Década de 1980. O cenário era
nebuloso. O mercado de animação passava por uma crise sem precedentes, uma
entressafra marcada por obras pouco inspiradas, esporádicos sucessos de público
e uma crescente perda de relevância. Um dos pilares do segmento, a Disney
tentava “recolher os cacos” após o fracasso chamado O Caldeirão Mágico (1985).
Um projeto que, no papel, surgia como um potencial divisor de águas. Em meio ao
marasmo que havia tomado conta da animação ocidental, o estúdio decidiu
investir pesado na adaptação dos primeiros livros da série As Crônicas de
Prydain, de Lloyd Alexander, uma estratégia que, uma década mais tarde, viria a
se tornar um sinônimo de sucesso com franquias do quilate de Harry Potter, O
Senhor dos Anéis e As Crônicas de Narnia. Naquele momento, entretanto, o que se
viu foi um fiasco. Com a intenção de revolucionar as engrenagens do gênero, os
diretores Ted Berman e Richard Rich (do excelente O Cão e a Raposa) ganharam
carta branca para tirar do papel uma aventura grandiosa, com traços
expressivos, a pioneira utilização da computação gráfica na criação de efeitos
secundários e uma atmosfera soturna poucas vezes vista na história da Disney.
Um nível de excelência e ousadia que custou caro. Com orçamento previsto para
US$ 25 milhões, números – por si só – elevadíssimos, os realizadores sofreram
com o “estouro” do orçamento, que, especula-se, teria ultrapassado a marca dos
US$ 44 milhões. Para piorar, após as tão temidas sessões testes, o produtor
executivo Jeffrey Katzenberg se espantou com o viés sombrio da
película, com a proposta distante dos “padrões” Disney. O que, obviamente, culminou
num corte de quase doze minutos de cenas do material original e num produto
final o mais infantil possível. O resultado não poderia ser outro. Apesar dos
inegáveis méritos técnicos e narrativos, O Caldeirão Mágico naufragou nas
bilheterias norte-americanas ao render frustrantes US$ 21 milhões, um revés
pesado que causou uma série de mudanças na já combalida Walt Disney Animations,
incluindo uma troca de sede, e por pouco não quebrou o estúdio como um todo.
É na crise, porém, que nascem
algumas das grandes ideias. Paralelamente ao lançamento\fiasco de O Caldeirão
Mágico, o próprio Jeffrey Katzenberg resolveu dar um voto de confiança a uma
produção audaciosa que sofria com a ameaça do engavetamento. Alguns anos antes,
em 1981, o futuro presidente da Walt Disney Studios deu o sinal verde para a
compra dos direitos do romance Who Censored Roger Rabbit?, de Gary K. Wolf, um
suspense ‘noir’ protagonizado por um detetive e um cartunesco coelho gigante.
Nos dois anos seguintes o estúdio contratou roteiristas e um elenco provisório,
mas aos poucos o projeto parecia perder força. Isso até a chegada de Michael
Eisner, o novo executivo chefe da Disney. Com a intenção de reativar esta
produção, ele recorreu aos melhores, entregando a ambiciosa adaptação nas mãos
da Amblin Entertainment, dos produtores Steven Spielberg, Frank Marshall e
Kathleen Kennedy. Após uma série de tratativas e a promessa de redução do
orçamento para US$ 30 milhões, uma meta que, naturalmente, não foi cumprida,
Katzenberg deu o tão cobiçado sinal verde para o início da pré-produção
acreditando que a mistura de animação com ‘live-action’ seria a “salvação do
departamento de animação da Disney”. Acertou mizeravi! Após ter o seu nome
recusado lá atrás nos testes iniciais durante a primeira fase de pré-produção, Robert
Zemeckis, impulsionado pelos estrondosos sucessos de Tudo por uma Esmeralda
(1984) e De Volta para o Futuro (1985), foi escalado para comandar esta insana
película, uma opção certeira que casaria perfeitamente com o teor “incorreto”
que viria a ditar o rumo do inventivo Um Cilada para Roger Rabbit. Numa
produção diferente de tudo o que já foi feito desde então, Spielberg, a dupla
de roteiristas Jeffrey Price e Peter S. Seaman e o próprio Zemeckis tiveram que
unir as suas forçar para cumprir os inúmeros desafios em torno da confecção
desta película. E cada um deles contribui ativamente para o triunfo da
produção.
