domingo, 27 de maio de 2018

O Livro de Henry

Uma experiência pitoresca

O Livro de Henry definitivamente não é uma obra fácil. Detonado pela maioria da crítica norte-americana, o longa dirigido por Colin Trevorrow (Jurassic World) teve o seu alcance limitado por ser taxado sumariamente como um fracasso. Por aqui, por exemplo, o filme foi lançado via streaming e sem qualquer alarde. Uma produção, a princípio, fadada ao esquecimento. A questão é: quando a crítica cinematográfica se tornou o agente regulamentador do que deve ou não fazer sucesso? Ou pior, do que tem qualidade ou não tem? Nos últimos anos, na verdade, com o ‘boom’ dos influenciadores digitais e dos agregadores de conteúdo, tenho visto um movimento que muito me incomoda: o da massificação da opinião. O sucesso de sites como o Rotten Tomatoes, em especial, não me deixa mentir. O senso comum passou a ganhar uma importância gigantesca. Em alguns casos mais extremos, produtores de conteúdo são obrigados a conviver com os ataques de ‘haters’ simplesmente por defender\questionar os méritos de uma produção. Ter uma opinião diferente se tornou um “problema”. Digo isso porque, se tivesse seguido este perigoso este senso comum, teria deixado de assistir a uma obra curiosíssima. Uma produção que, desde o seu primeiro trailer me chamou a atenção, justamente por resgatar o frescor das aventuras oitentistas. Estrelado por dois dos jovens mais talentosos de Hollywood, os excelentes Jaeden Lieberher e Jacob Tremblay, O Livro de Henry simplesmente "destrói" as nossas expectativas ao nos brindar com uma exótica “aventura”, um filme capaz de transitar por temas espinhosos e gêneros contrastantes numa mistura improvável. Como se a garotada de Os Goonies (1985) tivesse assistido a uma sessão de Desejo de Matar (1974) e usado a sua distorcida\vingativa lógica para fazer justiça com as próprias mãos. O resultado é uma película falha, vide o relutante último ato, mas instigante, um filme comovente que, por trás da sua estrambólica premissa, esconde uma promissora crítica ao belicismo americano. 



Definir o gênero de O Livro de Henry, aliás, é algo bem complicado. Brincando com os arquétipos das populares aventuras dos anos 1980, o longa, num primeiro momento, remete diretamente a títulos como os fantásticos Os Goonies e Deu a Louca nos Monstros. Ao velho (e inesgotável) crianças versus o mundo. Ao longo da primorosa metade inicial, o roteiro assinado por Gregg Hurwitz encanta ao estabelecer a disfuncional família Carpenter, a rotina do genial Henry (Lieberher), do seu irmão, o afetuoso Peter (Tremblay), e da sua mãe, a imatura Susan (Naomi Watts). Numa sagaz atualização, aqui, a jovial figura materna surge como o símbolo da incorreção oitentista, como se as adolescentes dos filmes de John Hughes tivessem crescido, formado família, mas sem a mínima ideia de como criar os seus filhos. Por outro lado, Henry surge como o símbolo da precocidade infantil na atualidade, um garoto que, com apenas onze anos, tomava conta das finanças da sua mãe, investia na bolsa e se certificava que o seu pequeno irmão teria a melhor educação possível. Ao inverter os arquétipos, Colin Trevorrow cativa ao construir o honesto elo entre os Carpenter’s, ao traduzir esta inusitada dinâmica familiar, enchendo a tela de sentimento enquanto constrói o seu inquietante ‘plot’. É interessante ver, aliás, o cuidado do realizador ao trazer a realidade para o centro desta aparentemente despretensiosa aventura. Neste sentido, o drama da vizinha interpretada pela expressiva dançarina Maddie Ziegler ganha forma com delicadeza e verossimilhança, um ‘background’ incomodo que, por si só, já seria capaz de sustentar a trama.


