O Livro de Henry definitivamente
não é uma obra fácil. Detonado pela maioria da crítica norte-americana, o longa
dirigido por Colin Trevorrow (Jurassic World) teve o seu alcance limitado por ser
taxado sumariamente como um fracasso. Por aqui, por exemplo, o filme foi
lançado via streaming e sem qualquer alarde. Uma produção, a princípio, fadada
ao esquecimento. A questão é: quando a crítica cinematográfica se tornou o
agente regulamentador do que deve ou não fazer sucesso? Ou pior, do que tem
qualidade ou não tem? Nos últimos anos, na verdade, com o ‘boom’ dos
influenciadores digitais e dos agregadores de conteúdo, tenho visto um
movimento que muito me incomoda: o da massificação da opinião. O sucesso de sites
como o Rotten Tomatoes, em especial, não me deixa mentir. O senso comum passou
a ganhar uma importância gigantesca. Em alguns casos mais extremos, produtores
de conteúdo são obrigados a conviver com os ataques de ‘haters’ simplesmente
por defender\questionar os méritos de uma produção. Ter uma opinião diferente
se tornou um “problema”. Digo isso porque, se tivesse seguido este perigoso
este senso comum, teria deixado de assistir a uma obra curiosíssima. Uma
produção que, desde o seu primeiro trailer me chamou a atenção, justamente por
resgatar o frescor das aventuras oitentistas. Estrelado por dois dos jovens
mais talentosos de Hollywood, os excelentes Jaeden Lieberher e Jacob Tremblay,
O Livro de Henry simplesmente "destrói" as nossas expectativas ao nos brindar com
uma exótica “aventura”, um filme capaz de transitar por temas espinhosos e
gêneros contrastantes numa mistura improvável. Como se a garotada de Os Goonies
(1985) tivesse assistido a uma sessão de Desejo de Matar (1974) e usado a sua
distorcida\vingativa lógica para fazer justiça com as próprias mãos. O resultado é uma
película falha, vide o relutante último ato, mas instigante, um filme comovente
que, por trás da sua estrambólica premissa, esconde uma promissora crítica ao
belicismo americano.
Definir o gênero de O Livro de
Henry, aliás, é algo bem complicado. Brincando com os arquétipos das populares
aventuras dos anos 1980, o longa, num primeiro momento, remete diretamente a
títulos como os fantásticos Os Goonies e Deu a Louca nos Monstros. Ao velho (e
inesgotável) crianças versus o mundo. Ao longo da primorosa metade inicial, o
roteiro assinado por Gregg Hurwitz encanta ao estabelecer a disfuncional
família Carpenter, a rotina do genial Henry (Lieberher), do seu irmão, o
afetuoso Peter (Tremblay), e da sua mãe, a imatura Susan (Naomi Watts). Numa
sagaz atualização, aqui, a jovial figura materna surge como o símbolo da
incorreção oitentista, como se as adolescentes dos filmes de John Hughes
tivessem crescido, formado família, mas sem a mínima ideia de como criar os
seus filhos. Por outro lado, Henry surge como o símbolo da precocidade infantil
na atualidade, um garoto que, com apenas onze anos, tomava conta das finanças
da sua mãe, investia na bolsa e se certificava que o seu pequeno irmão teria a
melhor educação possível. Ao inverter os arquétipos, Colin Trevorrow cativa ao
construir o honesto elo entre os Carpenter’s, ao traduzir esta inusitada
dinâmica familiar, enchendo a tela de sentimento enquanto constrói o seu
inquietante ‘plot’. É interessante ver, aliás, o cuidado do realizador ao
trazer a realidade para o centro desta aparentemente despretensiosa aventura.
Neste sentido, o drama da vizinha interpretada pela expressiva dançarina Maddie
Ziegler ganha forma com delicadeza e verossimilhança, um ‘background’ incomodo
que, por si só, já seria capaz de sustentar a trama.