Como de costume na sua carreira,
Steven Spielberg teve que arregaçar as mangas para construir um dos
‘crossovers’ mais fantásticos da história da Sétima Arte. Com a intenção de
criar um mundo único, um universo (a Toon’s Town) em que os personagens
animados coexistiam amistosamente, o realizador usou o seu prestígio para
convencer a concorrência a ceder os direitos de alguns dos mais populares
personagens do gênero. Num trabalho árduo e persuasivo, Spielberg comprovou a
sua importância dentro da indústria ao convencer empresas como a Warner Bros, a
Turner Entertainment e a Universal\Walter Lantz Productions a “emprestar” os
seus personagens sem qualquer retorno financeiro, uma negociação hoje
impossível, mas que na época, graças a sua “mágica”, saiu do papel. Assim, numa
mistura improvável para uma geração de crianças, o realizador colocou lado a
lado (alguns, contratualmente, com o mesmo tempo de tela) Mickey, Pernalonga,
Pato Donald, Patolino, Pica Pau, Pateta, Papa-Léguas, Coiote, Frajola, Betty
Boop. Uma combinação, ainda hoje, arrepiante, principalmente para aqueles que
cresceram assistindo a estes inesquecíveis personagens. Nem só de participações
especiais, entretanto, viveu Uma Cilada para Roger Rabbit. Um dos desafios mais
complexos desta empreitada, a adaptação deste inusitado romance se tornou
talvez o grande trunfo por trás desta impagável aventura.
Com liberdade para
criar, Jefrey Prince e Peter Seaman conseguiram capturar a estrutura do texto original mesmo
numa releitura praticamente nova. A rigor, ficaram os protagonistas, a
improvável dinâmica entre os dois e só. Apesar da abordagem ‘noir’, as
referências ao clássico Chinatown (1974) são claras, a dupla de roteiristas
conquistou o público e a crítica ao entregar uma obra universal, uma produção
com personagens positivamente cartunescos, um suspense instigante e um humor
sacana capaz de dialogar tanto com a criançada, quanto com os adultos. Numa
mistura de Pica-Pau com Pernalonga, Roger Rabbit ganhou uma persona
transloucada, uma faceta expansiva e afetuosa que combinou magnificamente com a
sisudez urbana do investigador Eddie Valiant (Bob Hoskins). Entre os dois surge
a sedutora Jessica Rabbit, uma personagem corajosa, principalmente pela maneira
com que se mantém (bem) longe dos “padrões” Disney. A maior sacada da dupla
Prince e Seaman, porém, ficou na construção do vilanesco Juiz Doom, vivido com
maestria por Christopher Lloyd, um tipo singular criado para o filme que
protagoniza alguns dos momentos mais sombrios da película.
Com um texto precioso e um
universo de personagens rico em mãos, Robert Zemeckis imprimiu em tela a
excentricidade que Uma Cilada de Roger Rabbit precisava para se tornar um filme
raro em Hollywood. Numa época em que o advento da animação computadorizada era
usado com discrição dentro do segmento, o realizador reaqueceu as engrenagens
da indústria ao misturar animação e ‘live action’ de maneira poucas vezes
vista. Um processo trabalhoso e que, obviamente, inflacionou o custo da
produção. Naquela época, um período em que a técnica de captura de movimentos
nem sonhava em existir, Zemeckis se viu obrigado a rodar o filme inicialmente
apenas com os atores. Responsável por dar voz ao falastrão Roger, Charles
Fleischer, por exemplo, participou ativamente das filmagens, atuando normalmente
ao lado de Bob Hoskins vestindo uma roupa de coelho e orelhas gigantes. Nos
bastidores, inclusive, reza a lenda que alguns visitantes, sem entender o
processo de criação da película, saiam do set rindo dos improvisos e do
artesanal processo de produção, acreditando que estavam diante de uma das
piores e mais pobres produções Disney. Ledo engano. Após entregar uma aventura
em que um adolescente voltava no tempo e acabava atraindo olhares nada
familiares da sua jovem\futura mãe, Zemeckis se revelou a escolha perfeita para
“infantilizar” o incorreto script, flertando com o universo das sátiras ao rir da
estrutura do cinema noir. Ambientado na década de 1940, o longa conseguiu
transitar por temas adultos com ironia e o um caótico ar cartunesco, nos
brindando com uma trama sobre traição, assassinatos e os segredos em torno de
uma poderosa corporação. E isso sem subestimar a inteligência do público.
Com traços originais, um visual criativo e personagens recheado de personalidade, Robert Zemeckis causou um inegável fascínio ao se concentrar no grande diferencial desta película, a impagável dinâmica entre humanos e seres animados, revigorando um errático segmento ao extrair o máximo de diversão desta corajosa mistura. Um predicado, primeiramente, valorizado pelo primoroso trabalho da equipe de animadores da Industrial Light and Magic (ILM) que, na longa pós-produção (ao todo foram 14 meses), teve que suar a camisa para tornar a relação entre atores\animação e entre personagens\cenário o mais verossímil possível. Sob o comando de Richard Williams, o que se viu foi um trabalho tecnicamente memorável, uma animação 2-D com um senso de profundidade e textura que só viria a se tornar recorrente em Hollywood com o advento da computação gráfica. O termo ‘bumping the lamp’, aliás, nasceu aqui, uma expressão relacionada ao elevado grau de dificuldade na confecção de um efeito visual que foi cunhada numa cena em que, por acidente, Hoskins esbarra num spot de luz durante a ação, obrigando a equipe de animação a criar um movimento de sombra complicadíssimo para a época. Por falar nele, parte do êxito da película se deve ao desprendimento do ator na construção do seu Eddie Valliant. Tendo como base somente alguns rudimentares ‘storyboards’ (vídeo acima), Hoskins teve que usar e abusar da criatividade para encarnar este complicado projeto, para participar do por vezes imaginário ‘mise en scene’ proposto por Zemeckis, se tornando um exemplo de sucesso quando assunto são os filmes que misturam animação\CGI e o ‘live-action’.
Como em todo ousado projeto, porém, Steven Spielberg e Robert Zemeckis sofreram com as incertezas até os 45 minutos do segundo tempo. Mesmo após convencerem os executivos da Disney a subirem o orçamento, que foi de US$ 30 para US$ 50 milhões, a dupla de realizadores ainda sofria diante da relutância do CEO da Disney Michael Eisner e do Vice-Presidente do estúdio Roy E. Disney. Sim, o sobrinho do próprio Walt Disney. Sob a sombra do fracasso de O Caldeirão Mágico, a dupla, até com certa dose de razão, achava que o filme era um projeto de risco em virtude das suas insinuações sexuais. Já era possível ouvir o barulho da tesoura sendo afiada para retalhar o projeto. Aqui, porém, valeu a imposição de Spielberg e a coragem de Zemeckis que, com os direitos em contrato sobre a versão final do filme, recusou com veemência a interferência de terceiros na sua obra. Diante do impasse, Jeffrey Katzenberg, um dos primeiros entusiastas do projeto, decidiu intervir e, em comum acordo com Roy, definiu que o longa não seria lançado com o selo Disney, mas sob o banner da Touchstone Pictures, uma divisão da Walt Disney Company. Todos saíram felizes.
Um preciosismo que em nada afetou
o triunfo de Uma Cilada para Roger Rabbit. Contrariando as mais otimistas
expectativas, o longa estreou no topo das bilheterias norte-americanas somando
US$ 11 milhões somente no primeiro fim de semana em cartaz, se tornando a
segunda maior bilheteria do ano nos EUA com US$ 156 milhões (US$ 329 milhões no
mundo). E isso num ano com Duro de Matar, Quero Ser Grande, Beetlejuice, Corra
que a Polícia Vem Ai! e Um Príncipe em Nova Iorque. Um resultado estrondoso que
premiou a ousadia dos envolvidos e constatou o quão negativa pode ser a
interferência criativa dos executivos. Uma obra à frente do seu tempo e que
insiste em não envelhecer, Uma Cilada de Roger Rabbit foi um daqueles
filmes-evento, uma produção inigualável não por reunir atores e animações, nem
tão pouco pelo seu trabalhoso processo de produção, mas pela sagacidade ao
buscar diálogo com todos os públicos, ao oferecer um tipo de humor e de
personagens originais (Baby Herman e Benny o carro são incríveis) que viria a
ditar o tom para a retomada do mercado de animação ocidental na década de 1990.
Uma produção que não só marcou a infância de uma geração carente de longas
animados modernos, inclusive esse que vos escreve, como também resgatou a
confiança da Disney no segmento, preparando (involuntariamente, a meu ver) o
terreno para a realização de triunfantes obras do quilate de A Pequena Sereia
(1989), A Bela e a Fera (1991), Aladdin (1992) e O Rei Leão (1994).
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