Um verdadeiro manifesto em prol
da liberdade e dos direitos humanos, Uma Noite de 12 Anos vai do choque a
inspiração ao revelar as agruras de três "reféns" da ditadura militar
uruguaia ao longo de uma excruciante década de prisão. Inteligente ao não
levantar bandeiras partidárias, o desconcertante longa dirigido e roteirizado
por Álvaro Brechner é enfático ao se insurgir contra a repressão imposta pelo
regime militar na época, colocando os pingos nos is ao expor para o grande
público as sequelas mais cruéis de um governo autocrata.
Sob a perspectiva de três sobreviventes deste período, entre eles o então presidente do Uruguai Pepe Mujica (Antonio de la Torre), o argumento impacta ao descortinar algumas verdades perigosamente contestadas nos últimos anos num drama genuinamente humano. Por mais que, ao longo dos bem introduzidos e por vezes engenhosos flashbacks, Álvaro Brechner se preocupe em situar o público quanto aos motivos que os levaram a tal situação, o foco da película está única e exclusivamente na resiliência dos protagonistas, na luta individual deles contra a opressão, a violência diária, a desumanidade e os traumáticos efeitos de tamanha covardia no seu estado físico\emocional. E isso, felizmente, sem nunca vitimizá-los. Em nenhum momento os ex-rebeldes são tratados como pobres coitados, como personagens dignos de pena. Além de capturar o senso de responsabilidade do trio diante da sua pena, Brechner é cuidadoso ao valorizar a dignidade dos presos, ao tentar entender quais armas eles utilizaram para sobreviver a doze anos de constante isolamento e condições sub-humanas.
Um tratamento pessoal que serve
com brilhantismo a trama como um todo. Estamos diante de homens diferentes, com
características próprias, separados por paredes de concreto e pela vigilância
constante dos militares. Neste cenário, o diretor uruguaio é astuto ao dividir
a trama em pequenos núcleos, permitindo que o público crie uma estreita conexão
com o cada um deles. Talvez o grande chamariz do longa, o ex-presidente Pepe
Mujica, por exemplo, ganha o arco mais denso entre os três. Consciente que
seria impossível imprimir em tela todas as experiências vividas por ele durante
esta década, Álvaro Brechner mostra um raro poder de síntese ao confiar na
inteligência do espectador, misturando as linhas temporais do personagem em um
ou dois momentos em sequências de rara inspiração. Como não citar, em especial,
o flashback onírico de Mujica durante uma das suas fases de maior instabilidade
emocional, uma sequência genial e incômoda que com cortes rápidos e desconexos
nos dá a oportunidade de entender em alguns segundo tudo o que afligia aquele
homem a beira de um ataque de nervos. Ponto para intensa performance de De la
Torre, magnífico ao interiorizar os conflitos do prisioneiro de maneira quase
sempre silenciosa.
O mesmo podemos dizer dos outros
prisioneiros, o afetuoso Maurício Rosencof (Chino Darin) e o brioso Eleuterio
Huidobro (Alfonso Tort), em duas performances igualmente complexas. Enquanto
Mujica sucumbia drasticamente aos efeitos da tortura e da solidão, os dois
buscam no seu passado um refúgio em meio ao caos, uma experiência íntima
capturada com muita sensibilidade pelas lentes de Brechner. Além disso, é
através de Rosencof que percebemos que do outro lado não só existiam tiranos covardes,
uma abordagem multidimensional que só ajuda a reforçar o viés realístico do
longa. O grande diferencial de Uma Noite de 12 Anos, entretanto, fica pela
habilidade da obra em extrair momentos de impressionante beleza\singeleza em um
cenário tão vil. Por trás das feridas, da esqualidez, da sujeira e da solidão
existiam homens com força para seguir levantando, sonhando com a liberdade,
lutando (a sua maneira) contra os seus algozes. O que falar, por exemplo, da
sequência em que, por um raro instante, um dos prisioneiros ganha a
oportunidade de admirar o horizonte, uma cena forte e emocionante capaz de
sintetizar com clareza o sentimento que os movia durante esse período. Ou então
da sequência ao som de uma versão arrepiante da canção The Sound of Silence.
Dois daqueles momentos ímpares no cinema em 2018. Somado a isso, para a minha
surpresa, Brechner arranca sinceras risadas (algumas gargalhadas, confesso) ao
se concentrar também no aspecto mais tragicômico da situação, um cenário em que
três homens "comuns" e claramente abatidos eram tratados como uma
espécie de encarnação do mal em solo uruguaio.
Não se engane, porém, com essa
aparente leveza. Até nestes momentos mais agridoces, o longa é incisivo ao
escancarar a condição de miséria dos três, a deterioração ao longo do tempo, um
processo árduo tratado com crueza e propriedade do primeiro ao último minuto de
obra. No fim, por mais que o argumento passe com inadvertida pressa pelo
passado revolucionário do trio, Uma Noite de 12 Anos é um drama poderoso justamente
por nos lembrar da história que já foi escrita. Numa época em que as correntes
pró-ditadura ganham uma silenciosa força, Álvaro Brechner vai além da figura de
Pepé Mojica ao dar voz aos homens por trás das suas ideologias, ao capturar
todo a dor e sofrimento impostos a eles, oferecendo uma visão íntima sobre o
episódio ao mostrar a realidade como ela foi. Sem qualquer tipo de distorção
partidária e reverência. O viés inspirador, na verdade, nasce do esforço do
longa em não criar heróis e\ou símbolos. Em valorizar a pura resiliência humana
perante as sombras e o devastador som do silêncio.
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