sexta-feira, 21 de setembro de 2018

A Noite do Jogo

Finalmente uma comédia de respeito!

Vocês estão sentindo falta de algo nos cinemas ultimamente? Eu estou. Onde foram parar as comédias? Nos anos 1980 e 1990, era comum ver cinco, seis representantes do gênero entre as maiores bilheterias do ano. A oferta era frequente. A lucratividade era alta. Era impossível dissociar o mercado blockbuster deste popular segmento. De um tempo para cá, entretanto, a “indústria” parece ter cansado de investir em comédias. Diante do ‘boom’ dos filmes de super-heróis e das grandes franquias, o gênero perdeu espaço e relevância, ficando muito dependente do status de alguns atores ou então da inventividade de alguns realizadores. Em 2017, por exemplo, entre os cinquenta filmes de maior bilheteria do ano nos EUA, apenas quatro eram exclusivamente cômicos: o elogiado Viagem Das Garotas, as continuações Pai em Dose Dupla 2 e Perfeita é a Mãe 2 e o tolo remake cinematográfico da série Baywatch. Pode ser só uma impressão minha, ou uma triste coincidência, mas, quando olhamos em perspectiva, fica claro a falta de grandes ‘hits’ do gênero na última década. Títulos bem-sucedidos como Segurando as Pontas (2008), Se Beber, Não Case (2009), Uma Noite Fora de Série (2010), Missão Madrinha de Casamento (2011), Amor a Toda Prova (2011), Ted (2012), Anjos da Lei (2012) As Bem Armadas (2013), Vizinhos (2014), A Espiã Que Sabia de Menos (2015) e Dois Caras Legais (2016) estão cada vez mais raros. A impressão que fica é que a comédia atual passou a sobreviver de filmes como A Noite de Jogo, uma produção de médio orçamento, que “nasceu” sem grandes expectativas e que tem boa parte do seu sucesso atrelado ao fator surpresa. 



E quando digo isso não quero, de maneira alguma, desmerecer o nível de qualidade de A Noite do Jogo. Muito pelo contrário. Num momento em que o “mercado” parece sedento por filmes grandiosos e voltados para todos os públicos, é revigorante ver uma produção “fiel” às suas origens, ao seu público alvo. Embora não parta de uma premissa inovadora, os engraçadíssimos Três Amigos (1986), O Homem que Sabia de Menos (1997) e Trovão Tropical (2008) já haviam transitado por um caminho semelhante, o longa dirigido pela dupla John Francis Dale e Jonathan Goldstein (do subestimado remake Férias Frustradas) acerta ao se aproximar do cenário urbano, rindo a imaturidade dos “jovens adultos” numa comédia capaz de divertir e surpreender com enorme dinamismo. Por mais que o talentoso elenco, capitaneado pelos carismáticos Jason Bateman e Rachel McAdams, abrace a disfuncionalidade dos seus personagens com invejável entusiasmo, é legal ver o esforço do roteiro em não se levar a sério por um segundo sequer. Mais do que simplesmente rir da competitividade do americano comum, a dupla de realizadores o faz com inteligência, usando a nova moda de jogos de aventura física (do tipo Escape Room) como o perspicaz ponto de partida para a construção de uma história envolvente, escapista e positivamente insana. Fazendo jus ao título do filme, Dale e Goldstein narram a desventurada jornada de Max (Bateman) e Annie (McAdams), um casal entrosado e apaixonado que não abriam mão de um encontro semanal com os amigos para uma descontraída (nem tanto) noite de jogos. Um competidor nato, Max só se sentia desconfortável diante da presença do irmão, o charmoso e viajante Brooks (Kyle Chandler), um endinheirado homem de negócios que não fazia questão de esconder o seu sucesso. Após voltar de uma longa viagem, ele decide usar a sua mansão como sede para uma edição especial da noite de jogos. O que era para ser uma divertida experiência entre amigos, entretanto, logo se torna uma improvável “caça ao tesouro”, principalmente quando os planos de Max não saem como o esperado e a brincadeira passa a ter um perigoso (e desconhecido) fundo de verdade.


