terça-feira, 14 de agosto de 2018

A Melhor Escolha

Uma reflexão particular sobre as sequelas de uma guerra

Vietnã, Afeganistão, Iraque. As feridas destas respectivas guerras seguem causando muita dor na sociedade norte-americana. Por mais que, de longe, seja difícil mensurar o peso destas malfadadas incursões bélicas nos EUA, o cinema, na figura de críticos cineastas, se tornou uma das ferramentas mais enfáticas na divulgação dos males impostos por conflitos deste porte. Nas últimas quatro, cinco décadas, diretores como Francis Ford Coppola (Apocalipse Now), Stanley Kubrick (Nascido para Matar), Oliver Stone (Platoon, Nascido em 4 de Julho), Michael Cimino (O Franco Atirador), Miloš Forman (Hair), Kathryn Bigelow (Guerra ao Terror), Oren Moverman (O Mensageiro), Clint Eastwood (O Sniper Americano) e mais recentemente Gavin Hood (Decisão de Risco) colocaram o dedo na ferida ao não só questionar os motivos por trás do embate em si, mas ao revelar também as sequelas das batalhas na rotina dos sobreviventes. O mais novo integrante desta lista, A Melhor Escolha envolve ao, mesmo partido de uma premissa saturada, observar a dor da perda sob uma perspectiva particular e naturalmente crítica. Sob a eloquente batuta do eclético Richard Linklater, o longa provoca um misto de sensações ao refletir sobre a banalidade da guerra a partir do drama de um veterano do Vietnã obrigado a enterrar o seu próprio filho, traçando um irônico paralelo entre o passado e o presente num agridoce ‘road movie’. Em um relato maduro, o realizador norte-americano é incisivo ao estudar o contexto que uniu estas duas gerações, indo além da (incisiva) crítica governamental ao se concentrar na dor dos seus personagens, nos seus anseios, traumas, nas suas perspectivas de futuro e no vazio que uma guerra sem motivações justas pode causar. 



Com a sua reconhecida capacidade em tirar do papel personagens realísticos, humanos e extremamente cativantes, Richard Linklater é particularmente cuidadoso ao respeitar a verdade daqueles que se arriscaram em território estrangeiro para defender a sua pátria. Embora não perca a oportunidade de se insurgir contra as “conveniências” ideológicas usadas para levar os jovens à guerra, o argumento assinado pelo próprio diretor, inspirado no romance de Darryl Ponicsan, não está interessado em questionar o militarismo, nem tão pouco os militares. Mesmo após sentirem na pele a violência do campo de batalha, os personagens se orgulham de terem servido ao seu país, de terem feito parte de um grupo de corajosos homens que, seguindo as suas “ingênuas” convicções, entregaram as suas vidas na ilusão que estariam agindo por um bem maior. Um viés ideológico que, três décadas depois, é sumariamente contestado quando três veteranos se unem mais uma vez para enterrar um dos seus filhos. O foco de Linklater está, indiscutivelmente, nos superiores, no governo, naqueles que sacrificaram (e sacrificam) vidas inocentes em prol de interesses ainda hoje escusos. Enquanto uma crítica a participação americana em conflitos do porte do Vietnã e do Iraque, o longa é categórico ao escancarar a banalidade por trás da morte, ao diluir o pretenso heroísmo daqueles que (vivos ou não) voltam para casa. Reconhecido pela sua fluidez narrativa, Linklater costura o passado e o presente dos protagonistas com intimismo e desenvoltura, acreditando na força do seu texto enquanto revela a impressão de duas gerações de soldados sobre a realidade em terras inimigas. Mais do que simplesmente expor as suas feridas de guerra mais íntimas, o que confere uma pontual dose de tensão a trama, o realizador é astuto ao revelar o círculo vicioso, ao mostrar filhos repetindo os “erros” dos pais, estreitando os laços entre jovens e veteranos ao constatar que, no final das contas, os motivos que os levaram a defender os seus motivos eram basicamente os mesmos.


O grande diferencial de A Melhor Escolha, entretanto, está no apreço de Richard Linklater pelo aspecto micro desta crítica. Isso porque, a meu ver, este é a primeira grande produção em Hollywood a explorar as consequências da “invasiva cultura bélica” norte-americana na rotina de duas gerações de uma mesma família. Consciente desta singularidade, o realizador é perspicaz ao propor um dinâmico estudo de personagem sobre o sereno Doc (Steve Carrel), um sobrevivente da guerra do Vietnã obrigado a enterrar o seu filho, uma vítima da guerra do Iraque. Através desta particular perspectiva, Linklater enche a tela de sentimento ao acompanhar os passos deste anestesiado homem, usando o impacto do luto como o estopim na construção de uma jornada de aceitação e amizade. Em busca de força para não só buscar o corpo do seu querido filho, como também para encarar velhos fantasmas, o solitário veterano decide encontrar ajuda em dois dos seus irmãos de farda, o beberrão Sal (Bryan Cranston) e o agora religioso Richard (Laurence Fishburne), reatando laços desfeitos pelo tempo numa viagem ao mesmo tempo dolorosa e reconfortante. Por mais que, num primeiro momento, a (re)união do trio possa soar um tanto quanto conveniente, Linklater precisa de poucas cenas para mostrar a força do vínculo criado num campo de batalha.


