quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A Balada de Buster Scruggs

O parque de diversões dos irmãos Coen

Feliz foi aquele que teve a ideia de transformar A Balada de Buster Scruggs num longa-metragem. Pensado inicialmente como uma minissérie de seis capítulos, o filme dirigido pelos cultuados Ethan e Joel Coen funciona brilhantemente como uma antologia sobre o Velho Oeste, uma compilação de histórias contrastantes com a assinatura sarcástica (e visualmente estonteante) destes dois autorais realizadores norte-americanos. Embora cada um dos contos cause um impacto natural isoladamente, ao assisti-los juntos percebemos não só a genialidade do texto dos irmãos Coen, mas principalmente a versatilidade temática da dupla, a capacidade deles em imprimir o seu estilo independentemente do gênero proposto, o que confere a este ousado original Netflix um charme todo especial. Na verdade, com total liberdade para criar num cenário de fácil domínio para os dois, a impressão que fica é os Coen tratam A Balada de Buster Scruggs como o seu parque de diversões pessoal, brincando com a falta de “amarras” narrativas, com símbolos do tradicional Western e (claro!) com as expectativas do público numa obra inteligente, revigorante e acima de tudo imprevisível. 



E logo no primeiro conto, a radiante jornada de um cantante e confiante pistoleiro (Tim Blake Nelson, incrível) até uma inóspita cidadela do velho oeste, os irmãos Ethan e Joel Coen deixam claro que este é um daqueles projetos em que os dois resolveram se divertir. Um sentimento que, felizmente, também é compartilhado ao público. Numa espécie de Além da Imaginação (1959-1964) western, a dupla de diretores causa um misto de fascínio, tensão e risos ao investigar este inóspito período sob uma perspectiva nada ortodoxa, usando o seu ‘know how’ dentro do segmento na tentativa de criar algo novo, mas reconhecível para os fãs da sua filmografia. Mais do que simplesmente subverter alguns dos clássicos arcos do gênero, os realizadores são astutos ao buscar referências na sua própria obra, jogando elementos dos seus mais memoráveis projetos em cada uma das seis instigantes histórias. No conto musical que dá título ao longa, por exemplo, vemos muito de E ai Meu Irmão Cadê Você? (2000), principalmente quando o assunto é a aura otimista\lúdica com que a dupla trata a realidade do protagonista. No capítulo seguinte, a história de um ladrão de bancos (James Franco) azarado incapaz de enxergar o real perigo à sua frente, os Coen’s trazem para o centro da trama a comédia de erros, buscando inspiração em títulos como Fargo (1996) e Queime Depois de Ler (2008) ao defender que a sorte é incapaz de sorrir para alguns tipos.


O que mais impressiona em A Balada de Buster Scruggs, entretanto, é o viés multifacetado da obra. Estamos diante de seis histórias completamente diferentes, seja narrativamente, seja esteticamente, seja tematicamente. Com enorme domínio sobre gêneros tão contrastantes, os irmãos Coen esbanjam maturidade ao “investigar” as idiossincrasias do velho oeste sob uma perspectiva plural e indiscutivelmente original, permitindo que cada um dos contos tivesse uma identidade própria. E isso sem sacrificar o senso de coesão e o ritmo da película, dois dos obstáculos mais comuns em títulos assim. Se na primeira história Ethan e Joel surgem com uma abordagem dinâmica, leve, com direito a números musicais, inventivos efeitos digitais e a constante quebra da quarta parede, no terceiro conto, o mais pesado do filme, a dupla investe em uma pegada densa, melancólica, no melhor estilo Inside Llewyn Davis (2013). No capítulo mais desafiador da película, os dois diretores criam uma impactante ruptura ao narrar a jornada de um homem de negócios (Liam Neeson, incrivelmente dúbio), uma espécie de P.T Barnum do western, que enxergou num jovem sem as pernas e os braços (Harry Melling, excelente) o talento necessário para atuar numa solitária peça itinerante. Indo além da nítida mudança temática, os Coens estabelecem um cenário mais sombrio e gélido, um lugar silencioso, nada amistoso, capturado com desconforto pelas “versáteis” lentes do diretor de fotografia Bruno Delbonnel. Uma peça chave, por sinal, na proposta defendida pelo longa, principalmente pela maestria com que ele traduz tanto a imponência dos grandiosos cenários, quanto a variedade de cores e as diferentes atmosferas de cada um dos episódios. Neste ambiente carente de sentimentos, os irmãos Coen nos brindam com uma história de amizade insinuante, um retrato ferino sobre as relações humanas no meio artístico e a instabilidade deste negócio. Um arco que começa de uma forma, ganha novos contornos à medida que o elo entre os dois é desenvolvido e corrói as nossas expectativas com um desfecho que, atualmente, só os irmãos Coen são capazes de entregar.


Por falar no uso de símbolos, Ethan e Joel Coen seguem difíceis de serem igualados no momento em que decidem destilar nas entrelinhas os seus ácidos comentários. O que fica bem claro, em especial, no quarto conto (o que mais remete ao fantástico Onde os Fracos não Tem Vez) e no sexto (uma versão melhorada de Matadores de Velhinhas). Logo após a desconcertante história citada acima, a dupla aposta num capítulo idílico e luminoso, um relato sobre a resiliência de um minerador purista (Tom Waitts, sensacional como de costume) num ambiente em que qualquer um poderia facilmente “tomar” o fruto do seu trabalho sem grande esforço. Fazendo um magnífico uso do cenário paradisíaco, o que sugere também uma crítica a ambição humana e o desequilíbrio causado pela nossa presença, os Coens brincam com elementos bíblicos ao construir a sua visão do Éden, tecendo um brilhante comentário moral sobre àqueles que preferem seguir o caminho mais fácil, se apropriar do que não é seu na busca por dinheiro\sucesso. Uma reflexão que, a meu ver, aponta diretamente para a “predadora” indústria do cinema, sedenta pelo lucro fácil, pelas fórmulas certeiras em detrimento da árdua busca por algo novo. Uma mensagem que faz todo sentido no momento que a dupla de realizadores encontrou na Netflix, um alvo constante daqueles que defendem a tradicional forma de se vender cinema, a valorização da sua arte. Já no impagável sexto conto, uma espécie de lavagem de roupa suja sentimental entre estranhos num vagão rumo ao desconhecido, os irmãos Coen desfilam o seu afiado senso de humor ao expor a sua opinião sobre o indivíduo humano, sobre temas pouco usuais na sua filmografia, rompendo com a aura misantrópica (uma alcunha estabelecida com sagacidade logo na primeira história) ao se sentirem comovidos com a nossa inesgotável busca por um sentido nas coisas. E isso, obviamente, sem perder a piada, que fica cada vez mais engraçada à medida que percebemos o real destino dos personagens.


Talvez o único senão de A Balada de Buster Scruggs fique pela inadvertida extensão de alguns dos seis contos. Por mais que, ao optar pelo formato fílmico, Ethan e Joel tenham atenuado os possíveis desníveis da obra ao enxugar cada uma das histórias, em um ou dois momentos o longa se estica demais. Vide o “romântico” quinto capítulo, que narra a dura jornada de uma solitária jovem (Zoe Kazan, ótima) após perder o seu irmão superprotetor durante uma viagem para Oregon. Uma passagem que começa muito bem, refresca a trama ao mostrar a realidade de uma mulher neste masculinizado cenário, mas se perde um pouco na tentativa de emplacar uma inesperada relação amorosa. Menos mal que, na transição para o clímax do episódio, os Coens recoloquem a história nos trilhos numa sequência grandiosa e surpreendente, um arremate incapaz de tornar este conto o mais fraco da película. Na verdade, embora uns sejam mais impactantes que outros, os seis capítulos são igualmente qualificados, um predicado valorizado pelo virtuosismo estético\narrativo da dupla. Trazendo no currículo a experiência de títulos como o remake de Bravura Indômita (2010), Ethan e Joel retornam ao velho oeste em grande estilo, investindo pesado na construção de mundo, na imponência das sequências, nos enquadramentos expansivos, na direção de arte, no figurino. Tudo para tornar a experiência a mais imersiva possível. E o resultado é imageticamente irretocável, seja nas sequências mais íntimas, como na tensa troca de farpas do sexto conto, seja nos momentos mais imponentes, como no caótico ataque indígena no segundo episódio. Embora, mesmo nos arcos mais dramáticos, o foco seja em sua maioria irônico, estamos diante de um Western “raiz”, daqueles implacáveis, imprevisíveis e visualmente memoráveis. Por falar no aspecto cômico, a cereja do bolo está na mordacidade do texto dos Coen. Com o seu usual humor ácido e as suas tiradas geniais, a dupla consegue rir da violência, das injustiças, das decisões dos personagens e até mesmo de si próprios, extraindo genuínas\inesperadas gargalhadas das formas mais variadas possíveis.


Reverenciando a imponência estética das obras de John Ford, a agressividade revisionista dos clássicos de Sérgio Leone e (óbvio!) o impiedoso cinismo dos filmes dos irmãos Coen, A Balada de Buster Scuggs revisita o velho oeste numa obra maiúscula e original. Uma experiência cada vez mais rara dentro do cinemão norte-americano. Sem qualquer falsa modéstia, Ethan e Joel não fogem da raia ao imprimir a sua reconhecida assinatura num gênero tão clássico, extraindo o máximo do talentoso elenco (Brendan Gleeson rouba a cena no sexto conto) e do seu refinado texto na construção de uma compilação de histórias peculiares temperadas com o fator surpresa que só essa dupla é capaz de nos oferecer na atualidade.

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