sexta-feira, 2 de novembro de 2018

O Outro Lado do Vento

Por um sentido no caos

Para alguém que escreve sobre Cinema há mais de dez anos, é gratificante ter a oportunidade de, em pleno 2018, poder tirar do papel uma crítica sobre uma obra inédita de um gênio da Sétima Arte do quilate de Orson Welles. Uma verdadeira honra. Reconhecido pelo seu virtuosismo técnico e pelas suas ousadias narrativas, o ator, diretor, roteirista e radialista escreveu seu nome na história com películas inesquecíveis, títulos ainda hoje estudados e reverenciados pela sua engenhosidade estética. Com apenas 25 anos, por exemplo, Orson Welles entregou o que – para muitos – é o melhor filme de todos os tempos, o fantástico Cidadão Kane (1941), a épica jornada de um magnata da comunicação do seu apogeu ao solitário leito de morte. Além de produzir e comandar a obra, Welles também estrelou este espetáculo em formato fílmico, um drama esteticamente imponente que sintetiza o vigor de um diretor que não tinha medo de explorar o dispositivo cinema em sua máxima potência. Eis que, quase 35 anos depois da sua morte, os fãs da Sétima Arte ganharam a oportunidade de assistir a última (e perdida) realização deste gênio indomável. 



Após décadas esperando o seu lugar ao sol, um período marcado pelo longínquo processo de filmagens, pelas incontáveis batalhas judiciais e pelo flerte com o esquecimento, O Outro Lado do Vento encontrou na Netflix o aporte necessário para ganhar as telas ao redor do mundo. Num investimento de mais de cinco milhões de euros, a gigante do streaming resolveu remontar o árduo trabalho de Orson Welles, dando ao editor Bob Murawski esta raríssima responsabilidade. E o resultado é um retrato debochado sobre um homem amargurado com o rumo da sua arte. A partir dos rascunhos deixados pelo próprio Welles, de trechos já finalizados pelo diretor e da consultoria de nomes que participaram ativamente do projeto (entre eles a atriz Oja Kodar), Murawski se esforça para encontrar um sentido no caos, no emaranhado de horas e horas de película gravada, realçando (segundo a minha interpretação) a ferocidade de um realizador contra as novas (e abstratas) correntes cinematográficas. Estamos diante de uma obra pretensiosa, uma experiência cinematográfica de difícil "digestão", mas que, nos seus momentos de lucidez, tece brilhantes (e saborosamente cínicos) comentários sobre o cinema de vanguarda. O principal alvo, aqui, da “fúria” de Orson Welles. 


Antes de começar a análise propriamente dita de O Outro Lado do Vento, porém, é legal tentar traduzir o quão confuso foi o processo de filmagens e produção da obra. Vivendo na Europa, após entrar em rota de colisão com o ‘modus operandi’ de Hollywood e se sentir rejeitado pela “indústria”, Orson Welles teve a ideia de tirar do papel um projeto totalmente raro em sua filmografia. Disposto a romper com o classicismo dos seus melhores trabalhos, ele resolveu investir numa estrutura narrativa moderna e metalinguística, um ‘mockumentary’ satírico sobre um velho diretor que, após anos de um “exílio artístico” decide voltar para a sua casa com uma grandiosa nova obra. Mais pessoal impossível! O problema é que, sem o aporte dos grandes estúdios, Welles teve que fragmentar a produção, buscar diversas fontes de renda e investir num transloucado processo de filmagem. A rigor, o diretor começou a rodar o longa em Los Angeles, no ano de 1970, após não ter conseguido gravá-lo na Europa. Neste meio tempo, flertando com o improviso, Welles rodou algumas das cenas do “filme dentro do filme”, chegando a, reza a lenda, entrar clandestinamente num backlot da MGM (uma espécie de área externa de um set\estúdio) para tirar proveito de uma estrutura mais profissional. Já em 1971, Welles precisou de quatro meses para rodar mais cenas, entre elas as sequências da festa, indo do Arizona a Beverly Hills na busca pelos cenários para a realização da sua produção. O problema, entretanto, é que entre 1971 e 1972 Welles entrou na mira do fisco americano por não usar uma produtora oficial, recebendo uma pesada multa que o obrigou a trabalhar em outros projetos, incluindo o documentário F for Fake (1973). Só no segundo semestre deste ano, Welles voltaria a se dedicar a O Outro Lado do Vento.


