revelar o quão dura pode ser a missão de uma mulher sozinha obrigada a preparar
uma criança para o mundo em que vivemos. Se num primeiro momento o show pertence
a Marjorie Estiano, exuberante ao traduzir o misto de fragilidade, força e
excentricidade da sua Ana, na transição para a hora final Izábel Zuaa assume as
rédeas da trama com vigor, se tornando uma peça chave para a mensagem proposta
pela produção. A primeira a identificar os perigos em torno da gestação, a intensa
personagem surge como a única capaz de “domar” a pequena fera, um arco familiar
denso que cresce consistentemente graças (também) a rigidez fraterna impressa
pela atriz. Através do esforço de Clara em proteger o precoce Joel do
seu destino, As Boas Maneiras traça um inspirado paralelo com a realidade dos mais
jovens no ambiente urbano atual, um cenário hostil e perigoso em que um passo
em falso pode ser fatal. Um contexto que casa perfeitamente com a primorosa cena
final.
Mesmo com tantos
predicados, entretanto, é preciso frisar que As Boas Maneiras tem os seus desníveis.
E não, eu não estou me referindo ao irregular CGI. Embora a artificialidade dos
efeitos salte aos olhos em alguns momentos, o que não chega a ser surpresa
diante do baixo orçamento, é louvável o esforço da produção em entregar um
personagem digital expressivo e convincente. Uma criatura singular que, quando
necessário, consegue trazer uma pureza no olhar que não é fácil de ser concebida.
Vide o comovente clímax. No que diz respeito ao visual, por sinal, o ponto baixo do
longa fica pelo design de produção do cenário inicial, o apartamento de Ana, um
ambiente impessoal que, apesar de ter alguns detalhes charmosos, não parece realmente
abrigar duas pessoas. Por mais que o roteiro até tente justificar o aspecto ‘clean’
do imóvel, esta falha de acabamento é devidamente contornada pelo vistoso
trabalho do experiente diretor de fotografia lusitano Rui Poças (Zama), delicado
ao conferir uma leve atmosfera fria ao espaço sem prejudicar a aura lúdica da
obra. Na verdade, o maior pecado do longa fica pelas pontuais dispersões narrativas
do argumento. Em dois ou três momentos, Dutra e Rojas investem em soluções um
tanto quando deslocadas, situações que, apesar de terem um significado, destoam
do restante do filme. O que fica bem claro, em especial, no repentino número
musical dentro do último ato, uma sequência bela, esteticamente refinada, mas
pretensiosa, daquelas que testam as expectativas do público. Na transição para o clímax, aliás, o argumento
também dá uma ligeira forçada de barra na tentativa de reverenciar um dos
maiores clássicos do cinema de Horror, o marcante Frankenstein (1931), investindo
numa solução conveniente que só não soa aleatória graças a mensagem por trás da
já elogiada cena final e a integridade com que a dupla de diretores defende o
viés fantástico proposto pela película.
Um filme de lobisomem
genuinamente feminino, o que por si só é uma grande sacada, As Boas Maneiras
representa um passo adiante para o cinema nacional, uma produção ousada,
elegante e inteligente capaz de refletir sobre alguns dos nossos enraizados
problemas sociais sob uma perspectiva ao mesmo tempo clássica, doce e ironicamente
monstruosa. Cuidadoso ao extrair o máximo do elenco infantil, em especial do intenso
Miguel Lobo e do afetuoso Felipe Kenji, Marco Dutra e Juliana Rojas entregam um
filme de monstro de respeito, uma obra que, como se não bastassem os seus múltiplos
significados embutidos na alegoria sobrenatural, empolga ao soltar a sua fera
sempre que possível. E tudo com um folclórico tempero tupiniquim e sem um pingo de
vergonha. Um herdeiro natural de títulos como O Labirinto do
Fauno (2006), Deixa Ela Entrar (2008), A Forma da Água (2018) e Um Lugar
Silencioso (2018).
Nenhum comentário:
Postar um comentário