Sem a necessidade de se sentir preso ao drama, o diretor mostra versatilidade ao transitar por temas contrastantes, preenchendo as lacunas comportamentais através de diálogos ora densos e reflexivo, ora irônicos e provocadores. Por mais que as duas horas de projeção soem excessivas, o longa, inclusive, perde ritmo durante o segundo ato, Richard Linklater é astuto ao usar a inusitada dupla de amigos como uma espécie de régua moral. Numa análise mais lúdica, enquanto o falastrão Sal surge como o diabinho do desenho animado, o cara expansivo e incorreto que encontra no humor (e na bebida) uma válvula de escape, o rígido Richard surge literalmente como o anjinho da relação, o homem “recuperado” pela fé que tenta trazer um pouco de conforto a partir da sua experiência com Deus. Sob uma perspectiva mais profunda, no entanto, é possível enxergar os simbolismos por trás destes dois arquétipos. Como se, através, deles, Linklater tivesse refletindo sobre duas das alternativas de “fuga” mais comuns para tipos com os problemas de Doc: o álcool ou a religião. Sem qualquer tipo de julgamento sobre a reação dos personagens, o realizador diverte ao construir as rixas entre Sal e Richard, as provocações, as trocas de farpas e as inteligentes reflexões da dupla sobre as suas respectivas realidades, permitindo que os dois, mesmo que involuntariamente, oferecessem tudo aquilo que Doc mais precisava. Além disso, como de costume nas suas obras, Linklater não se resume ao drama central. Sempre que possível, graças a naturalista verborragia dos seus personagens, ele vai além, discorrendo sobre temas inerentes à época (o filme se passa em 2003) ao falar sobre cultura, música, política, tecnologia e a realidade que cercava o trio de protagonistas.


Uma abordagem íntima, verdade seja dita, potencializada pelo eclético e entrosado elenco. Enfileirando grandes trabalhos com versatilidade e um faro afiado para tipos humanos, Steve Carrel encanta ao entregar uma figura anestesiada, um homem doce destruído por dentro que, ao lado dos seus caóticos parceiros, tem uma missão dificílima pela frente. Basta olharmos para ele para sentirmos a sua dor, a sua raiva reprimida, a sua repentina força, a sua esperança. Uma performance serena e introspectiva que só ajuda a reforçar o potencial dramático da película. No mesmo nível do seu parceiro de set, Bryan Cranston rouba a cena na pele do extrovertido Sal. Muito mais do que um simples alívio cômico, o talentoso ator surge como o elemento provocador da trama, uma figura anárquica, persuasiva e por vezes inconveniente capaz de desafiar as convenções sociais sem nunca esquecer do seu papel enquanto amigo. Um trabalho carregado de personalidade. Já o intenso Laurence Fishburne fecha o trio com uma atuação na medida certa. Na pele do personagem aparentemente mais quadrado da trama, o veterano rompe com o rótulo careta religioso ao construir um pastor capaz de rir de si mesmo, mostrando tato para lidar com a situação à medida que se reconecta parcialmente com o seu antigo eu. Mais do que grandes trabalhos, o trio constrói uma relação marcada pela forte química, justificando a repentina reaproximação ao dar vida a uma convincente amizade. Por fim, o rosto mais novo do elenco, J. Quinton Johnson cumpre as expectativas ao mostrar o outro lado da equação, dando voz aos dilemas da sua geração de militares com carisma e intensidade. Sem querer revelar muito, Linklater é particularmente habilidoso ao, em poucos momentos, enxergar nele um novo contexto, refletindo sobre os enraizados problemas urbanos dos EUA com propriedade e sagacidade.


Embora pese a mão em alguns momentos, a deslocada “homenagem” ao clássico Nascido para Matar contrasta, por exemplo, com a emotiva passagem envolvendo a idosa mãe de um veterano, A Melhor Escolha sai em defesa do verdadeiro patriotismo ao jogar uma abrangente luz sobre àqueles que se sacrificaram sem sequer saber pelo que estavam lutando. Com atuações marcantes, diálogos preciosos e personagens cativantes, Richard Linklater exibe a sua franqueza usual ao transitar por um tema naturalmente delicado, contestando o heroísmo “fabricado” em guerra ao mostrar a verdade por trás dos discursos protocolares, das medalhas de honra e das cerimônias militares.


3 comentários:

JOTAT10 disse...

Filmes de guerras sempre é legal assistir, e quando vejo o Ator Laurence Fishburne no elenco eu fico mais apreensivo em ver e curtir o filme, os diretores americanos fazem muitos filmes de guerras inesquecíveis, esse vai ser mais um que fara sucesso.

thicarvalho disse...

Jotat não é bem um filme de guerra. É um drama sobre as consequências de uma guerra. Um belo drama. Maduro, mas irônico. Reflexivo, mas contundente. Valeu pela visita.

JOTAT10 disse...

Estaremos sempre aqui, eu que agradeço pelas suas dicas de Filmes, Abraços.