terça-feira, 16 de outubro de 2018

Do Fundo do Baú (Nasce uma Estrela)

No último fim de semana chegou aos cinemas o aguardado Nasce uma Estrela, um elogiado drama musical que, dentre os seus (evidentes) muitos predicados, traz a estrela do pop Lady Gaga no seu primeiro grande papel enquanto atriz. Dirigido pelo eclético Bradley Cooper, o longa foi recebido com entusiasmo durante a última edição do respeitado Festival de Veneza, arrancando calorosos aplausos por oito minutos e muitos elogios às performances musicais do casal de protagonistas. O que muita gente não sabe, entretanto, que Nasce uma Estrela não nasceu (com o perdão da redundância) de uma história original. Na verdade, esta é a quarta adaptação envolvendo a jornada de uma sonhadora aspirante ao estrelato que, após se unir a um astro decadente, se depara com o melhor e o pior do mundo do showbiz. Em 1954, por exemplo, com a estrela de O Mágico de Oz (1939) Judy Garland e James Mason como protagonistas, Nasce uma Estrela ganhou a sua versão mais aclamada, principalmente pela visão corrosiva com que o diretor George Cukor traduz a face mais corrosiva de Hollywood. Sim, nessa versão a protagonista queria ser uma estrela do cinema, o que, na época, fazia muito mais sentido diante da pouca representatividade feminina dentro do mundo da música. Já na década de setenta, mais precisamente em 1976, o novo Nasce uma Estrela finalmente adentrou o cenário musical, usando o efervescente cenário do rock como o palco perfeito para construção de uma obra fruto do seu tempo. Com Barbara Streisand na pele da cantora em potencial e Kris Kristofferson como um astro em declínio, o filme dirigido por Frank Pierson não teve o mesmo retorno da crítica, mas levou o Oscar de Melhor Canção Original com a balada Evergreen. Nada mais justo, porém, do que analisar o filme que “pavimentou” a estrada para esta trinca de remakes. Neste Do Fundo do Baú, iremos então analisar a versão mais clássica de Nasce uma Estrela (1937), que, há oito décadas, com Janet Gaynor e Fredric March nos papéis principais, já mostrava os dois lados da moeda no mundo da fama. 



Na verdade, a versão original de Nasce uma Estrela é o tipo de filme à frente do seu tempo em muitos sentidos. E é isso que o torna inigualável em relação aos seus três remakes. Numa época em que a representação feminina estava frequentemente ligada ao estigma da donzela indefesa, o longa dirigido por William A. Wellman encanta inicialmente ao defender a igualdade de gêneros, ao tornar “ela” o elo mais forte da sua película. Impulsionado pela estupenda performance de Janet Gaynor, o argumento assinado por Robert Carson, Alan Campbell e Dorothy Parker (sim, uma das primeiras grandes roteiristas da indústria) esbanja feminilidade ao narrar a jornada de uma mulher em busca dos seus sonhos, da sua independência. Disposto a romper com o ‘status quo’ “machista” que tomava conta da época, Nasce uma Estrela não parece interessado em replicar a visão de mundo da época. Por mais que, num primeiro momento, a ingênua Esther soe como a maioria das garotas do interior que sonham com o estrelato, não demora muito para percebermos o quão diferente ela é. A começar pelas suas influências, em especial a sua resiliente avó, a sábia Letty (May Robinson, magnífica). Através dela, conhecemos uma perspectiva pouco explorada no cinema da época: a das mulheres que tiveram de lutar com as suas próprias mãos para conquistar o seu espaço. 


Logo no fantástico primeiro ato, num daqueles diálogos ainda hoje preciosos, Letty (mesmo ausente na maior parte da película) se torna a bússola moral Esther, usando a voz da experiência para alerta-la dos perigos que estão por vir e o que ela terá de sacrificar\ceder para alcançar os seus objetivos. Em apenas uma cena, Wellmann é incisivo ao estabelecer o “combustível” que irá guia-la, realçando que Esther não é apenas mais uma em busca do que é seu. Por mais que, assim como em muitos títulos do gênero, a sua grande chance surja de maneira conveniente, o diretor é cuidadoso ao seguir a tratando como alguém em busca de igualdade\respeito perante os homens. Reparem, por exemplo, como ela luta para não ser tratada como a típica donzela, principalmente na cativante relação com o seu amigo Danny (Andy Devine, divertidíssimo). Vide, obviamente, a sequência do bar, quando, após fraquejar diante de um ataque de sincericídio dele, Esther decide beber ao seu lado, replicando os gestos do seu novo amigo com extremo bom humor. Apesar do apoio masculino, ela está disposta a conseguir o seu espaço com as próprias pernas, sem, com isso, deixar de retribuir o apoio daqueles que a ajudaram. Uma personagem rara.


