Uma das correntes mais marcantes
do Western, o movimento revisionista ganhou forma na década de 1950 para
colocar em cheque a maniqueísta versão glamourizada do gênero. Mais conectado
com a realidade e o contexto histórico da época, títulos como Matar ou Morrer
(1952), Os Brutos também Amam (1953) e Johnny Guitar (1954) ajudaram
estabelecer esta nova visão, popularizada nos anos 1960 e 1970 graças a obras
do porte de Os Sete Magníficos (1960), Meu Ódio será sua Herança (1969) e Butch
Cassidy and the Sundance Kid (1969). Os indígenas deixaram de ser os vilões e
passaram a ser as vítimas. Os caubóis fora-da-lei ganharam nuances mais íntimas
e humanas. Os xerifes se tornaram tipos dúbios. A violência passou a ser
questionada. A barreira entre protagonistas e antagonistas se tornou quase
imperceptível. Uma visão que “sobreviveu”, até mesmo, a decadência do segmento,
sendo revitalizada nas últimas duas décadas nas mãos de realizadores como Clint
Eastwood (Os Imperdoáveis, Gran Torino), James Mangold (Os Indomáveis), Ethan e
Joel Coen (Onde os Fracos Não Tem Vez, Bravura Indômita), Quentin Tarantino
(Django Livre, Os Oito Odiados), Alejandro G. Iñarritu (O Regresso), Taylor
Sheridan (A Qualquer Custo, Terra Selvagem). Uma baita lista que ganha um
integrante de respeito com o singular Oeste sem Lei. Um daqueles ‘hits’
inadvertidamente lançados direto no ‘streaming’, o longa dirigido e roteirizado
por John Maclean esbanja sarcasmo ao revisitar o velho oeste sob a perspectiva
de um jovem e apaixonado estrangeiro. Com um roteiro irônico, personagens
cativantes e uma história instigante, a película é astuta ao traduzir a
vulnerabilidade individual numa terra sem lei, brincando com as expectativas do
idealista protagonista (e consequentemente do público) ao tirar do papel um
‘road-movie’ incisivo e inesperadamente sentimental.
Impecável ao explorar um dos
elementos mais clássicos do gênero, a imprevisibilidade, John Maclean envolve
ao expor a banalização da violência em terras norte-americanas no século XIX
sob o inocente ponto de vista de um romântico inconsequente. Cuidadoso ao
estabelecer os segredos em torno do desprotegido Jay (Kodi Smit-McPhee), o
argumento flerta com o cinismo ao descortinar o ‘status quo’ da época, ao
trata-lo como uma ovelha solitária em terra de lobos. Sem tempo a perde com
explicações óbvias, Maclean nos “abandona”, tal qual o protagonista, numa terra
vil e inóspita, reforçando a nossa conexão com ele ao trata-lo como um ser
desconectado daquela realidade. Logo nas primeiras cenas, antes mesmo de
conhecê-lo melhor, o argumento é astuto ao realçar a sua “civilidade”. Enquanto
um estranho se apresenta com uma arma em punho, ele responde com o diálogo. Enquanto
um pistoleiro desdenha de um grupo de músicos negros, ele se afeiçoa e presta a
sua reverência. Estamos diante de um tipo pouco explorado dentro do segmento,
muito em função da sua incapacidade de sobreviver sozinho neste cenário. Um
aspecto indefeso que, obviamente, chama a atenção do fora-da-lei Sillas Selleck
(Michael Fassbender), um homem criado neste ambiente que decide “escolta-lo”
até o seu destino em troca de US$ 100. Em meio a desconfiança e ao choque de
identidades, o enigmático caubói passa a criar uma conexão com o ingênuo Jay,
principalmente quando descobre os motivos que o levaram a uma terra sem lei: o
amor platônico por uma jovem fugitiva (Caren Pistorius).
Com enxutas 1 h e 20 min de
duração, Oeste sem Lei vai direto ao ponto ao nos situar neste predatório
cenário. No melhor estilo ‘road-movie’, Jay pouco a pouco é modificado pela sua
jornada, sentindo na pele a violência e o clima de constante ameaça que o
cerca. Numa clara referência ao humor dos irmãos Coen, a morte surge de maneira
repentina, quase sorrateira, obrigando o protagonista a reagir e a conviver com
as consequências dos seus atos. É interessante ver, entretanto, a perspicácia
de John Maclean ao não perder muito tempo com o drama em si. Sem um pingo de
condescendência, o realizador coloca a grande maioria dos personagens no mesmo
barco ao diluir as barreiras entre a “caça” e o “caçador”. É matar ou morrer.
