domingo, 8 de julho de 2018

Os trinta anos de Uma Cilada para Roger Rabbit, o longa que resgatou a “confiança” da Disney nas suas animações


Década de 1980. O cenário era nebuloso. O mercado de animação passava por uma crise sem precedentes, uma entressafra marcada por obras pouco inspiradas, esporádicos sucessos de público e uma crescente perda de relevância. Um dos pilares do segmento, a Disney tentava “recolher os cacos” após o fracasso chamado O Caldeirão Mágico (1985). Um projeto que, no papel, surgia como um potencial divisor de águas. Em meio ao marasmo que havia tomado conta da animação ocidental, o estúdio decidiu investir pesado na adaptação dos primeiros livros da série As Crônicas de Prydain, de Lloyd Alexander, uma estratégia que, uma década mais tarde, viria a se tornar um sinônimo de sucesso com franquias do quilate de Harry Potter, O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Narnia. Naquele momento, entretanto, o que se viu foi um fiasco. Com a intenção de revolucionar as engrenagens do gênero, os diretores Ted Berman e Richard Rich (do excelente O Cão e a Raposa) ganharam carta branca para tirar do papel uma aventura grandiosa, com traços expressivos, a pioneira utilização da computação gráfica na criação de efeitos secundários e uma atmosfera soturna poucas vezes vista na história da Disney. Um nível de excelência e ousadia que custou caro. Com orçamento previsto para US$ 25 milhões, números – por si só – elevadíssimos, os realizadores sofreram com o “estouro” do orçamento, que, especula-se, teria ultrapassado a marca dos US$ 44 milhões. Para piorar, após as tão temidas sessões testes, o produtor executivo Jeffrey Katzenberg se espantou com o viés sombrio da película, com a proposta distante dos “padrões” Disney. O que, obviamente, culminou num corte de quase doze minutos de cenas do material original e num produto final o mais infantil possível. O resultado não poderia ser outro. Apesar dos inegáveis méritos técnicos e narrativos, O Caldeirão Mágico naufragou nas bilheterias norte-americanas ao render frustrantes US$ 21 milhões, um revés pesado que causou uma série de mudanças na já combalida Walt Disney Animations, incluindo uma troca de sede, e por pouco não quebrou o estúdio como um todo.


É na crise, porém, que nascem algumas das grandes ideias. Paralelamente ao lançamento\fiasco de O Caldeirão Mágico, o próprio Jeffrey Katzenberg resolveu dar um voto de confiança a uma produção audaciosa que sofria com a ameaça do engavetamento. Alguns anos antes, em 1981, o futuro presidente da Walt Disney Studios deu o sinal verde para a compra dos direitos do romance Who Censored Roger Rabbit?, de Gary K. Wolf, um suspense ‘noir’ protagonizado por um detetive e um cartunesco coelho gigante. Nos dois anos seguintes o estúdio contratou roteiristas e um elenco provisório, mas aos poucos o projeto parecia perder força. Isso até a chegada de Michael Eisner, o novo executivo chefe da Disney. Com a intenção de reativar esta produção, ele recorreu aos melhores, entregando a ambiciosa adaptação nas mãos da Amblin Entertainment, dos produtores Steven Spielberg, Frank Marshall e Kathleen Kennedy. Após uma série de tratativas e a promessa de redução do orçamento para US$ 30 milhões, uma meta que, naturalmente, não foi cumprida, Katzenberg deu o tão cobiçado sinal verde para o início da pré-produção acreditando que a mistura de animação com ‘live-action’ seria a “salvação do departamento de animação da Disney”. Acertou mizeravi! Após ter o seu nome recusado lá atrás nos testes iniciais durante a primeira fase de pré-produção, Robert Zemeckis, impulsionado pelos estrondosos sucessos de Tudo por uma Esmeralda (1984) e De Volta para o Futuro (1985), foi escalado para comandar esta insana película, uma opção certeira que casaria perfeitamente com o teor “incorreto” que viria a ditar o rumo do inventivo Um Cilada para Roger Rabbit. Numa produção diferente de tudo o que já foi feito desde então, Spielberg, a dupla de roteiristas Jeffrey Price e Peter S. Seaman e o próprio Zemeckis tiveram que unir as suas forçar para cumprir os inúmeros desafios em torno da confecção desta película. E cada um deles contribui ativamente para o triunfo da produção.