Como disse lá em cima, porém, O Livro de Henry não é um filme fácil. No momento em que o longa parecia ter escolhido o seu rumo, Colin Trevorrow bagunça (no sentido positivo) as engrenagens da sua história de maneira genuinamente surpreendente. Com um extremo domínio narrativo, o realizador reforça a carga dramática ao construir uma extraordinária reviravolta, extraindo o máximo do seu talentoso elenco em sequências de raríssima sensibilidade. Numa ruptura incisiva, Trevorrow provoca um misto de emoções ao colocar esta disfuncional família dentro de uma dura realidade, se distanciando (neste segmento) do teor condescendente ao explorar o tema proposto sob um prisma íntimo e doloroso. Sem querer revelar muito, o realizador se distancia por completo do melodrama ao tornar tudo tão nu e cru aos olhos do público, respeitando os sentimentos dos seus personagens e a solidez do texto. No momento em que decide explorar as consequências do seu ‘plot twist’, entretanto, Trevorrow decide seguir um rumo corajoso, mas compreensivelmente divisivo. Numa opção inusitada, o argumento volta a surpreender ao flertar com o exagero ao introduzir elementos do thriller de vingança, mudando o tom da película ao colocar o drástico plano de Henry em prática. Num momento em que os atentados infanto-juvenis têm se tornado recorrentes nos corredores das escolas norte-americanas, Trevorrow se arrisca ao introduzir o elemento bélico na trama, confiando na capacidade de discernimento do espectador ao transitar por uma linha extremamente tênue. Por mais que o viés crítico proposto pelo texto tenha saltado aos meus olhos, principalmente quando o assunto é a cultura revanchista americana e o fácil acesso à compra de armas, eu não tiro a razão daqueles que questionarem as soluções narrativas encontradas pelo longa. Na verdade, o “criança versus mundo”, aqui, ganha um contexto bem mais drástico. Esqueça, portanto, a caça ao tesouro e os vilões sobrenaturais. A ameaça, aqui, é realística, o perigo é verdadeiro, as consequências extremamente nocivas. Neste sentido, aliás, o roteiro é cuidadoso ao tratar a questão do abuso infantil dentro de um cenário bem plausível, uma realidade paternalista em que a vítima se vê presa e sem voz.


O grande problema de O Livro de Henry, entretanto, está no seu relutante terço final. Numa opção, a meu ver, condescendente, Colin Trevorrow decide resgatar a atmosfera familiar do excelente primeiro ato, testando novamente as expectativas do público ao colocar em cheque a decisão dos protagonistas. Por mais que o clímax em si funcione bem, a impressão que fica é que o realizador dá uma repentina “pisada no freio”, tentando encontrar um “moralista” meio termo entre a realidade e o absurdo, entre a zona de risco e a zona de conforto. Sem querer revelar muito, as atitudes da imatura figura materna interpretada com energia por Naomi Watt (ao contrário das suas motivações) são mal desenvolvidas, o que fica bem claro quando nos deparamos com o seu repentino sopro de maturidade e as soluções encontradas por elas logo na cena seguinte. Além disso, Trevorrow peca ao não conseguir dar voz aos conflitos de Christine, aos seus anseios mais íntimos, a transformando numa espécie urbana de donzela indefesa. A personagem merecia um arco mais sólido. Menos mal que, Trevorrow, tal qual o seu mentor, o genial Steven Spielberg, sabe como valorizar o senso de entretenimento da sua obra, preenchendo estes momentos falhos com cenas envolventes e recheadas de tensão. Como não elogiar, por exemplo, a nervosa montagem dentro do clímax ou a criatividade do realizador ao realçar o elemento lúdico num contexto naturalmente soturno.


Impulsionado pelas cativantes performances de Jaeden Lieberher e Jacob Tremblay, a fofura do segundo contrasta com a maturidade infantil do primeiro criando uma relação marcada pela forte química, O Livro de Henry provoca ao mostrar o distorcido senso de justiça de uma criança de onze anos. Um filme ousado que, ao romper com o lugar comum, opta por seguir um caminho divisivo, nos oferecendo uma experiência por vezes imprevisível, por vezes emocionalmente dilacerante, por vezes exagerada, mas em sua maioria pitoresca. Uma combinação de adjetivos rara no cinemão atual.

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