Na última semana o cinema
brasileiro perdeu uma das suas vozes mais singulares, o crítico cineasta
Roberto Farias (Pra Frente Brasil, Os Trapalhões e o Auto da Compadecida). Numa
época em que os movimentos do Cinema Novo e do Cinema Marginal surgiam como um
contraponto as desgastadas chanchadas, o saudoso realizador se posicionou entre
os grandes sem escolher lados, transitando das obras mais questionadoras aos
títulos mais populares numa carreira recheada de títulos de sucessos. O que
fica bem claro no seu primeiro grande trabalho, o poderoso O Assalto ao Trem
Pagador (1962). Lançado num momento de reafirmação do cinema nacional, O
Pagador de Promessas (1962), por exemplo, neste mesmo período ganhava o mundo
ao levar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, o longa conquistou o público e
a crítica graças a sagacidade de Farias ao entregar uma obra universal que não
parecia interessada em pertencer a uma única corrente cinematográfica. Aliando
o vanguardismo estético do Cinema Novo ao forte (e franco) viés social do
Cinema Marginal, o realizador “esmurra” o estômago do espectador ao mostrar, a
partir de uma história real, o impacto da desigualdade social sob um prisma
íntimo e assustadoramente atual. Falando a “língua” do povo, Farias nos brinda
com uma crônica sobre a vida dos marginalizados na década de 1960, refletindo
sobre questões raciais e políticas num thriller de assalto que – infelizmente –
insiste em não envelhecer.
Com roteiro assinado pelo versátil
Luiz Carlos Barreto, ao lado de Alinor Azevedo, O Assalto ao Trem Pagador é
incisivo ao escancarar a raiz de alguns dos maiores problemas do nosso país: a
desigualdade social. Embora inspirado em fatos, o argumento é sagaz ao ampliar
o escopo da trama, colocando os dois pés na ficção ao usar o fato em si como o
ponto de partida para um retrato íntimo sobre a desamparada posição do
indivíduo negro dentro da sociedade brasileira. Num inspirado “duelo de
classes”, Roberto Farias é habilidoso ao usar elementos dos filmes de assalto e
do cinema ‘noir’ ao construir a rixa entre os criminosos, ao expor as
diferentes realidades entre os personagens e ao (re)afirmar o faro seletivo do
Estado durante uma investigação policial. Sem grandes invenções narrativas, o
roteiro vai direto ao ponto ao narrar a história de Tião (Eliezer Gomes), um
assaltante respeitado no morro que, ao lado dos seus parceiros, o fiel Tonho
(Átila Iório), o pacato Edgar (Miguel Rosenberg) e o falastrão Cachaça (Grande
Otelo), é recrutado por um inteligente criminoso, o boa pinta Grilo (Reginaldo
Faria), para executar um audacioso roubo. Após o sucesso da empreitada, o grupo
resolve dividir a bolada igualmente, cerca de C$ 30 milhões, com a promessa que
ninguém iria gastar mais do que 10% do dinheiro imediatamente para não chamar a
atenção da polícia. Não demora muito, porém, para os problemas começarem a
surgir, reforçando a desconfiança entre os membros do grupo à medida que os
gastos começam a chamar a atenção de um obstinado delegado (Jorge Dória).
Sem nunca abdicar do fator
entretenimento, Roberto Farias é astuto ao, a partir de arquétipos bem
populares, construir um poderoso thriller dramático. Apesar da sua forte carga
de realismo, o realizador é cuidadoso ao desenvolver os seus personagens, ao
permitir que criemos um honesto vínculo\repulsa para com eles. Neste sentido, o
altruísta Tião surge como uma espécie de Robin Hood tupiniquim, um homem afetuoso
e paternal que, andando no fio da navalha, se esforça para ajudar os seus pares
sem perder o “respeito” na região. Do outro lado da moeda temos o ambicioso
Grillo, um ‘playboy’ com mania de grandeza que, apesar “do seu olho azul e do
cabelo loiro”, ostentava um estilo de vida que não era capaz de sustentar.
