No último fim de semana chegou
aos cinemas o aguardado Nasce uma Estrela, um elogiado drama musical que,
dentre os seus (evidentes) muitos predicados, traz a estrela do pop Lady Gaga
no seu primeiro grande papel enquanto atriz. Dirigido pelo eclético Bradley
Cooper, o longa foi recebido com entusiasmo durante a última edição do
respeitado Festival de Veneza, arrancando calorosos aplausos por oito minutos e
muitos elogios às performances musicais do casal de protagonistas. O que muita
gente não sabe, entretanto, que Nasce uma Estrela não nasceu (com o perdão da
redundância) de uma história original. Na verdade, esta é a quarta adaptação
envolvendo a jornada de uma sonhadora aspirante ao estrelato que, após se unir
a um astro decadente, se depara com o melhor e o pior do mundo do showbiz. Em
1954, por exemplo, com a estrela de O Mágico de Oz (1939) Judy Garland e James
Mason como protagonistas, Nasce uma Estrela ganhou a sua versão mais aclamada,
principalmente pela visão corrosiva com que o diretor George Cukor traduz a
face mais corrosiva de Hollywood. Sim, nessa versão a protagonista queria ser
uma estrela do cinema, o que, na época, fazia muito mais sentido diante da
pouca representatividade feminina dentro do mundo da música. Já na década de
setenta, mais precisamente em 1976, o novo Nasce uma Estrela finalmente
adentrou o cenário musical, usando o efervescente cenário do rock como o palco
perfeito para construção de uma obra fruto do seu tempo. Com Barbara Streisand
na pele da cantora em potencial e Kris Kristofferson como um astro em declínio,
o filme dirigido por Frank Pierson não teve o mesmo retorno da crítica, mas
levou o Oscar de Melhor Canção Original com a balada Evergreen. Nada mais
justo, porém, do que analisar o filme que “pavimentou” a estrada para esta
trinca de remakes. Neste Do Fundo do Baú, iremos então analisar a versão mais
clássica de Nasce uma Estrela (1937), que, há oito décadas, com Janet Gaynor e
Fredric March nos papéis principais, já mostrava os dois lados da moeda no
mundo da fama.
Na verdade, a versão original de
Nasce uma Estrela é o tipo de filme à frente do seu tempo em muitos sentidos. E
é isso que o torna inigualável em relação aos seus três remakes. Numa época em
que a representação feminina estava frequentemente ligada ao estigma da donzela
indefesa, o longa dirigido por William A. Wellman encanta inicialmente ao
defender a igualdade de gêneros, ao tornar “ela” o elo mais forte da sua
película. Impulsionado pela estupenda performance de Janet Gaynor, o argumento
assinado por Robert Carson, Alan Campbell e Dorothy Parker (sim, uma das
primeiras grandes roteiristas da indústria) esbanja feminilidade ao narrar a
jornada de uma mulher em busca dos seus sonhos, da sua independência. Disposto
a romper com o ‘status quo’ “machista” que tomava conta da época, Nasce uma
Estrela não parece interessado em replicar a visão de mundo da época. Por mais
que, num primeiro momento, a ingênua Esther soe como a maioria das garotas do
interior que sonham com o estrelato, não demora muito para percebermos o quão
diferente ela é. A começar pelas suas influências, em especial a sua resiliente
avó, a sábia Letty (May Robinson, magnífica). Através dela, conhecemos uma
perspectiva pouco explorada no cinema da época: a das mulheres que tiveram de
lutar com as suas próprias mãos para conquistar o seu espaço.
Logo no
fantástico primeiro ato, num daqueles diálogos ainda hoje preciosos, Letty
(mesmo ausente na maior parte da película) se torna a bússola moral Esther,
usando a voz da experiência para alerta-la dos perigos que estão por vir e o
que ela terá de sacrificar\ceder para alcançar os seus objetivos. Em apenas uma
cena, Wellmann é incisivo ao estabelecer o “combustível” que irá guia-la,
realçando que Esther não é apenas mais uma em busca do que é seu. Por mais que,
assim como em muitos títulos do gênero, a sua grande chance surja de maneira
conveniente, o diretor é cuidadoso ao seguir a tratando como alguém em busca de
igualdade\respeito perante os homens. Reparem, por exemplo, como ela luta para
não ser tratada como a típica donzela, principalmente na cativante relação com
o seu amigo Danny (Andy Devine, divertidíssimo). Vide, obviamente, a sequência
do bar, quando, após fraquejar diante de um ataque de sincericídio dele, Esther
decide beber ao seu lado, replicando os gestos do seu novo amigo com extremo
bom humor. Apesar do apoio masculino, ela está disposta a conseguir o seu
espaço com as próprias pernas, sem, com isso, deixar de retribuir o apoio
daqueles que a ajudaram. Uma personagem rara.