Os dilemas morais, na verdade, estão nas entrelinhas, nos lembrando que estamos
diante de um mundo real, com vítimas inocentes. Um olhar sensível para a frágil
situação dos nativos e dos estrangeiros em território norte-americano. O foco,
porém, está na crescente troca de experiências entre Jay e Sillas. Enquanto o
primeiro, sem perder o seu romantismo idealizado, passa a encarar a violência
com mais naturalidade, o segundo parece amolecer na presença de um tipo inteligente
e bondoso. Sem querer revelar muito, no melhor estilo Bravura Indômita (2007),
é Sillas o personagem que se transforma em cena, muito em função da sua
convivência com sentimentos que já não pertenciam mais ao seu mundo. Uma
metamorfose compreensível que justifica a maior parte das atitudes do
pistoleiro sem passado. Isso, pelo menos, até o memorável último ato, quando,
num dos poucos excessos do roteiro, as reações do ‘badass’ personagem se tornam
mais drásticas\altruístas do que o esperado.
O grande trunfo de Oeste sem Lei,
no entanto, está na maneira com que o roteiro sustenta os segredos em torno de
alguns personagens até o impactante clímax. Fazendo jus ao estilo ‘road movie’,
John Maclean brinca com os mais populares arquétipos do gênero ao dar voz aos
cativantes coadjuvantes, reforçando o clima de tensão ao sugerir que Jay não
era o único com interesses relacionados à donzela. Indo além da figura do
reativo Sillas, o argumento é astuto ao introduzir figuras como o afetado Payne
(Ben Mendelsohn) e o nebuloso Angus (Tony
Croft), realçando a sensação de perigo iminente em torno da jornada de Jay. Em
um ou dois momentos, aliás, o realizador é sagaz ao utiliza-los em prol da sua
crítica a banalização da violência. O que fica bem claro, em especial, na
fantástica cena da fogueira, uma sequência simples que dá uma verdadeira aula
de como se explorar o recurso da narração. Somado a isso, o promissor Maclean
mostra inspiração ao homenagear o gênero nas cenas de ação sem deixar de
mostrar o seu estilo. Apostando em enquadramento simétricos, que,
indiscutivelmente, remetem ao cultuado Wes Anderson, o realizador capricha nos
planos médios\fechados, potencializando o suspense ao valorizar ora a calmaria
antes do caos, ora a inércia dos personagens no fogo cruzado. As balas, aqui,
não escolhem lados. Outro ponto que agrada, e muito, é sutileza de Maclean em
criar os contrastes. Apesar da proposta suja e violenta, o realizador por vezes
opta por situar a ação em cenários limpos e belos, um predicado valorizado pela
radiante fotografia selvagem do irlandês Robbie Ryan (A Parte dos Anjos). Vide
- mais uma vez - o imprevisível e esteticamente refinado clímax, um desfecho à
altura dos melhores títulos do gênero.
No embalo das íntegras performances da dupla Kodi Smit-McPhee e
Michael Fassbender, este último na pele de um caubói imagético e insinuante,
Oeste sem Lei se revela uma obra surpreendente e acima de tudo corajosa. Com um
texto refinado, personagens magnéticos e sequências estilosas, John Maclean
revisita o clássico velho oeste com propriedade, refletindo, dentre outras
coisas, sobre a formação cultural norte-americana ao expor a realidade do país
neste período sob um romantizado e desmistificador olhar estrangeiro.
2 comentários:
Excelente análise. Assisti esta película sem grandes expectativas e que grata surpresa tive, sensacional. Como grande fã de westerns fiquei muito feliz ao encontrar um trabalho tão bacana. Meus diretores favoritos, de longe, são Coen Brothers e Tarantino. Assim, me apaixonei mais ainda pela obra ao encontrar semelhanças estilísticas entre estes grandes realizadores e o promissor Maclean. Novamente, parabéns pela análise.
Valeu Wesley. Poucos filmes me surpreenderam tanto recentemente quanto Slow West. Merecia ser mais conhecido.
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