Embora nunca recorra ao puro maniqueísmo, os personagens, em especial, são
falhos e suscetíveis ao “vício” da ambição, Farias brilha ao usar esta rixa
como o estopim para a construção de uma crônica feroz sobre o choque de
realidade entre a vida no asfalto e a vida no morro. Enquanto Tião rouba para
ter dignidade, Grillo rouba para ter luxo. Enquanto o dinheiro de Tião era
suspeito, o dinheiro de Grillo era cobiçado. Através de diálogos brilhantes,
Farias é contundente ao escancarar o preconceito racial, ao mostrar que o
enriquecimento puro e simplesmente não era um “fator” igualitário. As regras
que valiam para um, não valiam para os outros. Sem querer revelar muito, o
dilacerante embate final entre Tião e Grillo escancara com agressividade uma
triste realidade, um panorama que, apesar dos nítidos avanços sócio-políticos, segue
muito reconhecível aos olhos do público de hoje. O foco de Farias, porém, não
está somente neste duelo de classes. Sempre que possível, o realizador flerta
com o viés documental ao expor a rotina do marginalizado nos morros, ao mostrar
a falta de oportunidades, de saneamento básico, os dilemas morais e a ausência
do Estado naquela região. Na verdade, numa realidade que não parece ter mudado
muito, a manifestação “governamental” só é sentida com a seletiva ação
policial, uma presença invasiva e desumana que pontua a trama com uma frieza
desoladora. Farias, entretanto, não parece interessado em chocar. Com um
verossímil olhar humano, ele faz um primoroso uso dos símbolos ao estreitar o
elo entre asfalto e favela, dando voz a um grupo de pessoas “esquecidas” em
pelo menos três sequências poderosas. Na melhor delas, o diretor esbanja
delicadeza ao, sob um viés lúdico, sintetizar a perspectiva de prosperidade de
uma criança negra numa enfática metáfora envolvendo dois simbólicos objetos.
É aqui, aliás, que O Assalto ao
Trem Pagador parece flertar com o virtuosismo estético que viria a definir o
Cinema Novo. A realidade, neste sentido, ganha forma da maneira mais
cinematográfica possível. Impulsionado pela elegante fotografia em preto e
branco de Amleto Daissé, Roberto Farias investe em planos memoráveis, realçando
as expressões dos seus comandados em enquadramentos dignos de molduras. Num
primeiro momento, por exemplo, o realizador enche a tela de tensão ao construir
a realística sequência do assalto. Apostando em estilosos planos detalhes\fechados,
a maioria deles de ordem bélica, Farias nos brinda com um ‘mise em scene’ digno
dos melhores filmes de western, uma montagem crescente e instigante que fisga o
espectador quase que instantaneamente. Com o avançar da trama, no entanto, é
interessante ver o esmero do realizador em traduzir a realidade dos moradores
de uma favela sob uma perspectiva refinada e mais ampla. Fazendo um revelador
uso dos planos abertos, Farias se esforça para imprimir em tela a condição de
miséria enfrentada por eles. Num recorte precioso, ele passa a valorizar o
segundo plano, indo além dos seus personagens ao mostrar a sujeira, a
precariedade das moradias e a situação de abandono dos moradores. O que fica bem
claro, em especial, na marcante sequência do monólogo do bebum interpretado
pelo gigante Grande Othelo. Somado a isso, é interessante ver a criatividade de
Farias ao evidenciar a força de Tião sobre os demais, o colocando,
literalmente, como o rei do pedaço ao “rebaixar” a sua câmera perante o
protagonista. Um predicado, diga-se de passagem, valorizado pela visceral
performance de Eliezer Gomes, que, no seu primeiro trabalho como ator, se impõe
facilmente em cena ao criar uma figura terna e ao mesmo tempo ameaçadora.
Contando ainda com os marcantes
trabalhos de Reginaldo Faria, Jorge Dória e Luiza Maranhão, esta última
magnífica dentro do revoltante clímax, O Assalto ao Trem Pagador se tornou
justificadamente uma das maiores pérolas do cinema nacional. Sem a intenção de
contemporizar, Roberto Farias causa um inegável desconforto ao escancarar o
preconceito racial em solo brasileiro, refletindo sobre a realidade de uma
família Negra carioca ao mostrar o quão tênue pode ser a linha entre o ato de
ter dinheiro e a conquista da dignidade. O verdadeiro precursor dos ‘hits’
Cidade de Deus e Tropa de Elite.
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