Para alguém
que escreve sobre Cinema há mais de dez anos, é gratificante ter a oportunidade
de, em pleno 2018, poder tirar do papel uma crítica sobre uma obra inédita de um gênio
da Sétima Arte do quilate de Orson Welles. Uma verdadeira honra. Reconhecido
pelo seu virtuosismo técnico e pelas suas ousadias narrativas, o ator, diretor,
roteirista e radialista escreveu seu nome na história com películas inesquecíveis,
títulos ainda hoje estudados e reverenciados pela sua engenhosidade estética. Com
apenas 25 anos, por exemplo, Orson Welles entregou o que – para muitos – é o
melhor filme de todos os tempos, o fantástico Cidadão Kane (1941), a épica jornada
de um magnata da comunicação do seu apogeu ao solitário leito de morte. Além de
produzir e comandar a obra, Welles também estrelou este espetáculo em formato
fílmico, um drama esteticamente imponente que sintetiza o vigor de um diretor que não tinha medo de explorar o dispositivo cinema
em sua máxima potência. Eis que, quase 35 anos depois da sua morte, os fãs da
Sétima Arte ganharam a oportunidade de assistir a última (e perdida) realização deste
gênio indomável.
Após décadas esperando o seu lugar ao sol, um período marcado pelo longínquo processo de filmagens, pelas incontáveis batalhas judiciais e pelo flerte com o esquecimento, O Outro Lado do Vento encontrou na Netflix o aporte necessário para ganhar as telas ao redor do mundo. Num investimento de mais de cinco milhões de euros, a gigante do streaming resolveu remontar o árduo trabalho de Orson Welles, dando ao editor Bob Murawski esta raríssima responsabilidade. E o resultado é um retrato debochado sobre um homem amargurado com o rumo da sua arte. A partir dos rascunhos deixados pelo próprio Welles, de trechos já finalizados pelo diretor e da consultoria de nomes que participaram ativamente do projeto (entre eles a atriz Oja Kodar), Murawski se esforça para encontrar um sentido no caos, no emaranhado de horas e horas de película gravada, realçando (segundo a minha interpretação) a ferocidade de um realizador contra as novas (e abstratas) correntes cinematográficas. Estamos diante de uma obra pretensiosa, uma experiência cinematográfica de difícil "digestão", mas que, nos seus momentos de lucidez, tece brilhantes (e saborosamente cínicos) comentários sobre o cinema de vanguarda. O principal alvo, aqui, da “fúria” de Orson Welles.
Antes de começar a análise
propriamente dita de O Outro Lado do Vento, porém, é legal tentar traduzir o
quão confuso foi o processo de filmagens e produção da obra. Vivendo na Europa,
após entrar em rota de colisão com o ‘modus operandi’ de Hollywood e se sentir
rejeitado pela “indústria”, Orson Welles teve a ideia de tirar do papel um projeto
totalmente raro em sua filmografia. Disposto a romper com o classicismo dos
seus melhores trabalhos, ele resolveu investir numa estrutura narrativa moderna
e metalinguística, um ‘mockumentary’ satírico sobre um velho diretor que, após
anos de um “exílio artístico” decide voltar para a sua casa com uma grandiosa
nova obra. Mais pessoal impossível! O problema é que, sem o aporte dos
grandes estúdios, Welles teve que fragmentar a produção, buscar diversas fontes
de renda e investir num transloucado processo de filmagem. A rigor, o diretor
começou a rodar o longa em Los Angeles, no ano de 1970, após não ter conseguido
gravá-lo na Europa. Neste meio tempo, flertando com o improviso, Welles rodou
algumas das cenas do “filme dentro do filme”, chegando a, reza a lenda, entrar clandestinamente
num backlot da MGM (uma espécie de área externa de um set\estúdio) para tirar
proveito de uma estrutura mais profissional. Já em 1971, Welles precisou de
quatro meses para rodar mais cenas, entre elas as sequências da festa, indo do
Arizona a Beverly Hills na busca pelos cenários para a realização da sua produção.
O problema, entretanto, é que entre 1971 e 1972 Welles entrou na mira do fisco
americano por não usar uma produtora oficial, recebendo uma pesada multa que o
obrigou a trabalhar em outros projetos, incluindo o documentário F for Fake
(1973). Só no segundo semestre deste ano, Welles voltaria a se dedicar a O Outro
Lado do Vento.