O mais insano, porém, é que após quatro anos de filmagens o longa não tinha o seu protagonista, algo que foi resolvido quando o “pai” do clássico Cidadão Kane decidiu escalar o igualmente legendário John Huston para o papel principal. Neste meio tempo, entre trabalho e conflitos, Orson Welles viu o produtor espanhol Andres Vicente Gomez deixar o projeto após (supostamente) ter desviado US$ 250 mil da produção. Com sérios problemas de fluxo de caixa, Welles teve que usar do seu próprio dinheiro e da verba de parceiros (o ator Peter Bogdanovich despejou US$ 500 mil na obra) para dar sequência as filmagens, o que aconteceu de maneira improvisada até o término da mesma em 1976. Quando tudo parecia próximo de um final feliz, no entanto, veio o duro golpe. Após “sobreviver” a imprevistos, a falta de dinheiro e a excentricidade de Welles, Medhi Bushehri, cunhado do Xá do Irã e um dos principais investidores, entrou na justiça e conseguiu o bloqueio dos negativos temendo o completo prejuízo. O diretor até conseguiu salvar centenas de hora de filme, mas, apesar do esforço, perdeu os direitos sobre a obra que, segundo o próprio, foi pensada como o grande filme da sua carreira. Nos anos seguintes, Welles tentou contornar a situação na justiça, mas colecionou derrota atrás de derrota até a sua morte, no ano de 1985. Antes disso, inclusive, ele teria pedido ao amigo Bogdanovich que finalizasse a película caso ele não sobrevivesse, mas, infelizmente, só agora, após quase cinco décadas do início das filmagens, os detentores dos diretos da produção encontraram uma companhia capaz de pagar o que eles pediam para o lançamento do projeto. Antes tarde do que nunca.


Tentar encontrar um sentido em filmes como O Outro Lado do Vento, no entanto, é uma missão realmente difícil. Quase impossível. A rigor, estamos diante de documentário falso sobre um legendário e excêntrico diretor (vivido por Huston) que está rodando o que viria a ser o seu último longa. Num engenhoso exercício de metalinguagem, Orson Welles é contundente ao criticar o ‘status quo’ da sua arte naquela época (no início dos anos 1970), “seduzida” pela abstrata visão de mundo moderno das correntes vanguardistas (entre elas a Nouvelle Vague francesa e o Neo-Realismo surreal italiano). Reconhecido pela grandiosidade das suas produções, pelo requinte estético e o esmero narrativo, Welles surge então com uma obra despojada, multifacetada, usando e abusando da câmera na mão, das variações de filmes\formatos e do experimentalismo na tentativa de capturar o espírito da época. As intenções, entretanto, soam um tanto quanto dúbias. Na verdade, a impressão que fica é que Welles flerta constantemente com o deboche, mostrando ser capaz de tirar do papel uma obra visualmente “moderna”, mas ‘non-sense’, pedante e de péssimo gosto narrativo. Como se estivesse provocando alguns dos adeptos mais pretensiosos deste estilo. O que fica claro, em especial, quando o assunto é o filme dentro do filme, no caso o conturbado O Outro Lado do Vento. Com a bela Oja Kodar na maioria do tempo seminua e Robert Random como um homem errático fascinado pela beleza desta misteriosa mulher, Welles tira do papel uma produção sensual e estilosa sobre o nada, um vai e vem lacônico e confuso que poderia facilmente ser um filme B hipersexualizado se não fosse o virtuosismo estético do diretor. Fazendo um expressivo uso das cores saturadas, ele cria um ‘mise en scene’ vigoroso, sensorial e impactante, refletindo sobre a libertação sexual da época de maneira enfática numa obra que não se mostra interessada em fazer sentido. Na verdade, embora seja possível aqui ou ali pescar uma crítica envolvendo a repressão feminina, Welles usa esta produção como o ponto de partida da sua ácida crítica, elevando o potencial satírico ao colocar o dedo na ferida destas produções mais “vagas”. Ao questionar àqueles que priorizam o visual em detrimento do conteúdo. Vide a sequência em que um dos produtores, esbaforido, percebe que o projecionista trocou a ordem de um dos rolos, e recebe, do profissional, uma irônica e reflexiva resposta: “E faz alguma diferença?”. Um dos diversos, por sinal, afiados alívios cômicos da trama.


