sexta-feira, 13 de abril de 2018

O Outro Lado da Esperança

Um irônico soco no estômago

A crise dos refugiados nunca esteve tão em “alta” nos noticiários e nas redes sociais brasileiras. Enquanto os desesperados venezuelanos lutam por condições melhores na região Norte do nosso país, no Big Brother Brasil (pasmem vocês) um simpático sírio tem mostrado a importância de um “ombro amigo” em tempos de crise. Sejam os motivos certos ou não, é importante ver um tema tão delicado sendo realmente discutido por aqui, já que, ao redor do mundo, este assunto se tornou uma pauta urgente e recorrente. No cinema, aliás, ainda que timidamente, a desoladora situação dos imigrantes tem sido ora e vez explorada, culminando em filmes à sua maneira críticos e reveladores. De Hollywood, por exemplo, veio o empoderador Brooklyn, um relato verossímil sobre a dura situação de uma jovem irlandesa dividida entre o amor à sua Terra e a perspectiva de futuro. Já da Hungria veio a poderosa fábula Deus Branco, um relato questionador sobre o descaso social local diante da fragilidade dos refugiados em solo estrangeiro. Numa proposta bem diferente, da Argentina veio a excelente comédia Um Conto Chinês, um retrato íntimo sobre a problemática interação entre um estrangeiro e um local. O mais novo representante desta lista, porém, veio da Finlândia. E se trata de um grande filme. Denso, envolvente e humanitário, O Outro Lado da Esperança vai do fascínio ao desconforto ao mostrar as desventuras de um introspectivo refugiado sírio num frio solo finlandês. Escrito e roteirizado pelo elogiado diretor Aki Kaurismäki (do aclamado O Porto), o longa testa as nossas expectativas ao narrar a jornada de dois homens separados por uma nacionalidade, misturando comédia e drama com rara sagacidade numa obra singular. Um filme improvável que, por trás do seu particular senso de humor, esconde uma incisiva crítica a inércia dos governantes diante de um cenário tão devastador. 


Numa proposta simples, mas naturalmente instigante, Aki Kaurismäki é astuto ao usar a frieza nórdica em prol da sua história e ao extrair dela o seu humor. E isso sem sacrificar o elemento humano dos seus personagens e o viés sentimental proposto pela trama. Na verdade, a aura gélida se reflete basicamente na conduta dos protagonistas, na construção dos minimalistas cenários envelhecidos, na fria fotografia diurna, na inteligente composição das cenas. Sem dizer uma só palavra, por exemplo, o realizador finlandês estabelece tanto a situação do retraído imigrante Kahled (Sherwan Haji), quanto do recém-divorciado negociante Wilkstrom (Sakari Kuosmanen), criando duas figuras de fácil conexão com o público. Na cena do apartamento, em especial, todos os gestos e objetos – de fácil leitura – sintetizam algo que não foi falado. Desde o árido cacto no canto da mesa, o símbolo de uma ressecada relação entre marido e mulher, passando pela garrafa de cachaça, talvez o motivo do rompimento, chegando ao desdém raivoso da esposa para com a aliança do marido, tudo naquele plano foi milimetricamente pensado para sintetizar o estado de espírito do protagonista. Com dois tipos completamente distintos em mãos, Kaurismaki, num primeiro momento, é cuidadoso ao estabelecê-los individualmente. Quando se concentra na figura de Kahled, ele investe numa abordagem mais sóbria e dramática, refletindo sobre os dilemas do refugiado com sutileza e um forte viés crítico. Avesso ao melodrama, o que para muitos seria o tema central do filme, para o finlandês é apenas um detalhe na construção do seu protagonista. Esqueça, portanto, os tão explorados e expositivos flashbacks. Kaurismaki prefere acreditar nas palavras do estrangeiro, na dor impressa na face de um homem durante um revelador depoimento. Não estamos diante de um longa que procura lágrimas a qualquer custo, mas de uma obra que valoriza as pequenas manifestações de afeto, de amor ao próximo, o zelo humanitário. O foco está na consequência da guerra, no impacto das perdas e das incertezas na desamparada rotina de um imigrante em solo estrangeiro. 