Como disse lá em cima, porém, O
Livro de Henry não é um filme fácil. No momento em que o longa parecia ter
escolhido o seu rumo, Colin Trevorrow bagunça (no sentido positivo) as engrenagens
da sua história de maneira genuinamente surpreendente. Com um extremo domínio
narrativo, o realizador reforça a carga dramática ao construir uma
extraordinária reviravolta, extraindo o máximo do seu talentoso elenco em
sequências de raríssima sensibilidade. Numa ruptura incisiva, Trevorrow provoca
um misto de emoções ao colocar esta disfuncional família dentro de uma dura
realidade, se distanciando (neste segmento) do teor condescendente ao explorar
o tema proposto sob um prisma íntimo e doloroso. Sem querer revelar muito, o realizador
se distancia por completo do melodrama ao tornar tudo tão nu e cru aos olhos do
público, respeitando os sentimentos dos seus personagens e a solidez do texto.
No momento em que decide explorar as consequências do seu ‘plot twist’,
entretanto, Trevorrow decide seguir um rumo corajoso, mas compreensivelmente
divisivo. Numa opção inusitada, o argumento volta a surpreender ao flertar com
o exagero ao introduzir elementos do thriller de vingança, mudando o tom da
película ao colocar o drástico plano de Henry em prática. Num momento em que os
atentados infanto-juvenis têm se tornado recorrentes nos corredores das escolas
norte-americanas, Trevorrow se arrisca ao introduzir o elemento bélico na
trama, confiando na capacidade de discernimento do espectador ao transitar por
uma linha extremamente tênue. Por mais que o viés crítico proposto pelo texto
tenha saltado aos meus olhos, principalmente quando o assunto é a cultura
revanchista americana e o fácil acesso à compra de armas, eu não tiro a razão
daqueles que questionarem as soluções narrativas encontradas pelo longa. Na
verdade, o “criança versus mundo”, aqui, ganha um contexto bem mais drástico.
Esqueça, portanto, a caça ao tesouro e os vilões sobrenaturais. A ameaça, aqui,
é realística, o perigo é verdadeiro, as consequências extremamente nocivas.
Neste sentido, aliás, o roteiro é cuidadoso ao tratar a questão do abuso
infantil dentro de um cenário bem plausível, uma realidade paternalista em que
a vítima se vê presa e sem voz.
O grande problema de O Livro de
Henry, entretanto, está no seu relutante terço final. Numa opção, a meu ver,
condescendente, Colin Trevorrow decide resgatar a atmosfera familiar do
excelente primeiro ato, testando novamente as expectativas do público ao
colocar em cheque a decisão dos protagonistas. Por mais que o clímax em si
funcione bem, a impressão que fica é que o realizador dá uma repentina “pisada
no freio”, tentando encontrar um “moralista” meio termo entre a realidade e o
absurdo, entre a zona de risco e a zona de conforto. Sem querer revelar muito,
as atitudes da imatura figura materna interpretada com energia por Naomi Watt
(ao contrário das suas motivações) são mal desenvolvidas, o que fica bem claro
quando nos deparamos com o seu repentino sopro de maturidade e as soluções
encontradas por elas logo na cena seguinte. Além disso, Trevorrow peca ao não
conseguir dar voz aos conflitos de Christine, aos seus anseios mais íntimos, a
transformando numa espécie urbana de donzela indefesa. A personagem merecia um
arco mais sólido. Menos mal que, Trevorrow, tal qual o seu mentor, o genial
Steven Spielberg, sabe como valorizar o senso de entretenimento da sua obra,
preenchendo estes momentos falhos com cenas envolventes e recheadas de tensão. Como
não elogiar, por exemplo, a nervosa montagem dentro do clímax ou a criatividade
do realizador ao realçar o elemento lúdico num contexto naturalmente soturno.
Impulsionado pelas cativantes
performances de Jaeden Lieberher e Jacob Tremblay, a fofura do segundo
contrasta com a maturidade infantil do primeiro criando uma relação marcada
pela forte química, O Livro de Henry provoca ao mostrar o distorcido senso de
justiça de uma criança de onze anos. Um filme ousado que, ao romper com o lugar
comum, opta por seguir um caminho divisivo, nos oferecendo uma experiência por
vezes imprevisível, por vezes emocionalmente dilacerante, por vezes exagerada,
mas em sua maioria pitoresca. Uma combinação de adjetivos
rara no cinemão atual.
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