Nasce uma Estrela, entretanto,
não é um filme somente sobre Esther. Na verdade, a partir da sua perspectiva,
William A. Wellmann é incisivo ao escancarar aquilo que as revistas, os jornais
e (agora) os sites sobre o mundo das celebridades insistem em não mostrar. Indo
do romance ao drama com enorme delicadeza, o realizador é categórico ao
ressaltar o quão efêmero pode ser o corrosivo mundo do showbiz, refletindo
sobre a face mais nefasta da indústria com uma sobriedade desconcertante. Muito
mais do que o galã que ajuda a mocinha a alcançar o seu sonho, o complexo
Norman Maine surge como o elo mais frágil da história. Um genial contraponto ao
arco de Esther. Conhecido por todos dentro de Hollywood, o astro beberrão se
encanta pelo jeito\beleza dela, usando o seu (já enfraquecido) prestígio para
dar uma oportunidade a ela num dos seus filmes. Encantados um pelo outro, a
amizade logo se transforma em romance, impulsionando a ascensão da agora Vicki
Lester rumo ao estrelato. O problema é que não demora muito para Maine não
conseguir “acompanhar” o ritmo da sua querida parceira, enfrentando assim uma
crise que viria a assolar a midiática vida dos dois. A partir desta relação marcada pelo
companheirismo e pelo forte senso de lealdade, Wellmann mostra sinceridade ao
desconstruir a imagem estrelar dos seus personagens. O foco, aqui, não está na
ascensão profissional, mas no impacto do sucesso na vida do casal. Ao humaniza-los,
o diretor consegue solidificar o elo entre os dois, tornar tudo muito íntimo
aos olhos do público, principalmente quando o assunto é a decadência
física\moral\profissional de Norman. Sem medo de fazer inimizades dentro da
indústria da época, Wellmann mostra ferocidade ao revelar o cinismo e o desdém
do “meio” para com um homem fragilizado, uma ex-estrela “abandonada” pela
maioria no momento em que a sua luz passa a não irradiar tanto. Perspicaz ao
não generalizar, o produtor vivido por Adolphe
Menjou, em especial, se revela um leal ombro amigo, o realizador é enfático ao
refletir tanto sobre os interesses escusos da mídia, quanto sobre a voracidade
cruel do público, tornando o processo de deterioração de Maine (e
consequentemente do casal) naturalmente emotivo. É legal ver como o longa, já
na década de 1930, é objetivo ao refletir sobre as sequelas da fama,
desmistificando o ideal do “conto de fadas” ao evidenciar que estrelas do
cinema também sofrem. Um amargor potencializado pelos holofotes do showbiz e
pela crueldade daqueles que julgam.
A cereja do realístico bolo de Nasce uma Estrela, porém, está na
contundência com que o roteiro trata o alcoolismo. Maine não bebe porque está
em frangalhos, mas porque está doente. O vício, aqui, não é a consequência, mas
o motivo. No embalo da magnífica performance de Fredric March, William A.
Wellmann esbanja franqueza ao estabelecer as duas faces deste homem quebrado. Conhecemos
tanto o astro carismático e bem-humorado, quanto o beberrão vulnerável e
decadente. Enquanto Janet Gaynor encanta ao capturar o misto de força,
fidelidade e feminilidade da sua Esther, March comove ao absorver os contrastes
do seu Maine. Ora ele é charmoso e carismático. Ora amargurado e digno de pena.
Estamos diante de um homem real, com sentimentos reais. Um tipo talentoso que,
no pior momento da sua vida, se viu sem forças para reagir. Por mais que, em
alguns momentos, Esther possa soar condescendente dentro do denso último ato, o
seu estreito elo com o marido é inquestionável, o que torna a reação da
protagonista totalmente coerente. O amor entre os dois é evidente, muito em
função da leveza com que o diretor constrói este cativante casal. Com uma
montagem ágil e um inteligente trabalho de transição temporal, as colunas de
fofocas surgem na tela ajudando a contextualizar o público, Wellmann capricha
ao desenvolver este romance, tirando o máximo da radiante química entre March e
Gaynor em sequências singelas, intimistas e com um particular senso de humor. Somado
a isso, nos momentos mais ruidosos, o realizador traduz com complexidade os
conflitos entre os dois, tornando o processo de mudança no ‘status quo’ do
casal perfeitamente crível. Uma visão de mundo moderna e muito à frente do seu
tempo. Enfim, um retrato singular sobre o lado mais voraz do show biz, Nasce
uma Estrela é um romance ainda hoje atemporal, uma obra igualitária, realística
e indiscutivelmente verdadeira capaz de questionar o ‘modus operandi’ de
Hollywood com rara coragem.
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