A face genuinamente mais crítica de O Outro Lado do Vento, porém, está inserida no tempo “presente”, no ‘mockumentary’ sobre o veterano diretor por trás do seu derradeiro filme. Embora Orson Welles não tratasse esse como o seu último projeto, o que só aconteceu devido aos inúmeros conflitos nos bastidores, é inegável o potencial profético da obra que, num ataque de sincericidio, não esconde de ninguém os obstáculos enfrentados pelas “velhas legendas” de Hollywood em tempos de renovação. Mais do que simplesmente diluir as barreiras entre ficção e realidade, o realizador é incisivo ao escancarar os problemas por trás desta produção (e de muitas outras suas). Assim como Welles, o protagonista vivido com maestria por John Huston se depara basicamente com todos os empecilhos que “atrasaram” a realização desta obra, entre eles a falta de investimento, o desvio de verbas, o superdimensionamento da produção, os conflitos de egos e o pretensiosimo da direção. Ao longo da intimista noitada na (verdadeira) casa da co-estrela Peter Bogdanovich, Welles é igualmente contundente ao olhar para si próprio, ao divagar com um misto de rancor e melancolia sobre a realidade de um homem talentoso vítima do seu próprio tempo. Sem medo de soar autoindulgente, o realizador imprime em tela as frustrações de um profissional excêntrico orgulhoso do seu legado, respeitado pelos amigos, mas embebecido pela vaidade, desafiado pela novidade e encurralado pelo ostracismo. Apesar do vai e vem caótico tomar conta da tela em boa parte da película, Welles, ora e vez, exibe a sua veia mais clássica em momentos chaves do longa, em cenas como o reverente diálogo entre o Jack e a discreta anfitriã Zarah (Lilli Palmer), ou as francas conversas entre o diretor e o seu fiel pupilo Brooks (Bodgdanovich), valorizando a atemporalidade da texturizada fotografia em PB e os contrastes entre luz\sombras em alguns dos planos\enquadramentos mais refinados da obra. Um predicado, indiscutivelmente, potencializado pela magnânima presença de Huston (Moby Dick), um velho amigo de Welles que, em sintonia com os questionamentos propostos pelo realizador, entrega uma performance ao mesmo tempo amargurada e imponente, indo do frágil ao indomável com a intensidade de alguém que também viu\viveu a metamorfose da sua arte.


Descarregando a sua metralhadora de críticas e provocações (algo bem comum também nas suas entrevistas) ao longo das desritmadas duas horas de película, uma rajada cínica capaz de mirar nos excessos e no egocentrismo do mundo do ‘showbiz’, passando pelo vazio da crítica e chegando (nominalmente) a realizadores do porte de Jean Luc Godard, Michelangelo Antonioni, Otto Preminger e até mesmo Marlon Brando, O Outro Lado do Vento é uma obra inquieta e inquietante. Uma (provável) crônica sobre a iminência do ostracismo assinada por um diretor provocado a “invadir” um terreno novo, a mostrar que também era capaz de produzir algo reflexivo e contemporâneo. Recheado de diálogos marcantes sobre a sua forma de enxergar\contar uma história cinematográfica, o longa, na verdade, sugere ainda uma desconfortável passagem de bastão, comprovando que, limitado pelos obstáculos impostos por uma remodelada indústria, Welles enxergava em nomes como o do seu amigo e parceiro de produção Peter Bogdanovich (A Última Sessão de Cinema) a extensão do seu legado. Uma pena que, na ânsia de criar algo moderno e vibrante, o diretor tenha se visto obrigado a romper com o senso de universalidade das suas obras, se distanciando de títulos do quilate de Cidadão Kane (1941), O Estranho (1946) e A Marca da Maldade (1958) ao entregar uma produção difícil, por vezes errática e cansativa, mas nunca desinteressante. 

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