Entre a razão e a emoção
Belo e revigorante, Brooklyn é um filme apaixonante, um romance delicado
e genuinamente feminino que surgiu como um radiante facho de luz no acinzentado
radar de Hollywood. Fiel ao padrão de qualidade do cinema britânico,
reconhecidamente uma fonte de inspiração dentro deste desgastado segmento, o
longa dirigido por John Crowley se revela uma história extremamente humana, um
relato comovente sobre uma jovem dividida entre a razão e a emoção. Sem nunca
julgar as atitudes dos seus personagens, o realizador irlandês esbanja
sensibilidade ao falar sobre o amor no seu sentido mais amplo, indo além dos
açucarados clichês românticos ao valorizar sentimentos tão puros. Impulsionado
pelo fantástico roteiro e pela
acolhedora atmosfera cinquentista, Crowley constrói uma película recheada de
predicados estéticos e narrativos, uma obra com natureza otimista capaz de nos
fazer enxergar o melhor do ser humano. Além disso, o longa é inteligente ao acompanhar a ascensão de uma independente figura feminina, a origem do arquétipo da mulher moderna, um arco relevante defendido com maestria pela talentosa jovem Saoirse Ronan.
Não se engane, entretanto, com as aparências. Muito mais do que um mero
romance adocicado, Brooklyn nos brinda com um precioso relato histórico, um
olhar singelo sobre a jornada daqueles que construíram os EUA: os imigrantes.
Embora o foco esteja na protagonista, a introvertida Ellis (Saoirse Ronan), o argumento
assinado por Nick Hornby (Educação, Alta Fidelidade) é sutil a traduzir o
turbilhões de emoções enfrentados pela jovem irlandesa. Ainda que na transição para
o terceiro ato o longa se prenda às questões mais românticas\sentimentais, o roteirista
é cuidadoso ao estabelecer os conflitos da imigrante, a sua dor, insegurança e
processo de adaptação neste novo país. Sempre sob o prisma feminino, Hornby se
distancia dos clichês ao tratar o amor dentro um contexto tão puro, ao se
debruçar não só sobre os dilemas amorosos de Ellis, como também sobre os seus mais
íntimos problemas familiares, a sua forte conexão com a terra natal e o seu
complicado processo de amadurecimento em solo estrangeiro. Com um texto
precioso em mãos, John Crowley se esquiva das soluções fáceis ao mostrar um bem
vindo fascínio pelo fator humano, pela envolvente jornada da protagonista, nos
brindando com um arco individual sólido e bem delineado. Sem querer revelar
muito, a “transformação” de Ellis é conduzida com enorme inspiração, culminando
num clímax revigorante e totalmente coerente com a postura independente da
personagem. Um olhar universal e bem realístico sobre o empoderamento feminino.
Sobre a capacidade de uma mulher tomar as rédeas de sua vida e encarar as
consequências das suas decisões sem olhar para trás.
Impecável ao estabelecer as nuances emocionais desta marcante
protagonista, John Crowley é igualmente habilidoso ao trazer o romance para o
centro da trama. Mesmo inserido num contexto bem específico, a respeitosa
década de 1950, o longa trata a relação entre Ellis e o jovem Tony (Emory
Cohen) com enorme espontaneidade, tornando a gradativa aproximação dos dois
harmoniosa aos olhos do espectador. Com ótima química em cena, Ronan e Cohen
criam um casal bem agradável, uma relação cativante potencializada pelos
marcantes personagens de apoio (os diálogos na pensão são divertidíssimos) e pela aconchegante
fotografia em tons pastéis de Yves Bélanger. Reparem, no entanto, a preocupação
do cinematografista ao colocar Ellis no centro dos planos, ao reforçar a sua
magnética presença em cada uma das cenas, um cuidado que se torna evidente, por
exemplo, quando ele realça os belos olhos azuis da atriz, os seus encaracolados
cabelos ruivos ou até mesmo as mudanças nos trajes da personagem. É ai, aliás,
que chegamos a elegante condução de John Crowley. Procurando sempre valorizar o
nítido entrosamento do elenco e a fluidez dos diálogos, o realizador investe
numa direção tradicional, mas bem orquestrada, um trabalho intimista marcado
pelos imersivos planos médios, pelos expressivos enquadramentos abertos e pelos
suaves cortes de cena. Nas sequências externas, inclusive, Crowley é sensível
ao destacar as diferenças estéticas entre a bucólica paisagem irlandesa e o
radiante cenário urbano norte-americano, dando ao longa uma roupagem visual
digna dos grandes clássicos britânicos do gênero. Méritos que precisam ser divididos com a classuda direção de arte, minuciosa ao reproduzir os trajes e a ambientação interna dos anos 50.
Como um filme genuinamente feminino, entretanto, o grande diferencial de
Brooklyn reside na soberba atuação de Saoirse Ronan. Após brilhar no
excepcional Desejo e Reparação, a talentosa atriz invade a fase adulta com um
desempenho único, um trabalho memorável e repleto de sentimento. Sem nunca se
render aos clichês do “sexo frágil”, Ronan cria uma Ellis forte e determinada,
uma irlandesa capaz de sofrer calada e se moldar ao ambiente que a cerca. Com
uma performance crescente, ela vai da retraída imigrante à corajosa mulher com
rara naturalidade, colocando a sua Ellis no 'hall' das grandes personagens
femininas da nova geração. Em suma, por mais que o roteiro se renda a algumas
soluções mais convencionais na transição para o último ato, o pretendente
irlandês interpretado pelo excelente Domhnall Gleeson, por exemplo, surge
abruptamente dentro da trama, Brooklyn se revela uma obra rara, um olhar
amoroso e reconfortante sobre as relações humanas e a cumplicidade em tempos de
crise. Além disso, o longa é suficientemente maduro ao mostrar que a
independência não precisa estar ligada, necessariamente, a atitudes drásticas,
mas basicamente à capacidade de se romper com os laços que nos impedem de
crescer. E essa, apesar do viés feminino proposto pelo filme, é uma lição
completamente universal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário