quinta-feira, 5 de julho de 2018

Oeste sem Lei - Slow West

Amor impossível

Uma das correntes mais marcantes do Western, o movimento revisionista ganhou forma na década de 1950 para colocar em cheque a maniqueísta versão glamourizada do gênero. Mais conectado com a realidade e o contexto histórico da época, títulos como Matar ou Morrer (1952), Os Brutos também Amam (1953) e Johnny Guitar (1954) ajudaram estabelecer esta nova visão, popularizada nos anos 1960 e 1970 graças a obras do porte de Os Sete Magníficos (1960), Meu Ódio será sua Herança (1969) e Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969). Os indígenas deixaram de ser os vilões e passaram a ser as vítimas. Os caubóis fora-da-lei ganharam nuances mais íntimas e humanas. Os xerifes se tornaram tipos dúbios. A violência passou a ser questionada. A barreira entre protagonistas e antagonistas se tornou quase imperceptível. Uma visão que “sobreviveu”, até mesmo, a decadência do segmento, sendo revitalizada nas últimas duas décadas nas mãos de realizadores como Clint Eastwood (Os Imperdoáveis, Gran Torino), James Mangold (Os Indomáveis), Ethan e Joel Coen (Onde os Fracos Não Tem Vez, Bravura Indômita), Quentin Tarantino (Django Livre, Os Oito Odiados), Alejandro G. Iñarritu (O Regresso), Taylor Sheridan (A Qualquer Custo, Terra Selvagem). Uma baita lista que ganha um integrante de respeito com o singular Oeste sem Lei. Um daqueles ‘hits’ inadvertidamente lançados direto no ‘streaming’, o longa dirigido e roteirizado por John Maclean esbanja sarcasmo ao revisitar o velho oeste sob a perspectiva de um jovem e apaixonado estrangeiro. Com um roteiro irônico, personagens cativantes e uma história instigante, a película é astuta ao traduzir a vulnerabilidade individual numa terra sem lei, brincando com as expectativas do idealista protagonista (e consequentemente do público) ao tirar do papel um ‘road-movie’ incisivo e inesperadamente sentimental. 



Impecável ao explorar um dos elementos mais clássicos do gênero, a imprevisibilidade, John Maclean envolve ao expor a banalização da violência em terras norte-americanas no século XIX sob o inocente ponto de vista de um romântico inconsequente. Cuidadoso ao estabelecer os segredos em torno do desprotegido Jay (Kodi Smit-McPhee), o argumento flerta com o cinismo ao descortinar o ‘status quo’ da época, ao trata-lo como uma ovelha solitária em terra de lobos. Sem tempo a perde com explicações óbvias, Maclean nos “abandona”, tal qual o protagonista, numa terra vil e inóspita, reforçando a nossa conexão com ele ao trata-lo como um ser desconectado daquela realidade. Logo nas primeiras cenas, antes mesmo de conhecê-lo melhor, o argumento é astuto ao realçar a sua “civilidade”. Enquanto um estranho se apresenta com uma arma em punho, ele responde com o diálogo. Enquanto um pistoleiro desdenha de um grupo de músicos negros, ele se afeiçoa e presta a sua reverência. Estamos diante de um tipo pouco explorado dentro do segmento, muito em função da sua incapacidade de sobreviver sozinho neste cenário. Um aspecto indefeso que, obviamente, chama a atenção do fora-da-lei Sillas Selleck (Michael Fassbender), um homem criado neste ambiente que decide “escolta-lo” até o seu destino em troca de US$ 100. Em meio a desconfiança e ao choque de identidades, o enigmático caubói passa a criar uma conexão com o ingênuo Jay, principalmente quando descobre os motivos que o levaram a uma terra sem lei: o amor platônico por uma jovem fugitiva (Caren Pistorius).


