terça-feira, 6 de março de 2018

No Oscar da latinidade e da diversidade venceu a qualidade e a naturalidade


Após movimentos como o Oscar so White, o Me Too e o Time's Up, três manifestações urgentes em prol da igualdade racial e de gênero, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas finalmente se viu obrigada a olhar para os seus próprios erros. Sob o comando da então presidente Cheryl Boone, recém-substituída por John Bailey após importantes quatro mandatos, o evento passou por uma grande renovação, um processo criterioso visando a diversificação e o rejuvenescimento do corpo votante. E o resultado foi rápido. Em 2017, após duas edições sem a presença de um ator(a) negro entre os indicados, a Academia enxergou na vitória de Moonlight o voto de confiança que todos esperavam para confirmar que havia algo de novo dentro da premiação. Embora ache injusto tratar a vitória do excelente longa de Barry Jenkins como um simples ‘mea-culpa’, o fato é que o triunfo de Sob a Luz do Luar (no Brasil) se revelou um movimento antinatural dentro da lógica do evento. Como se a Academia tivesse apenas tentando cuidar das suas feridas, mas não cicatrizá-las de vez. