quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Next Gen

Sci-Fi para crianças e também para adultos

Só por buscar inspiração em pérolas do quilate de Blade Runner, O Gigante de Ferro, Wall-E e Divertidamente, a animação de ficção-científica Next Gen já se revelaria uma obra suficientemente corajosa. Para a minha grata surpresa, entretanto, o longa dirigido por Kevin R. Adams e Joe Ksander não se contenta somente em reciclar fórmulas e ideias, indo a fundo em algumas complexas questões existenciais ao discutir a nossa humanidade dentro de um ambiente robotizado. Numa visão de futuro indiscutivelmente original, a vibrante produção original Netflix nos leva para uma realidade não muito distante, onde os robôs passaram a ter suma importância no nosso dia a dia. 

Criados pela influente QI, uma gigantesca corporação do ramo da robótica, as inteligências artificiais se tornaram um 'gadget' indispensável, ocupando um lugar de destaque no nosso lar ao funcionar seja como um "programado" ombro amigo, seja como um infalível empregado doméstico, seja como pequenos objetos. Avessa a "opressão" tecnológica, a anárquica Mai só queira levar a sua vida em paz longe dos robôs, encontrando no seu fiel cãozinho Momo um companheiro de carne e osso, o único capaz de fazê-la esquecer do seu saudoso pai. Obrigada pela sua mãe a ir na convenção que iria apresentar o mais novo assistente doméstico da QI, Mai decide fugir, mas, num acaso do destino, acaba conhecendo um humanizado protótipo de robô criado para ser uma alternativa às impessoais máquinas atuais. Robofóbica, ela não dá a mínima para a confusa e gentil criatura. Aos poucos, porém, nasce uma improvável amizade, principalmente quando Mai descobre que o robô poderia ajudar a canalizar a sua raiva contra o sistema em que estava inserida. 


Com base nesta cativante premissa, Adams e Ksander fogem do lugar comum ao investir numa protagonista agressiva e errática. Apesar do seu descolado visual rebelde chamar a atenção, aos poucos percebemos que estamos diante de uma pré-adolescente com problemas reais, com dores sinceras, que desconta nos robôs "assistentes" as suas frustrações mais íntimas. Embora sob uma perspectiva juvenil, a dupla de realizadores é cuidadosa ao tentar entender o que a machucava, ao tornar os conflitos perfeitamente compreensíveis, criando assim uma protagonista falha e genuinamente humana. O grande diferencial da obra, entretanto, está na maneira com que Next Gen usa o seu "jovem" robô como um contraponto a figura de Mai. Usando como lema "a perfeição é o inimigo do bom", o roteiro mostra inteligência ao construir o processo de aprendizado dele durante a convivência com Mai, expondo através desta sentimental criatura em busca de novas experiência a face mais hostil da protagonista. 


Seguindo uma lógica "bladeruniana", a inteligência artificial surge aqui como um entusiasta da humanidade, como o ser capaz de enxergar a nossa vulnerabilidade física\emocional não como uma fraqueza, mas como uma virtude. Transitando por conceitos complexos dentro do Sci-Fi com leveza e espontaneidade, é interessante ver a perspicácia do longa em trazer a questão da memória para o centro da trama. Explorando uma falha física do proativo robô, Adams e Ksander encontram a justificativa perfeita para estabelecer a sua visão de humanidade, definindo as experiências (sejam elas positivas ou não) como uma pedra fundamental na nossa existência. Uma mensagem que se não soa nova, Divertida Mente já tinha caminhado por uma tese bem semelhante, ganha uma releitura perspicaz, principalmente pela forma com que aproxima o robô da sua amiga humana. À medida que o laço entre os dois se solidifica, o argumento é claro ao defender o valor das memórias e como elas ajudam a definir a nossa identidade. Uma reflexão sensível e comovente muito em função da capacidade da película em usar esta revigorante amizade como o agente catalisador da trama. 


Outro ponto que agrada, e muito, é a maneira com que Next Gen se opõe ao viés bélico associado às criaturas robóticas. Sem medo de tornar a sua Mai antipática, o longa é astuto ao tratar a tecnologia como um produto do ser humano, como um "espelho" das nossas intenções, colocando em cheque a face mais anárquica da protagonista ao torna-la por vezes uma má influência. Na verdade, a dupla de diretores é particularmente sagaz ao imprimir em Mai um temperamento tipicamente adolescente, escancarando as suas frustrações, a sua ferocidade e também o vazio que a cercava com singularidade. As suas falhas e virtudes coexistem em condição de igualdade, o que explica a sua caótica personalidade. Não se engane, porém, com o viés pró-tecnologia. Embora seja coerente ao ressaltar as nossas responsabilidades, Next Gen é categórico ao questionar também a nossa disfuncional interação com este ambiente 'hi-tech', usando a "viciada" figura da mãe como o estopim para uma esperta crítica envolvendo o "resfriamento" das relações humanas. 


Num precioso trabalho de construção de mundo, Adams e Ksander são inventivos ao não só desenvolver os inúmeros gadgets tecnológicos, como também ao torna-los um tanto quanto invasivos, reforçando assim o viés opressivo tão questionado por Mia. Além disso, nas entrelinhas, o argumento é sutil ao revelar os verdadeiros perigos por trás do cenário proposto, flertando com temas mais atuais ao falar sobre a perda da privacidade e logicamente sobre a constante vigilância. Em contrapartida, talvez um dos poucos pontos rasos da história, o vilão Justin Pin soa retlíneo demais. Por mais que uma astuta reviravolta torne as suas ações mais coerentes, a impressão que fica é que, aqui, os realizadores parecem preocupados em não tornar a sua obra mais adulta do que o esperado. E, de fato, o cenário proposto faria facilmente frente a qualquer grande representante do segmento, oferecendo o material necessário para reflexões ainda mais elaboradas. Menos mal que, sempre que possível, a película mostra maturidade ao se insurgir contra o viés armamentista, realçando a decepção do cativante protagonista robótico ao se enxergar simplesmente como uma ameaça em potencial. Mais O Gigante de Ferro impossível. 


Por falar em personagens simpáticos, como não citar, por exemplo, o fantástico cãozinho Momo, um "desbocado" alívio cômico que pontua a trama arrancando honestas risadas. Gostei da ousadia do texto em usar o que os americanos chamam de "f words", um fato raríssimo dentro da animação. Ponto para a impagável dublagem do talentoso Michael Peña. Num todo, aliás, embora não seja o foco da obra, a comédia incrementa a história com precisão, mostrando, em especial, a capacidade do script em usar o humor de repetição. Por fim, como se não bastassem os inúmeros méritos narrativos, Next Gen é também uma animação visualmente belíssima. Com cores vivas e traços originais, Kevin R. Adams e Joe Ksander não titubeiam em fazer uso do vasto cenário, ampliando o escopo da película ao investir em sequências de ação dinâmicas e grandiosas. Além disso, a dupla é perspicaz ao valorizar também os momentos mais íntimos\emotivos, criando alguns quadros dignos de moldura. No embalo da enérgica trilha sonora pop-rock de Samuel Jones e Alexis Marsh, Next Gen é uma obra surpreendente, uma animação inteligente, com ideias próprias, um criativo viés reflexivo e muito carisma. Um filme capaz de agradar adultos e crianças com a sua linguagem descomplicada, o seu humor perspicaz e pela sua capacidade em construir uma genuína história de amizade.

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