Ben Mendelsohn já estava por
merecer um espaço aqui no blog. Um daqueles atores singulares que, sabe-se lá
porque, não parecem cair no gosto popular, ele já está há pelo menos uma década
entregando grandes performances, se destacando seja em produções menores, seja
em imponentes blockbusters. Nascido na Austrália, Mendelsohn entrou em
Hollywood sem grande alarde. Com versatilidade e uma indiscutível presença
cênica, ele não demorou para conquistar um espaço pequeno (é verdade) em
produções de alcance popular, se tornando um rosto conhecido dentro da
indústria por participações em co-produções como Contratado para Matar (1990) e
Sereias (1994), em blockbusters como Limite Vertical (2000) e Austrália (2008),
e em filmes respeitados que pouca gente viu como O Mapa do Coração (1992) e O
Novo Mundo (2005). Foi com o visceral Reino Animal (2010), entretanto, que
pudemos conhecer o talento inexplorado deste já nem tão novo rosto. Na pele de
um odioso membro de uma família formada por criminosos, Mendelsohn nos brindou
com um antagonista memorável, um homem capaz de tudo para manter a sua família “unida”.
Vencedor do prêmio do Júri no Festival
de Cannes, o longa deu ao ator um novo status, o transformando num grande ladrão
de cenas em títulos como o pretensioso O Homem da Máfia (2012), o grandioso
Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), o surpreendente Oeste Sem Lei
(2015) e o refinado O Destino de Uma Nação (2018). Se nas grandes produções o
ator tem ficado reduzido ao estigma do vilão, o que fica claro no magnífico Star
Wars: Rogue One (2016) e no divertidíssimo Jogador Nº 1 (2018), é no cinema ‘indie’
que ele tem encontrado espaço para brilhar em personagens complexos e
genuinamente humanos. Foi assim no elogiado Encarcerado (2013), no envolvente
Parceiros de Jogo (2015) e agora no seu mais novo projeto, o impiedoso Gente de
Bem. Sob a chancela da Netflix, o desconfortável drama dirigido e roteirizado
por Nicole Holofcener é incisivo ao refletir sobre a disfuncionalidade familiar
nos grandes centros urbanos, questionando a falta de comunicação entre pais e
filhos numa obra profunda, complexa e inesperadamente tragicômica. Uma produção
que, apesar do ritmo por vezes frouxo, acerta ao mirar no público adulto, ao
divagar sobre a inércia\acomodação parental diante de temas espinhosos.
Sem um pingo de condescendência,
Gente de Bem (que bela tradução) é astuto ao apontar o dedo para àqueles que
preferem julgar e não compreender. Numa crônica ferina sobre a vida de
aparências familiar, Nicoler Holofcener esbanja propriedade ao fazer de Anders
(Ben Mendelshohn) o seu inusitado interlocutor. Cansado da pressão do mundo dos
negócios, de investir num casamento fracassado e na construção de um ‘status’ social
aparentemente sedutor, este errático homem de meia idade decide largar tudo, se
aposentar, se divorciar e levar uma descompromissada vida como solteirão. Seis
meses após esta decisão, entretanto, as coisas não saíram como o esperado.
Convivendo com o afastamento do filho, o problemático Preston (Thomas Mann,
ótimo) e com o desdém da ex-esposa, a independente Helene (Edie Falco), Anders
viu a sua inércia se transformar num problema, afetando os seus sentimentos, os
seus ocasionais relacionamentos e os seus vínculos previamente construídos.
Após ver o filho da melhor amiga da sua esposa, a fria Sophie (Elizabeth
Marvel), sofrer uma overdose acidental, ele decide tentar reparar os seus erros
recentes. Anders, porém, estava longe de ser o único elo imperfeito de uma
disfuncional “teia” familiar.
Com uma consistente dose de
ironia, uma opção corajosa diante da seriedade do tema proposto, o grande
trunfo de Gente de Bem está na maneira com que o longa escancara as incoerências
por trás de um “jogo dos sete erros” familiar. Ao narrar a história a partir do
falho ponto de vista de Anders, Nicole Holofcener consegue refletir sobre as
sequelas de uma negligente relação parental com profundidade e um generoso
flerte com o sarcasmo, ampliando o escopo da película ao questionar o real
valor dos saturados rótulos “pai de família” e “mãe de família”. Um “status”,
hoje, frequentemente usado como um adjetivo, como se só por ter colocado um
filho no mundo um indivíduo se tornasse um homem\mulher melhor. Seguindo uma lógica
tipicamente americana, um impositivo senso comum em que, após os 21 anos, os
filhos devem aprender automaticamente a voar com as suas próprias asas, é
interessante ver como o argumento trata os (imaturos) jovens como verdadeiras
vítimas. As suas falhas, embora evidentes, são investigadas como sequelas de
uma criação “viciada”. O alvo, aqui, são os adultos e a completa falta de
diálogo com os seus herdeiros. Sob uma perspectiva intimista, Holofcener
esbanja sagacidade ao, num primeiro momento, expor o desdém para com a figura
de Anders, o homem que decidiu romper com o ‘status quo’ social que o cercava.
Tratado, nas entrelinhas, como um fracasso por ex-esposa e ex-amigos, ele não é
levado a sério por um segundo sequer, o que rende situações um tanto quanto
engraçadas. Ninguém parece compreender a decisão do vulnerável protagonista.
Aos poucos, porém, Nicole
Holofcener é categórica ao tocar no cerne da questão. Ao expor, a partir dos
desastrados gestos de reaproximação de Anders, a inércia e a falhas daqueles
que se acostumaram a julga-lo. Enquanto os “adultos” pareciam não querer
enxergar os problemas ao seu redor, o deslocado aposentado de meia idade surge
como um compreensivo ombro amigo, o único capaz de desafiar um negligente
círculo vicioso. Sem querer revelar muito, da relação entre Anders e o criativo
‘junkie’ Charlie (Charlie Tahan, puro carisma) nascem os melhores diálogos da
película, justamente pela capacidade do roteiro em tratar os dois personagens
como iguais. Algo impraticável para as demais figuras de maturidade do longa. Dois
homens que, embora de gerações distintas, parecem cansados de lidar com as
pressões impostas por terceiros. Sem medo de soar inclemente, Holofcener coloca
o dedo na ferida ao questionar a falta de comunicação entre pais e filhos, ao defender
que com um pouco de apoio e empatia algumas situações trágicas poderiam ser
facilmente evitadas. Às vezes, definitivamente, os problemas estão bem mais
próximos do que nós poderíamos esperar. Transitando entre a comédia e o drama
com enorme maturidade, Gente de Bem não foge da raia ao apontar o dedo para os
culpados, indo além dos típicos dramas agridoces ao propor uma crônica crítica sobre
a inércia parental em “tempos de crise”.
Por mais que esteja longe de ser
um filme fácil, a esquálida fotografia esbranquiçada e o ritmo por vezes
vagaroso não ajudam muito, Gente de Bem compensa ao confiar na força do seu
texto, das suas espertas metáforas (o jardim e a tartaruga não estão lá a toa)
e do seu consistente elenco, encontrando no carisma ébrio de Andres\Ben
Mendelsohn, na frieza distante de Sophie\Elizabeth Marvel e na firmeza
contraditória de Helene\Edie Falco os ingredientes necessários para a
construção de um retrato atual e indiscutivelmente verdadeiro sobre alguns
enraizados conflitos familiares.
2 comentários:
Vou assistir!!!
muito bom comentário.
Vou assistir!!!
muito bom comentário.
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