Com uma montagem esperta e uma direção estilosa, o que fica óbvio logo na fantástica\contextualizadora sequência de abertura, A Noite de Jogo é o (atualmente raro) tipo de comédia que não se sustenta somente nas suas gags. Por mais que a dupla John Francis Dale e Jonathan Goldstein mostre um afiado tempo de comédia, transitando entre o humor de referência (a maioria cinéfilas) e o humor de situação com espontaneidade e dinamismo, o longa é astuto ao ir além das desventuras deste grupo de amigos. Na verdade, o primeiro grande trunfo do roteiro está no esmero na construção dos cativantes personagens. Embora Max e Annie estejam no centro de toda a trama, a dupla de realizadores é ágil ao estabelecer a personalidade dos coadjuvantes e ao permitir que a suas simples subtramas funcionem a contento. No melhor estilo ‘sitcom’ televisivo. Tipos como o expansivo pouco inteligente Ryan (Billy Magnussen, radiante), o desconfiado Kevin (Lamorne Morris, competente como de costume), a esposa com segredos Michelle (Kylie Bunbury, super carismática) e o vizinho esquisitão Gary (Jesse Plemons, impagável) ganham uma bem-vinda relevância, indo além do potencial cômico ao permitir que a trama não fique presa aos mistérios quanto ao destino de um determinado personagem. Sem querer revelar muito, embora se repita em alguns momentos, a crise de confiança ente Kevin e Michelle rende diálogos divertidíssimos e uma impagável sequência pós-crédito referente a uma grande estrela de Hollywood. Outro ponto que agrada, e muito, é a maneira com que o argumento explora a rixa familiar\masculina entre os irmãos Brooks e Max. Sem nunca recorrer ao terreno do sentimentalismo, é aqui que Dale e Goldstein conseguem criticar a imaturidade dos “herdeiros” da década de 1980, trazendo a paternidade para o centro da trama com ironia e inspiradas metáforas. É legal ver como o tema aquece a entrosada relação entre Max e Annie, dando aos ótimos Jason Bateman e Rachel McAdams a oportunidade de discutir um tema frequentemente tratado com seriedade sob uma perspectiva positivamente imatura. O que faz todo o sentido dentro da proposta da película. A versátil atriz, inclusive, rouba a cena sempre em que está nela, absorvendo o misto de competitividade e entusiasmo da sua Annie com enorme energia.


Em meio a tantos predicados, entretanto, A Noite do Jogo curiosamente derrapa quando o assunto é a construção da sua improvável caça ao tesouro. Por mais que, num todo, a dinâmica proposta pelo roteiro culmine em situações divertidas e num consistente clima de mistério, aos poucos a trama começa a se repetir demais. Embora renda uma das melhores sequências do longa, ponto para o engenhoso ‘mise en scene’ da dupla de diretores, o subplot envolvendo a busca por um ‘mcguffin’, por exemplo, se revela um tanto quanto simplório e parece se sustentar graças as piadas conseguidas a partir dele. Além disso, no momento em que decide unir todos os personagens num mesmo arco narrativo, o longa se vê preso demais às figuras de Annie e Max, reduzindo o tempo de tela dos divertidos personagens de apoio. Menos mal que, na transição para o clímax, o argumento volte a elevar o nível da película ao surgir com duas sagazes reviravoltas, testando as expectativas do público sobre a realidade dos fatos com criatividade e a adição de um (confortável, é verdade) senso de perigo. Contando ainda com a empolgante trilha sonora sintetizada de Cliff Martinez (Drive) e uma das melhores cenas de créditos finais recentes, A Noite do Jogo está, facilmente, entre os bons representantes do gênero dos últimos anos. Indo além das inesperadas referências à cultura pop e do inusitado ‘plot’ lúdico, a dupla John Francis Dale e Jonathan Goldstein faz da dinâmica entre os seus personagens o principal trunfo da película, transformando uma aparentemente despretensiosa brincadeira entre amigos numa “aventura” honesta e genuinamente cômica.

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