sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O Regresso

Frio e realístico, longa é visceral ao narrar uma dolorosa história de sobrevivência

Na contramão do seu aclamado último trabalho, o ácido e vibrante Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância), o celebrado Alejandro G. Iñarritu aposta numa abordagem contemplativa e absurdamente verossímil no angustiante O Regresso. No projeto mais ambicioso de sua carreira, além de usar (e abusar) das inventivas soluções estéticas, Iñarritu submeteu os seus comandados a um árduo processo de filmagens, os levando para adversas locações externas com a intenção de extrair o máximo de realismo deste cenário naturalmente hostil. Em meio as gélidas e expressivas paisagens, capturadas com brilhantismo pelas lentes de Emmanuel Lubezki, o diretor mexicano encontra na visceral atuação do astro Leonardo DiCaprio o misto de dor e fúria necessário para guiar esta dolorosa história de sobrevivência. Ainda que o preciosismo de Iñarritu possa incomodar em alguns momentos, principalmente nas lentas e excessivas sequências mais naturalistas, a película cumpre a sua missão ao mostrar o velho oeste americano sob um ponto de vista cru e impiedoso.


O que não quer dizer, porém, que a trama tenha maiores preocupações com o contexto histórico. Na verdade, O Regresso se passa durante o século XIX, no auge do confronto entre os acuados nativos e os colonos americanos. Neste cenário, mesmo sem se aprofundar nos dilemas indígenas, o roteiro ao menos se distancia da distorcida imagem construída pelos 'westerns' ao retratar os índios de maneira humana e astuta. Pra ser mais objetivo, a violência aqui brota em cena como uma reação aos invasores, e nunca ao contrário. Inspirado na obra do escritor Michael Punke, Iñarritu e Mark L. Smith narram as desventuras de Hugh Glass (DiCaprio), o guia da Companhia de Peles Montanhas Rochosas. Respeitado pelo seu capitão, o justo Henry (Domhnall Gleeson), o explorador é atacado por um urso durante uma caminhada de reconhecimento, mas se salva milagrosamenteEntre a vida e a morte, Glass logo se torna um peso morto para os companheiros. Disposto a dar um funeral digno para o caçador, Henry decide oferecer o dobro do pagamento para àqueles que resolverem ficar para trás e acompanha-lo até o último suspiro. Convencido pelo dinheiro, o ardiloso Fitzgerald (Tom Hardy) se junta ao inocente Bridger (Will Poulter) e aceita a proposta. Temendo um iminente ataque indígena, no entanto, os dois o deixam para trás, acreditando que ele não teria mais chances. Desarmado e sem comida, Glass reúne as suas forças e, mesmo sem arrastando, inicia uma jornada pela natureza selvagem em busca da sobrevivência.


Narrativamente simples e - por vezes - previsível, O Regresso toma algumas interessantes liberdades criativas em relação ao livro original. A começar pela figura de Hawk, o filho mestiço de Hugh Glass que, explorado com habilidade por Iñarritu, expõe o preconceito por parte dos colonizadores. Interpretado com sensibilidade pelo novato Forrest Goodluck, o personagem se torna o pivô da maioria das discussões dentro do volátil primeiro ato, principalmente através da detestável figura de Fitzgerald. O passado nativo de Glass, aliás, se transforma num elemento revelador nas mãos do realizador mexicano, sendo aproveitado com sabedoria durante as crises de alucinação do protagonista. Além disso, Iñarritu é particularmente cuidadoso ao explorar o desejo de vingança de Glass, fugindo dos clichês ao abordar o tema com comedimento e sem qualquer tipo de glamour. Na ânsia de valorizar a luta do caçador pela vida, no entanto, o diretor mexicano esbarra nas suas próprias pretensões ao investir numa abordagem excessivamente naturalista. Durante o moroso segundo ato, inclusive, Iñarritu dá uma inegável esfriada na trama, reduzindo o peso do arco dramático de Glass ao patinar em torno da recuperação do protagonista. Indiscutivelmente belas, enquanto algumas cenas se mostram críveis e funcionais, outras parecem redundantes e até mesmo exageradas, contrastando com o ultrarrealismo proposto pela película. Sem querer revelar muito, as sequências envolvendo uma cauterização pouco recomendada e a repentina queda de um penhasco poderiam estar presentes em qualquer escapista filme de ação. 