Como de costume na sua carreira, Steven Spielberg teve que arregaçar as mangas para construir um dos ‘crossovers’ mais fantásticos da história da Sétima Arte. Com a intenção de criar um mundo único, um universo (a Toon’s Town) em que os personagens animados coexistiam amistosamente, o realizador usou o seu prestígio para convencer a concorrência a ceder os direitos de alguns dos mais populares personagens do gênero. Num trabalho árduo e persuasivo, Spielberg comprovou a sua importância dentro da indústria ao convencer empresas como a Warner Bros, a Turner Entertainment e a Universal\Walter Lantz Productions a “emprestar” os seus personagens sem qualquer retorno financeiro, uma negociação hoje impossível, mas que na época, graças a sua “mágica”, saiu do papel. Assim, numa mistura improvável para uma geração de crianças, o realizador colocou lado a lado (alguns, contratualmente, com o mesmo tempo de tela) Mickey, Pernalonga, Pato Donald, Patolino, Pica Pau, Pateta, Papa-Léguas, Coiote, Frajola, Betty Boop. Uma combinação, ainda hoje, arrepiante, principalmente para aqueles que cresceram assistindo a estes inesquecíveis personagens. Nem só de participações especiais, entretanto, viveu Uma Cilada para Roger Rabbit. Um dos desafios mais complexos desta empreitada, a adaptação deste inusitado romance se tornou talvez o grande trunfo por trás desta impagável aventura. 


Com liberdade para criar, Jefrey Prince e Peter Seaman conseguiram capturar a estrutura do texto original mesmo numa releitura praticamente nova. A rigor, ficaram os protagonistas, a improvável dinâmica entre os dois e só. Apesar da abordagem ‘noir’, as referências ao clássico Chinatown (1974) são claras, a dupla de roteiristas conquistou o público e a crítica ao entregar uma obra universal, uma produção com personagens positivamente cartunescos, um suspense instigante e um humor sacana capaz de dialogar tanto com a criançada, quanto com os adultos. Numa mistura de Pica-Pau com Pernalonga, Roger Rabbit ganhou uma persona transloucada, uma faceta expansiva e afetuosa que combinou magnificamente com a sisudez urbana do investigador Eddie Valiant (Bob Hoskins). Entre os dois surge a sedutora Jessica Rabbit, uma personagem corajosa, principalmente pela maneira com que se mantém (bem) longe dos “padrões” Disney. A maior sacada da dupla Prince e Seaman, porém, ficou na construção do vilanesco Juiz Doom, vivido com maestria por Christopher Lloyd, um tipo singular criado para o filme que protagoniza alguns dos momentos mais sombrios da película.


Com um texto precioso e um universo de personagens rico em mãos, Robert Zemeckis imprimiu em tela a excentricidade que Uma Cilada de Roger Rabbit precisava para se tornar um filme raro em Hollywood. Numa época em que o advento da animação computadorizada era usado com discrição dentro do segmento, o realizador reaqueceu as engrenagens da indústria ao misturar animação e ‘live action’ de maneira poucas vezes vista. Um processo trabalhoso e que, obviamente, inflacionou o custo da produção. Naquela época, um período em que a técnica de captura de movimentos nem sonhava em existir, Zemeckis se viu obrigado a rodar o filme inicialmente apenas com os atores. Responsável por dar voz ao falastrão Roger, Charles Fleischer, por exemplo, participou ativamente das filmagens, atuando normalmente ao lado de Bob Hoskins vestindo uma roupa de coelho e orelhas gigantes. Nos bastidores, inclusive, reza a lenda que alguns visitantes, sem entender o processo de criação da película, saiam do set rindo dos improvisos e do artesanal processo de produção, acreditando que estavam diante de uma das piores e mais pobres produções Disney. Ledo engano. Após entregar uma aventura em que um adolescente voltava no tempo e acabava atraindo olhares nada familiares da sua jovem\futura mãe, Zemeckis se revelou a escolha perfeita para “infantilizar” o incorreto script, flertando com o universo das sátiras ao rir da estrutura do cinema noir. Ambientado na década de 1940, o longa conseguiu transitar por temas adultos com ironia e o um caótico ar cartunesco, nos brindando com uma trama sobre traição, assassinatos e os segredos em torno de uma poderosa corporação. E isso sem subestimar a inteligência do público.