O mais insano, porém, é que após
quatro anos de filmagens o longa não tinha o seu protagonista, algo que foi
resolvido quando o “pai” do clássico Cidadão Kane decidiu escalar o igualmente
legendário John Huston para o papel principal. Neste meio tempo, entre trabalho e conflitos, Orson Welles viu o produtor espanhol Andres Vicente
Gomez deixar o projeto após (supostamente) ter desviado US$ 250 mil da
produção. Com sérios problemas de fluxo de caixa, Welles teve que usar do seu
próprio dinheiro e da verba de parceiros (o ator Peter Bogdanovich despejou US$
500 mil na obra) para dar sequência as filmagens, o que aconteceu de maneira
improvisada até o término da mesma em 1976. Quando tudo parecia próximo de
um final feliz, no entanto, veio o duro golpe. Após “sobreviver” a imprevistos,
a falta de dinheiro e a excentricidade de Welles, Medhi Bushehri, cunhado do Xá
do Irã e um dos principais investidores, entrou na justiça e conseguiu o
bloqueio dos negativos temendo o completo prejuízo. O diretor até conseguiu
salvar centenas de hora de filme, mas, apesar do esforço, perdeu os direitos
sobre a obra que, segundo o próprio, foi pensada como o grande filme da sua
carreira. Nos anos seguintes, Welles tentou contornar a situação na justiça,
mas colecionou derrota atrás de derrota até a sua morte, no ano de 1985. Antes
disso, inclusive, ele teria pedido ao amigo Bogdanovich que finalizasse a película caso ele não sobrevivesse, mas, infelizmente, só agora, após quase cinco décadas
do início das filmagens, os detentores dos diretos da produção encontraram uma
companhia capaz de pagar o que eles pediam para o lançamento do projeto. Antes
tarde do que nunca.
Tentar encontrar um sentido em
filmes como O Outro Lado do Vento, no entanto, é uma missão realmente difícil. Quase
impossível. A rigor, estamos diante de documentário falso sobre um legendário e
excêntrico diretor (vivido por Huston) que está rodando o que viria a ser o seu
último longa. Num engenhoso exercício de metalinguagem, Orson Welles é contundente
ao criticar o ‘status quo’ da sua arte naquela época (no início dos anos 1970),
“seduzida” pela abstrata visão de mundo moderno das correntes vanguardistas (entre
elas a Nouvelle Vague francesa e o Neo-Realismo surreal italiano). Reconhecido
pela grandiosidade das suas produções, pelo requinte estético e o esmero
narrativo, Welles surge então com uma obra despojada, multifacetada, usando e
abusando da câmera na mão, das variações de filmes\formatos e do
experimentalismo na tentativa de capturar o espírito da época. As intenções,
entretanto, soam um tanto quanto dúbias. Na verdade, a impressão que fica é que
Welles flerta constantemente com o deboche, mostrando ser capaz de tirar do
papel uma obra visualmente “moderna”, mas ‘non-sense’, pedante e de péssimo gosto narrativo. Como
se estivesse provocando alguns dos adeptos mais pretensiosos deste estilo. O
que fica claro, em especial, quando o assunto é o filme dentro do filme, no
caso o conturbado O Outro Lado do Vento. Com a bela Oja Kodar na maioria do
tempo seminua e Robert Random como um homem errático fascinado pela beleza
desta misteriosa mulher, Welles tira do papel uma produção sensual e estilosa
sobre o nada, um vai e vem lacônico e confuso que poderia facilmente ser um
filme B hipersexualizado se não fosse o virtuosismo
estético do diretor. Fazendo um expressivo uso das cores saturadas, ele cria um ‘mise en scene’ vigoroso, sensorial e impactante, refletindo sobre a libertação
sexual da época de maneira enfática numa obra que não se mostra interessada em
fazer sentido. Na verdade, embora seja possível aqui ou ali pescar uma crítica envolvendo
a repressão feminina, Welles usa esta produção como o ponto de partida da sua
ácida crítica, elevando o potencial satírico ao colocar o dedo na ferida destas
produções mais “vagas”. Ao questionar àqueles que priorizam o visual em
detrimento do conteúdo. Vide a sequência em que um dos produtores, esbaforido,
percebe que o projecionista trocou a ordem de um dos rolos, e recebe, do
profissional, uma irônica e reflexiva resposta: “E faz alguma diferença?”. Um
dos diversos, por sinal, afiados alívios cômicos da trama.
