terça-feira, 29 de maio de 2018

Punhos de Sangue

Quando a ficção oferece uma versão melhor do que a realidade

Você provavelmente não conhece o lutador Chuck Wepner. Eu também pouco conhecia. Um homem comum conhecido por sua “sorte” e por sua resistência no ringue, o pugilista construiu uma carreira consistente, mas pouco memorável, no mundo do boxe profissional. No ápice da sua carreira, após uma série de vitórias contra lutadores igualmente medianos, Wepner viu a sua vida mudar da noite para o dia. O boxeador local, que trabalhava como vendedor de bebidas nas horas vagas, viu a chance de disputar o cinturão contra nada mais, na menos do que o gigante Muhhamad Ali. O motivo: ele era o único homem branco entre os dez melhores no ranking dos pesos pesados. Tratado como um azarão, uma mera piada, Wepner surpreendeu os fãs e a mídia ao resistir durante quinze rounds. A derrota, como esperado, aconteceu. Mas o título já não era mais o assunto. Ele se tornou popular em toda a América e a sua história inspirou uma série de outros conterrâneos. Punhos de Sangue, porém, não é uma cinebiografia convencional. O foco, aqui, não está no triunfo dentro dos ringues. Numa opção inteligente, o diretor Phillipe Falardeau cativa ao tratar a trajetória de Wepner sob uma outra perspectiva, mostrando como este lutador boa praça e imaturo se tornou uma peça chave na construção de um dos maiores personagens da história moderna do cinema, o popular Rocky Balboa. 



Sim meus amigos. Se hoje existe um Rocky Balboa, agradeça a Chuck Wepner. Antes de ser uma das maiores estrelas do cinema de ação, Sylvester Stallone era um ator esnobado fã de boxe. Ao assistir o embate entre Wepner e Ali, ele se encantou pela história do homem comum capaz de desafiar uma lenda. Os quinze rounds serviram de inspiração para a criação de um “herói” humano e inspirador, um personagem simpático e obstinado que, um ano e meio após a luta, ganharia a tela grande num dos grandes papéis da carreira de Sly. Com base nesta improvável história da vida real, o roteiro assinado por Jeff Feuerzeig, Jerry Stahl, Michael Cristofer e Liev Schreiber é astuto ao mostrar a verdade por trás do homem que serviu de modelo para a criação de um verdadeiro ícone da cultura pop. Não o lutador virtuoso e fiel. Mas do pugilista mulherengo e inconsequente que, mesmo após uma série de oportunidades, não soube valorizar a sua sorte. Num recorte íntimo e criterioso, Phillipe Falardeau mostra pulso narrativo ao sintetizar a trajetória de Chuck numa obra capaz de enxergar tanto as qualidades, quanto as falhas do pugilista. Embora o roteiro peque pela condescendência em alguns momentos, principalmente quando o assunto é o envolvimento do lutador com o tráfico de drogas, o realizador é cuidadoso ao trata-lo como um homem comum com ‘insights’ de grandeza. Ao longo das enxutas 1 h e 30 min de película, conhecemos o boxeador persistente, o pai zeloso, o marido relapso, a celebridade desregrada, o ator frustrado. Uma figura errática que, nem de longe, lembra a sua versão melhorada e bem-sucedida cinematograficamente.



Na verdade, o grande trunfo de Punhos de Sangue está na sagacidade do roteiro em se distanciar do sucesso Rocky: O Lutador. Além de não seguir a estrutura básica dos filmes do gênero, Phillipe Falardeau mostra maturidade ao revelar o impacto dos erros na rotina de Wepner. Impulsionado pela cativante presença de Liev Schreiber, que, numa performance propositalmente despretensiosa, traduz a força, a empatia, a ingenuidade e as fraquezas do lutador, o diretor é criativo ao associar a jornada do pugilista a um outro importante filme do gênero, o dilacerante Réquiem para um Lutador (1962). Mais do que uma simples referência visual, o drama estrelado pelo legendário Anthony Quinn surge como uma espécie de fantasma do futuro, uma realidade que parece ganhar cada vez mais força à medida que o protagonista se deixa levar pelos seus vícios. Embora o foco esteja sempre na figura de Wepner, o argumento é cuidadoso ao abrir espaço para outros importantes personagens, entre eles a independente esposa Phyllis vivida pela extraordinária Elizabeth Moss e o introspectivo irmão Don vivido por Michael Rapaport, permitindo que o público enxergue a razão daqueles que o cercavam e compreenda os motivos que o levaram a uma situação tão desoladora. Fazendo um criterioso uso do recurso da narração, que, na maioria do tempo, não parece interessado em descrever aquilo que está impresso em tela, o argumento consegue criar uma verdadeira crônica sobre um homem falho, elevando o nível da película ao se debruçar sobre as questões mais pessoais do personagem. E isso, obviamente, sem se esquecer de explorar a face mais midiática de Wepner. Indo além dos feitos esportivos, Falardeau é habilidoso ao construir a “relação” entre o pugilista e o seu “alter-ego” famoso, realçando as diferenças entre os dois enquanto narra a luta do pugilista para estender os seus “quinze minutos de fama”. Sem querer revelar muito, Morgan Spector surge em cena como uma versão convincente de Sylvester Stallone, mostrando como, mesmo após uma série de passos em falsos, a sorte teimava em ajuda-lo.


Contando com um competente trabalho da equipe de direção de arte, cuidadosa ao reproduzir as cores e os figurinos da década de 1970, Punhos de Sangue se revela uma cinebiografia competente sobre um lutador que viu o seu “sucesso” ganhar forma na tela grande sob um nome e um rosto diferente. Embora o condescendente último ato seja um tanto quanto falho, principalmente quando o assunto é a presença do interesse amoroso vivido por Naomi Watts, Phillipe Falardeau cumpre as expectativas ao mostrar a verdade do homem por trás do mito, refletindo sobre as desventuras de um tipo comum embebecido pela vaidade do sucesso repentino.

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