Nasce uma Estrela, entretanto, não é um filme somente sobre Esther. Na verdade, a partir da sua perspectiva, William A. Wellmann é incisivo ao escancarar aquilo que as revistas, os jornais e (agora) os sites sobre o mundo das celebridades insistem em não mostrar. Indo do romance ao drama com enorme delicadeza, o realizador é categórico ao ressaltar o quão efêmero pode ser o corrosivo mundo do showbiz, refletindo sobre a face mais nefasta da indústria com uma sobriedade desconcertante. Muito mais do que o galã que ajuda a mocinha a alcançar o seu sonho, o complexo Norman Maine surge como o elo mais frágil da história. Um genial contraponto ao arco de Esther. Conhecido por todos dentro de Hollywood, o astro beberrão se encanta pelo jeito\beleza dela, usando o seu (já enfraquecido) prestígio para dar uma oportunidade a ela num dos seus filmes. Encantados um pelo outro, a amizade logo se transforma em romance, impulsionando a ascensão da agora Vicki Lester rumo ao estrelato. O problema é que não demora muito para Maine não conseguir “acompanhar” o ritmo da sua querida parceira, enfrentando assim uma crise que viria a assolar a midiática vida dos dois.  A partir desta relação marcada pelo companheirismo e pelo forte senso de lealdade, Wellmann mostra sinceridade ao desconstruir a imagem estrelar dos seus personagens. O foco, aqui, não está na ascensão profissional, mas no impacto do sucesso na vida do casal. Ao humaniza-los, o diretor consegue solidificar o elo entre os dois, tornar tudo muito íntimo aos olhos do público, principalmente quando o assunto é a decadência física\moral\profissional de Norman. Sem medo de fazer inimizades dentro da indústria da época, Wellmann mostra ferocidade ao revelar o cinismo e o desdém do “meio” para com um homem fragilizado, uma ex-estrela “abandonada” pela maioria no momento em que a sua luz passa a não irradiar tanto. Perspicaz ao não generalizar, o produtor vivido por Adolphe Menjou, em especial, se revela um leal ombro amigo, o realizador é enfático ao refletir tanto sobre os interesses escusos da mídia, quanto sobre a voracidade cruel do público, tornando o processo de deterioração de Maine (e consequentemente do casal) naturalmente emotivo. É legal ver como o longa, já na década de 1930, é objetivo ao refletir sobre as sequelas da fama, desmistificando o ideal do “conto de fadas” ao evidenciar que estrelas do cinema também sofrem. Um amargor potencializado pelos holofotes do showbiz e pela crueldade daqueles que julgam.


A cereja do realístico bolo de Nasce uma Estrela, porém, está na contundência com que o roteiro trata o alcoolismo. Maine não bebe porque está em frangalhos, mas porque está doente. O vício, aqui, não é a consequência, mas o motivo. No embalo da magnífica performance de Fredric March, William A. Wellmann esbanja franqueza ao estabelecer as duas faces deste homem quebrado. Conhecemos tanto o astro carismático e bem-humorado, quanto o beberrão vulnerável e decadente. Enquanto Janet Gaynor encanta ao capturar o misto de força, fidelidade e feminilidade da sua Esther, March comove ao absorver os contrastes do seu Maine. Ora ele é charmoso e carismático. Ora amargurado e digno de pena. Estamos diante de um homem real, com sentimentos reais. Um tipo talentoso que, no pior momento da sua vida, se viu sem forças para reagir. Por mais que, em alguns momentos, Esther possa soar condescendente dentro do denso último ato, o seu estreito elo com o marido é inquestionável, o que torna a reação da protagonista totalmente coerente. O amor entre os dois é evidente, muito em função da leveza com que o diretor constrói este cativante casal. Com uma montagem ágil e um inteligente trabalho de transição temporal, as colunas de fofocas surgem na tela ajudando a contextualizar o público, Wellmann capricha ao desenvolver este romance, tirando o máximo da radiante química entre March e Gaynor em sequências singelas, intimistas e com um particular senso de humor. Somado a isso, nos momentos mais ruidosos, o realizador traduz com complexidade os conflitos entre os dois, tornando o processo de mudança no ‘status quo’ do casal perfeitamente crível. Uma visão de mundo moderna e muito à frente do seu tempo. Enfim, um retrato singular sobre o lado mais voraz do show biz, Nasce uma Estrela é um romance ainda hoje atemporal, uma obra igualitária, realística e indiscutivelmente verdadeira capaz de questionar o ‘modus operandi’ de Hollywood com rara coragem.

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