A face genuinamente mais crítica de
O Outro Lado do Vento, porém, está inserida no tempo “presente”, no ‘mockumentary’
sobre o veterano diretor por trás do seu derradeiro filme. Embora Orson Welles não
tratasse esse como o seu último projeto, o que só aconteceu devido aos inúmeros conflitos
nos bastidores, é inegável o potencial profético da obra que, num ataque de
sincericidio, não esconde de ninguém os obstáculos enfrentados pelas “velhas
legendas” de Hollywood em tempos de renovação. Mais do que simplesmente diluir
as barreiras entre ficção e realidade, o realizador é incisivo ao escancarar os
problemas por trás desta produção (e de muitas outras suas). Assim como Welles, o protagonista vivido com
maestria por John Huston se depara basicamente com todos os empecilhos que “atrasaram”
a realização desta obra, entre eles a falta de investimento, o desvio de
verbas, o superdimensionamento da produção, os conflitos de egos e o
pretensiosimo da direção. Ao longo da intimista noitada na (verdadeira) casa da
co-estrela Peter Bogdanovich, Welles é igualmente contundente ao olhar para si
próprio, ao divagar com um misto de rancor e melancolia sobre a realidade de um
homem talentoso vítima do seu próprio tempo. Sem medo de soar autoindulgente, o
realizador imprime em tela as frustrações de um profissional excêntrico orgulhoso
do seu legado, respeitado pelos amigos, mas embebecido pela vaidade, desafiado
pela novidade e encurralado pelo ostracismo. Apesar do vai e vem caótico tomar
conta da tela em boa parte da película, Welles, ora e vez, exibe a sua veia
mais clássica em momentos chaves do longa, em cenas como o reverente diálogo
entre o Jack e a discreta anfitriã Zarah (Lilli Palmer), ou as francas
conversas entre o diretor e o seu fiel pupilo Brooks (Bodgdanovich), valorizando
a atemporalidade da texturizada fotografia em PB e os contrastes entre
luz\sombras em alguns dos planos\enquadramentos mais refinados da obra. Um
predicado, indiscutivelmente, potencializado pela magnânima presença de Huston (Moby Dick), um velho amigo de Welles que,
em sintonia com os questionamentos propostos pelo realizador, entrega uma
performance ao mesmo tempo amargurada e imponente, indo do frágil ao indomável
com a intensidade de alguém que também viu\viveu a metamorfose da sua arte.
Descarregando a sua metralhadora
de críticas e provocações (algo bem comum também nas suas entrevistas) ao longo das desritmadas duas horas de película, uma rajada cínica capaz
de mirar nos excessos e no egocentrismo do mundo do ‘showbiz’, passando pelo
vazio da crítica e chegando (nominalmente) a realizadores do porte de Jean Luc
Godard, Michelangelo Antonioni, Otto Preminger e até mesmo Marlon Brando, O
Outro Lado do Vento é uma obra inquieta e inquietante. Uma (provável) crônica
sobre a iminência do ostracismo assinada por um diretor provocado a “invadir”
um terreno novo, a mostrar que também era capaz de produzir algo reflexivo e
contemporâneo. Recheado de diálogos marcantes sobre a sua forma de enxergar\contar
uma história cinematográfica, o longa, na verdade, sugere ainda uma desconfortável
passagem de bastão, comprovando que, limitado pelos obstáculos impostos por uma
remodelada indústria, Welles enxergava em nomes como o do seu amigo e parceiro
de produção Peter Bogdanovich (A Última Sessão de Cinema) a extensão do seu
legado. Uma pena que, na ânsia de criar algo moderno e vibrante, o diretor
tenha se visto obrigado a romper com o senso de universalidade das suas obras,
se distanciando de títulos do quilate de Cidadão Kane (1941), O Estranho (1946)
e A Marca da Maldade (1958) ao entregar uma produção difícil, por vezes
errática e cansativa, mas nunca desinteressante.
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