É quando se concentra na jornada de Kahled e na relação entre ele e o destemido Wilkstrom, entretanto, que O Outro Lado da Esperança mostra a sua indiscutível originalidade. Contrariando as expectativas, se acostume com isso ao longo da drama, o roteiro custa a unir estes dois personagens. E quando o faz, esse “encontro” se dá de maneira totalmente descomplicada. Com ironia e sem explicações desnecessárias. Um elo, diga-se de passagem, bem sustentado pelo roteiro, como se a “fome encontrasse a vontade de comer”. O simples fator humano, atrelado ao respeito mútuo, já é o bastante para justificar esta inusitada parceria. Aki Kaurismaki, aliás, é particularmente habilidoso ao extrair gargalhadas de momentos simples, mas brilhantemente concebidos, principalmente quando o assunto é Wilkstrom e o seu novo empreendimento: um combalido restaurante. Fazendo um primoroso uso dos curiosos personagens de apoio, entre eles um advogado interesseiro, uma garçonete mal-humorada, um cozinheiro relapso e um atendente malandro, o realizador investe pesado no humor de situação, nas improváveis reações dos personagens diante de alguns fatos, preenchendo a intensa película com diálogos\sequências naturalmente cômicas.


Um viés sarcástico que, para a minha surpresa, casou perfeitamente com a questionadora reflexão proposta pelo roteiro. Nas entrelinhas, inclusive, o finlandês é genial ao associar a situação de Kahled a figura de um vulnerável vira-lata, uma solução sagaz que só reforça o gostinho agridoce deixado pela memorável cena final. Nem só de humor, porém, vive a crítica defendida por Aki Kaurismaki. Quando necessário, ele pisa forte na realidade ao realçar não só o desleixo estatal para com a figura do imigrante, como também os dramas familiares enfrentados pelo sírio e a crescente onda xenofóbica enraizada em alguns países Europeus. Sem querer revelar muito, a subtrama fraternal protagonizada por Kahled só ajuda a incrementar uma história por si só intrigante, estreitando os laços entre público e personagem ao valorizar puro e simplesmente o elemento humano. Além disso, o diretor é criativo ao usar a esperta trilha sonora, em sua maioria interpretada por cantores de rua, como um interessante elemento narrativo, verbalizando o estado de espírito dos silenciosos protagonistas através das canções. 


Por falar neles, diante da singular direção de Aki Kaurismaki, Sakari Kuosmanen arranca sinceras risadas ao interpretar o rígido Wilkstrom. Na pele de um homem distinto que, num rompante de liberdade, decide comprar um decadente restaurante, o experiente ator finlandês cativa ao traduzir a rigidez afetiva do recém-divorciado, ao mostrar tanto a sua face mais fria e destemida, quanto o seu lado mais terno e irônico. Por trás da sisudez, existe um homem de bom coração, capaz de atos nobres e altruístas. Do outro lado da moeda está Sherwan Haji, numa performance mais dramática e introspectiva. Embora fale pouco, o ator sírio expressa no olhar o turbilhão de emoções enfrentados pelo seu Kahled. Mesmo nos momentos mais leves, ele evidencia que estamos diante de um homem quebrado, tenso, um refugiado disposto a seguir as regras mesmo ciente da sua frágil posição em solo estrangeiro. A intensa sequencia em que Haji, sem qualquer recurso imagético, descreve a sua degradante jornada até a Finlândia é de cortar o coração, tamanha a veracidade imposta em cena. Os traumas são evidentes, as dores são evidentes, a esperança é evidente. Por mais que, em poucos momentos, o roteiro pese a mão quanto a boa índole do refugiado, Haji contorna qualquer flerte com a unidimensionalidade ao criar um homem suscetível a pressão e a raiva. Quanto ao restante do elenco, todos muito bem em cena, o destaque vai para Ilkka Koivula, impagável como um improvável e oportunista (no bom sentido da palavra) recepcionista. 


Um daqueles (cada vez mais raros) filmes em que os créditos finais vem acompanhados de uma sensação de “já terminou?”, O Outro Lado da Esperança se revela uma ‘dramédia’ original e imersiva capaz expor de a (dura) realidade de um imigrante em solo estrangeiro sob um prisma ao mesmo tempo cômica e realística. Embora aponte a sua afiada mira para o governo, Aki Kaurismaki não se furta da responsabilidade ao refletir também sobre a negligência do finlandês comum, mostrando que, em alguns momentos, um simples sorriso pode ajudar a curar profundas feridas.

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