segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Ferrugem

As sequelas da superexposição na adolescência

Uma crônica urbana sobre o ambiente de toxicidade e inconsequência nos corredores da escola, Ferrugem é o tipo de filme que não parece interessado em contemporizar. Dirigido e roteirizado por Aly Muritiba, o longa impacta ao escancarar os ecos do vazamento de um conteúdo íntimo na rotina de dois jovens. Sem um pingo de condescendência, principalmente quanto aos tipos masculinos, o realizador é cuidadoso ao entregar um relato completo sobre o tema, oferecendo uma voz ativa não só para a vítima, a radiante Tati (Tifanny Dopke), quanto para o seu novo parceiro, o introspectivo Renet (Giovanni de Lorenzi).

Dividido em duas metades completamente distintas, num primeiro momento Aly Muritiba discorre sobre o caso sob uma perspectiva afiada e visceral. Num relato verossímil, o diretor imprime a realidade dos fatos sem filtros, sem atenuantes, colocando o dedo na ferida ao refletir sobre a perversidade de alguns estudantes, a superexposição, a solidão, a ausência familiar e (claro!) sobre a vulnerabilidade de uma adolescente diante de tamanha covardia. O foco, aqui, é quase que exclusivo na figura de Tati, na sua deterioração emocional, na sua relação perante o descaso e o abandono daqueles que ela mais precisava. Uma abordagem pesada e silenciosa potencializada pela forte presença de Tiffany Dopke, intensa ao interiorizar a dor da sua Tati, ao se desconstruir perante o espectador. Embora Aly Muritiba se apresse além do necessário ao desenvolver o efeito devastador do vazamento na rotina da protagonista, na hora H ele não titubeia, pontuando a jornada de Tati com coragem, contundência e muito realismo. 


À medida que a trama avança, no entanto, Ferrugem consegue também mirar em outros elementos desta equação. Indo de encontro ao geralmente insinuante primeiro ato, que sugere mais do que mostra\diz, o diretor é categórico ao, a partir da abalada figura de Renet, entender as sequelas do caso sob um prisma mais amplo. Por mais que o filme se disperse além da conta no segundo ato, quando as pretensões narrativas de Aly Muritiba soam mais erráticas do que o ideal, o argumento é inteligente ao tentar entender a origem de um comportamento tão hostil\insensível. Ao se concentrar na disfuncional relação do jovem com o pai, um professor superprotetor vivido pelo carismático Enrique Diaz, o diretor se esforça na tentativa de trazer para o centro da trama novos problemas, uma nova visão sobre possivelmente a raiz da inconsequência. Embora, acertadamente, o longa se isente da missão de apontar o dedo, não demora muito para percebermos que o vazamento estava longe de ser o único dilema íntimo de Renet. Sob uma perspectiva franca, Muritiba é inteligente ao discorrer sobre os conflitos matrimoniais dos pais de Renet mesmo optando por não se distanciar muito dele. Sem querer revelar muito, num fantástico plano sequência de quase quinze minutos, o diretor consegue sintetizar parte destes problemas com intensidade, principalmente quando a independente figura materna surge em cena.


Além disso, o roteiro é igualmente habilidoso ao trabalhar o silencioso processo de culpa do garoto, o desconforto dele diante da sua reação aos fatos, um sentimento incômodo que cresce consistentemente até o desconcertante clímax. O problema é que, apesar das inegáveis virtudes narrativas, uma delas, em especial, é de uma ousadia absurda, Ferrugem tem nítidas falhas de acabamento. Apesar do nítido esforço de Giovanni de Lorenzi, por exemplo, em alguns momentos a impressão que fica é que o jovem ator não consegue investigar ao máximo as nuances emocionais do seu personagem, o que, a meu ver, ajuda a explicar a queda de ritmo do irregular segundo ato. Outra falha que incomoda, e muito, é a por vezes inaudível captura de som do longa. Se por um lado o propositalmente ruidoso design de som é explorado com brilhantismo, um recurso narrativo usado com singularidade para ressaltar a sensação de caos em torno da vida dos dois, em outros tantos momentos os diálogos são quase incompreensíveis, um deslize incompatível com uma produção tão virtuosa esteticamente.


No final das contas, porém, esses são detalhes que em nada prejudicam o resultado final de Ferrugem, um drama frio (vide a fotografia esbranquiçada de Rui Poças), pesado e pessimista que pinta um retrato infelizmente universal sobre a triste realidade de uma jovem consumida pelos perigos da exposição involuntária. Um desesperado grito de alerta para muitos. 


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