quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Crítica | Uma Noite de 12 Anos

O inestimável valor da liberdade

Um verdadeiro manifesto em prol da liberdade e dos direitos humanos, Uma Noite de 12 Anos vai do choque a inspiração ao revelar as agruras de três "reféns" da ditadura militar uruguaia ao longo de uma excruciante década de prisão. Inteligente ao não levantar bandeiras partidárias, o desconcertante longa dirigido e roteirizado por Álvaro Brechner é enfático ao se insurgir contra a repressão imposta pelo regime militar na época, colocando os pingos nos is ao expor para o grande público as sequelas mais cruéis de um governo autocrata.

Sob a perspectiva de três sobreviventes deste período, entre eles o então presidente do Uruguai Pepe Mujica (Antonio de la Torre), o argumento impacta ao descortinar algumas verdades perigosamente contestadas nos últimos anos num drama genuinamente humano. Por mais que, ao longo dos bem introduzidos e por vezes engenhosos flashbacks, Álvaro Brechner se preocupe em situar o público quanto aos motivos que os levaram a tal situação, o foco da película está única e exclusivamente na resiliência dos protagonistas, na luta individual deles contra a opressão, a violência diária, a desumanidade e os traumáticos efeitos de tamanha covardia no seu estado físico\emocional. E isso, felizmente, sem nunca vitimizá-los. Em nenhum momento os ex-rebeldes são tratados como pobres coitados, como personagens dignos de pena. Além de capturar o senso de responsabilidade do trio diante da sua pena, Brechner é cuidadoso ao valorizar a dignidade dos presos, ao tentar entender quais armas eles utilizaram para sobreviver a doze anos de constante isolamento e condições sub-humanas.


Um tratamento pessoal que serve com brilhantismo a trama como um todo. Estamos diante de homens diferentes, com características próprias, separados por paredes de concreto e pela vigilância constante dos militares. Neste cenário, o diretor uruguaio é astuto ao dividir a trama em pequenos núcleos, permitindo que o público crie uma estreita conexão com o cada um deles. Talvez o grande chamariz do longa, o ex-presidente Pepe Mujica, por exemplo, ganha o arco mais denso entre os três. Consciente que seria impossível imprimir em tela todas as experiências vividas por ele durante esta década, Álvaro Brechner mostra um raro poder de síntese ao confiar na inteligência do espectador, misturando as linhas temporais do personagem em um ou dois momentos em sequências de rara inspiração. Como não citar, em especial, o flashback onírico de Mujica durante uma das suas fases de maior instabilidade emocional, uma sequência genial e incômoda que com cortes rápidos e desconexos nos dá a oportunidade de entender em alguns segundo tudo o que afligia aquele homem a beira de um ataque de nervos. Ponto para intensa performance de De la Torre, magnífico ao interiorizar os conflitos do prisioneiro de maneira quase sempre silenciosa.


O mesmo podemos dizer dos outros prisioneiros, o afetuoso Maurício Rosencof (Chino Darin) e o brioso Eleuterio Huidobro (Alfonso Tort), em duas performances igualmente complexas. Enquanto Mujica sucumbia drasticamente aos efeitos da tortura e da solidão, os dois buscam no seu passado um refúgio em meio ao caos, uma experiência íntima capturada com muita sensibilidade pelas lentes de Brechner. Além disso, é através de Rosencof que percebemos que do outro lado não só existiam tiranos covardes, uma abordagem multidimensional que só ajuda a reforçar o viés realístico do longa. O grande diferencial de Uma Noite de 12 Anos, entretanto, fica pela habilidade da obra em extrair momentos de impressionante beleza\singeleza em um cenário tão vil. Por trás das feridas, da esqualidez, da sujeira e da solidão existiam homens com força para seguir levantando, sonhando com a liberdade, lutando (a sua maneira) contra os seus algozes. O que falar, por exemplo, da sequência em que, por um raro instante, um dos prisioneiros ganha a oportunidade de admirar o horizonte, uma cena forte e emocionante capaz de sintetizar com clareza o sentimento que os movia durante esse período. Ou então da sequência ao som de uma versão arrepiante da canção The Sound of Silence. Dois daqueles momentos ímpares no cinema em 2018. Somado a isso, para a minha surpresa, Brechner arranca sinceras risadas (algumas gargalhadas, confesso) ao se concentrar também no aspecto mais tragicômico da situação, um cenário em que três homens "comuns" e claramente abatidos eram tratados como uma espécie de encarnação do mal em solo uruguaio.


Não se engane, porém, com essa aparente leveza. Até nestes momentos mais agridoces, o longa é incisivo ao escancarar a condição de miséria dos três, a deterioração ao longo do tempo, um processo árduo tratado com crueza e propriedade do primeiro ao último minuto de obra. No fim, por mais que o argumento passe com inadvertida pressa pelo passado revolucionário do trio, Uma Noite de 12 Anos é um drama poderoso justamente por nos lembrar da história que já foi escrita. Numa época em que as correntes pró-ditadura ganham uma silenciosa força, Álvaro Brechner vai além da figura de Pepé Mojica ao dar voz aos homens por trás das suas ideologias, ao capturar todo a dor e sofrimento impostos a eles, oferecendo uma visão íntima sobre o episódio ao mostrar a realidade como ela foi. Sem qualquer tipo de distorção partidária e reverência. O viés inspirador, na verdade, nasce do esforço do longa em não criar heróis e\ou símbolos. Em valorizar a pura resiliência humana perante as sombras e o devastador som do silêncio. 

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