Reconhecido pelo seu singular
estilo de contar histórias, Wes Anderson é por méritos próprios um dos mais
criativos realizadores em atividade em Hollywood. Por mais que o seu rigoroso
senso de simetria estética tenha se tornado uma das suas marcas mais exaltadas,
o que mais me chama a atenção nos trabalhos do diretor é a capacidade dele em
impor a sua peculiar estrutura narrativa em gêneros tão ecléticos. Na verdade,
é até difícil definir os filmes de Anderson como o representante desse, ou
daquele segmento. Embora cada um dos seus projetos parta de um terreno
reconhecível, a graça está na maneira com que ele testa as nossas expectativas,
com que ele subverte fórmulas e arquétipos na tentativa de entregar algo
realmente inédito. Ao longo de mais de duas décadas na estrada, ele imprimiu a
esta assinatura pouco ortodoxa nas comédias ‘high-school’ com o cativante Três
é Demais (1998), nas populares ‘dramédias’ familiares com o magnífico Os
Excêntricos Tenenbaums (2001), nos adocicados romances infantis com o
sensacional Moonrise Kingdom (2012). Foi além ao flertar segmentos mais
clássicos como a aventura e o suspense no ‘cult’ A Vida Marinha com Steve
Zissou (2004) e no vibrante O Grande Hotel Budapeste (2014). Uma constante
busca por novas experiências que invade agora o terreno das fábulas
sociais\políticas com o exótico Ilha dos Cachorros. Embora se leve a sério
demais na comparação com os principais trabalhos do realizador, a animação em
‘stop-motion’ enche a tela estilo ao narrar as desventuras de um grupo de
impagáveis cães segregados num Japão distópico, indo além do esperado senso de
humor peculiar ao discorrer com inteligência sobre o impacto da marginalização
nos grandes centros urbanos.
Com
personagens engraçadíssimos, uma visão hiper-realista da nossa sociedade e um
curioso flerte com a linguagem documental, elementos, por sinal, bem comuns na
sua filmografia, Wes Anderson decide brincar com traços característicos da
cultura asiática num daqueles projetos difíceis de serem definidos em palavras.
Estamos diante de uma fábula política, com um forte viés tragicômico e uma
pegada Sci-Fi sobre um garoto nipônico, o resiliente Atari, e a sua incansável
busca pelo seu fiel e “exilado” cão Spots (voz de Liev Schreiber). A partir do
inteligente roteiro assinado pelo próprio Anderson, ao lado de Roman Coppola, Jason
Schwartzman e Kunichi Nomura, o longa
é criativo ao pintar um cenário reconhecível aos olhos do público atual. Um
mundo que, por interesses escusos, os cachorros foram sumariamente “depostos”
para uma ilha lixão, obrigados a viver em condição de miséria bem longe dos
olhos de uma facilmente inflamável sociedade japonesa. Indo de encontro ao viés
escapista das suas principais obras, o realizador é enfático ao, claramente,
atrelar a situação dos “melhores amigos do homem” ao destino dos imigrantes e
dos marginalizados ao redor do mundo, refletindo sobre o peso da desigualdade
social dentro de um contexto lúdico, irônico, mas indiscutivelmente crítico.
Por mais que o argumento sofra um pouco com as oscilações de ritmo, um deslize
que se torna mais evidente quando Anderson se distancia da jornada de Atari
para investir em ‘flashbacks’ longos e subtramas redundantes, Ilha dos
Cachorros compensa ao impregnar a trama com alguns dos nossos crônicos
problemas sócio-políticos, ao se insurgir contra a repressão governamental, a
ignorância e o discurso divisivo numa obra que tem muito a dizer sobre o
desigual mundo em que vivemos. E isso, felizmente, sem nunca perder a piada.
O que fica bem claro no momento em que Wes
Anderson define que acompanharemos esta história a partir da perspectiva dos
expressivos cães. Embora o filme faça um inventivo uso do recurso da narração,
são os abandonados cachorros os grandes interlocutores da história, um grupo de
animais que, por não entenderem muito bem o idioma dos seus “mestres”, seguiram
acreditando na fidelidade deles. Impulsionado pelo superelenco de dubladores,
capitaneado por Bryan Cranston (voz do intransigente vira-lata Chief), Edward
Norton (voz do cativante Rex), Jeff Goldblum (voz do comunicativo Duke), Bill
Murray (voz do altruísta Boss) e Scarlett Johansson (voz da pessimista
cachorrinha Nutmeg), Anderson extrai o máximo da disfuncional dinâmica deste
grupo de amigos, esbanjando o seu afiado tempo de comédia na construção dos
personagens naturalmente cômicos e das suas ‘gags’ engraçadíssimas. Assim como
em O Fantástico Srº Raposo, o realizador acerta novamente ao trazer vozes
“adultas” e nada infantis para o universo da animação, o que permite criar um
divertido contraste entre a aparência lúdica dos protagonistas e as suas
respectivas personalidades\ações. O grande diferencial de Ilha de Cachorros,
entretanto, fica indiscutivelmente pelo primoroso trabalho da equipe de
animadores. Com personagens recheados de características físicas próprias
(pelos, cores, cicatrizes e raças diferentes), vide o sensacional Chief, Wes
Anderson extrai o máximo da expressão dos cachorros na construção da sua fábula
política, conferindo peso a suas nuances emocionais em planos médios\fechados sempre
rigorosamente simétricos. Um predicado que, diga-se de passagem, se repete nas
sequências mais cômicas\escapistas, principalmente pela sagacidade de Anderson
em resgatar o elemento brincalhão escondido neste cenário bem real. O que fica
bem claro, em especial, nas caóticas\cartunescas lutas entre os animais e nos
imponentes (e panorâmicos) planos abertos, quando a sensação de jornada entre
amigos ajuda a tornar tudo o mais terno possível.
Embora Wes
Anderson dê as suas derrapadas aqui ou ali, a mocinha (norte-americana, claro!)
dublada pela descolada Greta Gerwig soe um tanto quanto dispensável, Ilha de
Cachorros é uma produção corajosa, uma obra visualmente impactante e
narrativamente densa com a assinatura de um realizador que insiste em nos
surpreender. Uma fábula capaz de fazer rir, refletir e incomodar a partir de
uma premissa lúdica e ao mesmo tempo realística.
Nenhum comentário:
Postar um comentário