Com traços originais, um visual criativo e personagens recheado de personalidade, Robert Zemeckis causou um inegável fascínio ao se concentrar no grande diferencial desta película, a impagável dinâmica entre humanos e seres animados, revigorando um errático segmento ao extrair o máximo de diversão desta corajosa mistura. Um predicado, primeiramente, valorizado pelo primoroso trabalho da equipe de animadores da Industrial Light and Magic (ILM) que, na longa pós-produção (ao todo foram 14 meses), teve que suar a camisa para tornar a relação entre atores\animação e entre personagens\cenário o mais verossímil possível. Sob o comando de Richard Williams, o que se viu foi um trabalho tecnicamente memorável, uma animação 2-D com um senso de profundidade e textura que só viria a se tornar recorrente em Hollywood com o advento da computação gráfica. O termo ‘bumping the lamp’, aliás, nasceu aqui, uma expressão relacionada ao elevado grau de dificuldade na confecção de um efeito visual que foi cunhada numa cena em que, por acidente, Hoskins esbarra num spot de luz durante a ação, obrigando a equipe de animação a criar um movimento de sombra complicadíssimo para a época. Por falar nele, parte do êxito da película se deve ao desprendimento do ator na construção do seu Eddie Valliant. Tendo como base somente alguns rudimentares ‘storyboards’ (vídeo acima), Hoskins teve que usar e abusar da criatividade para encarnar este complicado projeto, para participar do por vezes imaginário ‘mise en scene’ proposto por Zemeckis, se tornando um exemplo de sucesso quando assunto são os filmes que misturam animação\CGI e o ‘live-action’.


Como em todo ousado projeto, porém, Steven Spielberg e Robert Zemeckis sofreram com as incertezas até os 45 minutos do segundo tempo. Mesmo após convencerem os executivos da Disney a subirem o orçamento, que foi de US$ 30 para US$ 50 milhões, a dupla de realizadores ainda sofria diante da relutância do CEO da Disney Michael Eisner e do Vice-Presidente do estúdio Roy E. Disney. Sim, o sobrinho do próprio Walt Disney. Sob a sombra do fracasso de O Caldeirão Mágico, a dupla, até com certa dose de razão, achava que o filme era um projeto de risco em virtude das suas insinuações sexuais. Já era possível ouvir o barulho da tesoura sendo afiada para retalhar o projeto. Aqui, porém, valeu a imposição de Spielberg e a coragem de Zemeckis que, com os direitos em contrato sobre a versão final do filme, recusou com veemência a interferência de terceiros na sua obra. Diante do impasse, Jeffrey Katzenberg, um dos primeiros entusiastas do projeto, decidiu intervir e, em comum acordo com Roy, definiu que o longa não seria lançado com o selo Disney, mas sob o banner da Touchstone Pictures, uma divisão da Walt Disney Company. Todos saíram felizes.


Um preciosismo que em nada afetou o triunfo de Uma Cilada para Roger Rabbit. Contrariando as mais otimistas expectativas, o longa estreou no topo das bilheterias norte-americanas somando US$ 11 milhões somente no primeiro fim de semana em cartaz, se tornando a segunda maior bilheteria do ano nos EUA com US$ 156 milhões (US$ 329 milhões no mundo). E isso num ano com Duro de Matar, Quero Ser Grande, Beetlejuice, Corra que a Polícia Vem Ai! e Um Príncipe em Nova Iorque. Um resultado estrondoso que premiou a ousadia dos envolvidos e constatou o quão negativa pode ser a interferência criativa dos executivos. Uma obra à frente do seu tempo e que insiste em não envelhecer, Uma Cilada de Roger Rabbit foi um daqueles filmes-evento, uma produção inigualável não por reunir atores e animações, nem tão pouco pelo seu trabalhoso processo de produção, mas pela sagacidade ao buscar diálogo com todos os públicos, ao oferecer um tipo de humor e de personagens originais (Baby Herman e Benny o carro são incríveis) que viria a ditar o tom para a retomada do mercado de animação ocidental na década de 1990. Uma produção que não só marcou a infância de uma geração carente de longas animados modernos, inclusive esse que vos escreve, como também resgatou a confiança da Disney no segmento, preparando (involuntariamente, a meu ver) o terreno para a realização de triunfantes obras do quilate de A Pequena Sereia (1989), A Bela e a Fera (1991), Aladdin (1992) e O Rei Leão (1994).

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