terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Steve Jobs

O homem e o mito

Na última década poucas personalidades tiveram a sua vida tão devassada pela mídia quanto Steve Jobs. Retratado em biografias, matérias, documentários e filmes, como no apenas correto Jobs (2013), a grande mente por trás de algumas das maiores criações da Apple se tornou um alvo natural da indústria do entretenimento, principalmente por seu temperamento genioso, pelo seu inquestionável carisma e por seus incríveis feitos dentro do mundo da tecnologia. Ao que parece, no entanto, a sua história ainda pode render excelentes frutos. Pelo menos é o que mostra o diretor Danny Boyle (Quem quer ser um Milionário?). Conduzido com vigor e inquietude por este talentoso realizador, o longa se esquiva dos temas mais esgotados ao nos presentear com um dos relatos mais reveladores sobre o "pai" de adventos como o iMac, iPod e os populares iPhone e iPad. A partir de três lançamentos marcantes na carreira do gênio da informática, o celebrado roteirista Aaron Sorkin investiga o lado humano sem perder o encantamento com o mito, tomando algumas liberdades criativas ao analisar sob um ponto de vista intimista e nada condescendente as múltiplas facetas desta instigante figura.


Sem omitir os desvios de caráter e a frieza emocional de Steve Jobs, Aaron Sorkin abraça uma narrativa vibrante ao acompanhar alguns dos mais delicados episódios da vida deste magnata da informática. Inspirado na biografia oficial escrita por Walter Isaacson, o argumento se aprofunda não só nos dilemas pessoais do inventor, mas também nos profissionais, os interligando com perspicácia a três lançamentos marcantes em sua carreira: os PC's Macintosh (1984), NeXT (1988) e iMac (1998). Intimista em sua essência, já que a trama se passa nos bastidores destes gigantescos eventos, o argumento passeia com fluidez por situações naturalmente espinhosas, introduzindo detalhes reveladores ao narrar a conturbada relação do protagonista com a filha Lisa, a convivência com o antigo parceiro Steve Wozniak (Seth Rogen) e a cativante amizade com a assistente Joanna Hoffman (Kate Winslet). Através de diálogos espertos, densos e bem escritos, o argumento é impecável ao dissecar a personalidade desta complexa figura, comprovando que por trás do gênio existia um homem. Uma pessoa brilhante, ora odiosa, ora cordial, mas que trazia consigo fragilidades até então desconhecidas pelo público. Na verdade, ainda que reverencie o mito e os seus feitos, Sorkin realmente se encanta com o lado mais falho do CEO. Além disso, o roteirista é franco ao traduzir o processo de amadurecimento de Jobs ao longo destes três lapsos temporais, respeitando ao máximo a postura superior do protagonista. Os mais distraídos podem nem reparar, mas, mesmo nos momentos de maior arrependimento, não ouvimos qualquer pedido de desculpas por parte de Jobs.


A partir desta envolvente trama, Danny Boyle rasga a tradicional cartilha das cinebiografias ao desmitificar a persona de Steve Jobs. Trazendo no currículo longas como Trainspotting (1996) e 127 Horas (2010), o realizador britânico exibe um repertório de soluções criativas ao investigar com intensidade e dinamismo os bastidores de três dos maiores lançamentos do CEO da Apple. Ainda que Sorkin dê uma ligeira forçada ao tentar criar uma conexão entre estas linhas temporais, principalmente quando explora o passado órfão de Jobs e a sua busca por uma referência paterna na relação com o executivo John Sculley (Jeff Daniels, intenso), Boyle nos faz crer nas "liberdades criativas" tomadas pelo roteirista, introduzindo de forma orgânica os intimistas encontros do protagonista. Sem nunca perder as rédeas da película, o diretor adota um ritmo inquieto ao valorizar não só os longos e profundos diálogos, mas também a emoção dos seus personagens, traduzindo com vigor as nuances acerca da figura do inventor. Além disso, Boyle se esquiva das soluções fáceis ao incrementar a narrativa com sequências inventivas, elementos gráficos sagazes e enquadramentos reveladores. Por diversas vezes, aliás, a câmera parece flutuar em torno de Fassbender, evidenciando a partir de ângulos particulares tanto o seu senso de superioridade sobre os demais, quanto a sua fragilidade diante dos temas mais delicados. Méritos que precisam ser divididos com a primorosa fotografia de Alwin H. Küchler, que parece só potencializar a expressividade dos personagens. Vide a tensa sequência da reunião, cuidadosamente conduzida por Boyle, e o comovente último ato, onde a luz é utilizada para ressaltar os traços mais humanos por trás de um tipo naturalmente frio.


O melhor, no entanto, ficou para o fim. Numa performance fantástica, Michael Fassbender se apropria com rara inspiração das nuances do complexo protagonista, revelando o melhor e o pior de Steve Jobs. Indo do detestável ao cortês num curto espaço de cenas, Fassbender reproduz não só a eloquência e o carisma que consagraram o inventor junto ao público, como também a sua frieza e o egocentrismo, nos brindando com um trabalho completo e humano. Curiosamente, apesar dos poderosos diálogos, impressiona a maneira com que o ator alemão consegue "falar" através da sua expressão, contornando a evidente incapacidade do seu personagem em admitir sentimentos como a culpa e o arrependimento. Por diversas vezes, inclusive, a relação entre Jobs e a sua filha Lisa é tomada por este "silêncio", revelado a categoria de Danny Boyle ao compor as sequências mais sutis. Apontada como a única capaz de "domar" o temperamento de Jobs, Joanna Hoffman ganha uma interpretação impecável nas mãos da sempre cuidadosa Kate Winslet. Esbanjando uma invejável química com Fassbender, a atriz desfila o seu reconhecido talento ao interpretar uma mulher forte, independente e inesperadamente divertida. Com um afiado senso de humor, a relação de confidência entre ela e Jobs se torna um dos pontos altos da película, principalmente pela capacidade de Boyle em deixar os seus comandados à vontade em cena. Reconhecido por seus papeis na comédia, Seth Rogen também entrega uma atuação destacada como o bonachão Steve Wosniak. Braço direito de Jobs na criação da Apple, Wos tem uma participação ativa dentro da trama, dando ao ator canadense a possibilidade de brilhar em alguns dos mais marcantes diálogos do longa.


Disposto a investigar a problemática relação entre o CEO da Apple e a sua filha Lisa, Steve Jobs desvenda uma faceta pouco conhecida do inventor ao examinar alguns dos seus segredos mais íntimos e reveladores. No embalo da inventiva trilha de Daniel Pemberton, Danny Boyle e Aaron Sorkin se encantam com o lado mais contraditório desta complexa e visionária figura, mostrando que por trás do mito existia um homem arrogante, falho, mas indiscutivelmente cativante. Em suma, intensa, vibrante e criativa, esta é a cinebiografia que Steve Jobs merecia. 

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