Com enxutas 1 h e 20 min de duração, Oeste sem Lei vai direto ao ponto ao nos situar neste predatório cenário. No melhor estilo ‘road-movie’, Jay pouco a pouco é modificado pela sua jornada, sentindo na pele a violência e o clima de constante ameaça que o cerca. Numa clara referência ao humor dos irmãos Coen, a morte surge de maneira repentina, quase sorrateira, obrigando o protagonista a reagir e a conviver com as consequências dos seus atos. É interessante ver, entretanto, a perspicácia de John Maclean ao não perder muito tempo com o drama em si. Sem um pingo de condescendência, o realizador coloca a grande maioria dos personagens no mesmo barco ao diluir as barreiras entre a “caça” e o “caçador”. É matar ou morrer. Os dilemas morais, na verdade, estão nas entrelinhas, nos lembrando que estamos diante de um mundo real, com vítimas inocentes. Um olhar sensível para a frágil situação dos nativos e dos estrangeiros em território norte-americano. O foco, porém, está na crescente troca de experiências entre Jay e Sillas. Enquanto o primeiro, sem perder o seu romantismo idealizado, passa a encarar a violência com mais naturalidade, o segundo parece amolecer na presença de um tipo inteligente e bondoso. Sem querer revelar muito, no melhor estilo Bravura Indômita (2007), é Sillas o personagem que se transforma em cena, muito em função da sua convivência com sentimentos que já não pertenciam mais ao seu mundo. Uma metamorfose compreensível que justifica a maior parte das atitudes do pistoleiro sem passado. Isso, pelo menos, até o memorável último ato, quando, num dos poucos excessos do roteiro, as reações do ‘badass’ personagem se tornam mais drásticas\altruístas do que o esperado.


O grande trunfo de Oeste sem Lei, no entanto, está na maneira com que o roteiro sustenta os segredos em torno de alguns personagens até o impactante clímax. Fazendo jus ao estilo ‘road movie’, John Maclean brinca com os mais populares arquétipos do gênero ao dar voz aos cativantes coadjuvantes, reforçando o clima de tensão ao sugerir que Jay não era o único com interesses relacionados à donzela. Indo além da figura do reativo Sillas, o argumento é astuto ao introduzir figuras como o afetado Payne (Ben Mendelsohn) e o nebuloso Angus (Tony Croft), realçando a sensação de perigo iminente em torno da jornada de Jay. Em um ou dois momentos, aliás, o realizador é sagaz ao utiliza-los em prol da sua crítica a banalização da violência. O que fica bem claro, em especial, na fantástica cena da fogueira, uma sequência simples que dá uma verdadeira aula de como se explorar o recurso da narração. Somado a isso, o promissor Maclean mostra inspiração ao homenagear o gênero nas cenas de ação sem deixar de mostrar o seu estilo. Apostando em enquadramento simétricos, que, indiscutivelmente, remetem ao cultuado Wes Anderson, o realizador capricha nos planos médios\fechados, potencializando o suspense ao valorizar ora a calmaria antes do caos, ora a inércia dos personagens no fogo cruzado. As balas, aqui, não escolhem lados. Outro ponto que agrada, e muito, é sutileza de Maclean em criar os contrastes. Apesar da proposta suja e violenta, o realizador por vezes opta por situar a ação em cenários limpos e belos, um predicado valorizado pela radiante fotografia selvagem do irlandês Robbie Ryan (A Parte dos Anjos). Vide - mais uma vez - o imprevisível e esteticamente refinado clímax, um desfecho à altura dos melhores títulos do gênero.


No embalo das íntegras performances da dupla Kodi Smit-McPhee e Michael Fassbender, este último na pele de um caubói imagético e insinuante, Oeste sem Lei se revela uma obra surpreendente e acima de tudo corajosa. Com um texto refinado, personagens magnéticos e sequências estilosas, John Maclean revisita o clássico velho oeste com propriedade, refletindo, dentre outras coisas, sobre a formação cultural norte-americana ao expor a realidade do país neste período sob um romantizado e desmistificador olhar estrangeiro.

2 comentários:

Wesley Aquino disse...

Excelente análise. Assisti esta película sem grandes expectativas e que grata surpresa tive, sensacional. Como grande fã de westerns fiquei muito feliz ao encontrar um trabalho tão bacana. Meus diretores favoritos, de longe, são Coen Brothers e Tarantino. Assim, me apaixonei mais ainda pela obra ao encontrar semelhanças estilísticas entre estes grandes realizadores e o promissor Maclean. Novamente, parabéns pela análise.

thicarvalho disse...

Valeu Wesley. Poucos filmes me surpreenderam tanto recentemente quanto Slow West. Merecia ser mais conhecido.