Estes deslizes, no entanto, são contornados pelo irretocável trabalho de Emmanuel Lubezki. Um dos responsáveis pelo sucesso de Birdman, o diretor de fotografia faz de O Regresso uma película desconfortável. Desde a primorosa primeira cena, quando numa sucessão de incríveis planos sequência acompanhamos um violento ataque indígena, Lubezki nos coloca no centro da ação, criando uma sensação de imersão poucas vezes experimentada. Rodado em meio a belas e variadas paisagens gélidas, o mexicano captura com rara inspiração a atmosfera suja e violenta proposta pelo longa, traduzindo com extremo realismo os árduos obstáculos impostos pela natureza selvagem. Tirando um enorme proveito das locações externas, Lubezki explora de maneira ímpar a iluminação natural, inclusive nas sequências noturnas, procurando sempre valorizar a expressão dos protagonistas e a relação deles com a opressiva paisagem. Detalhe para os requintados enquadramentos, com planos abertos milimetricamente esquematizados. Apesar do preciosismo nos momentos mais contemplativos, Iñarritu valoriza como poucos a expressividade de Glass, já que o protagonista quase não fala ao longo da trama. Desta forma, o diretor nos brinda com cenas tensas e incomodas, como a explosão de fúria do impotente caçador diante da morte do seu filho. Além disso, Iñarritu constrói sequências de ação imprevisíveis. Preciso confessar, poucas vezes assisti a uma cena tão brutal e verossímil como o assombroso ataque do urso. Sinceramente, me faltam adjetivos para descrever tal momento. E como se não bastasse esta pequena pérola, o realizador mexicano arremata a jornada de Glass com um duelo frio e raivoso, um desfecho condizente com o tom sóbrio da película.


À altura do fantástico trabalho de Emmanuel Lubezki, o astro Leonardo DiCaprio se despe do rótulo de estrela de Hollywood ao passar por um árduo processo de filmagens. Obrigado a experimentar parte das adversidades enfrentadas por Hugh Glass, incluindo a ingestão de carne crua e o clima hostil, DiCaprio mostra pleno domínio sobre as emoções do seu íntegro personagem, nos convencendo da sua dor, da sua fúria e também do seu amor. "Silenciado" pelo ataque do urso, o ator exprime através do olhar os contrastantes sentimentos do protagonista, brilhando ao encarar um tipo intenso e introspectivo. Isso sem falar da sua entrega física para algumas das cenas, principalmente nos aflitivos momentos em que Glass precisa se arrastar para sobreviver. Quem pagou para ver a obstinada performance de Leonardo DiCaprio, no entanto, pode se impressionar com o magnífico desempenho de Tom Hardy. Apesar da unidimensionalidade do seu Fitzgerald, ele encarna este detestável personagem com absoluta perícia, criando um antagonista forte e marcante. Reconhecido por dar vida a tipos silenciosos, Hardy surpreende ao interpretar uma figura desleal e astuta, um persuasivo caçador capaz de enganar a todos por uns dólares a mais. Cultivando uma rivalidade com DiCaprio desde as primeiras cenas, desta latente relação nasce takes memoráveis, como a sequência em que Fitzgerald precisa convencer Glass a aceitar a morte. Indo de encontro a este odioso personagem, o talentoso Domhnall Gleeson enche a tela de dignidade com o capitão Andrew Henry, dando um toque de elegância em meio a tipos tão brutos. Não podemos esquecer também do promissor Will Poulter, que, mesmo subaproveitado, adiciona humanidade à trama ao viver um inocente caçador. 



Muito mais do que um 'western' de vingança, O Regresso é visceral ao investigar os limites da natureza humana diante de um cenário extremo e desolador. Ainda que o ritmo oscilante e as excessivas 2 h e 30 min de projeção se revelem um problema, Alejandro G. Iñarritu foge do lugar comum ao mostrar um evidente fascínio pela natureza dos seus personagens, contornando a inegável simplicidade da história ao narrar com frieza a jornada deste lendário caçador. Repetindo a frutífera parceria com Emmanuel Lubezki, Iñarritu transforma o ambicioso processo de filmagens "in natura" no principal diferencial deste trabalho, cultivando um nível de realismo ímpar ao construir uma película tensa e visualmente magnífica. Na verdade, ao submeter os seus comandados a algumas das mais adversas condições climáticas, o realizador mexicano transforma O Regresso numa experiência incomoda não só para àqueles que o realizaram, mas também para o público, tornando a odisseia de Glass (e porque não do astro Leonardo DiCaprio) naturalmente dolorosa aos olhos do espectador.

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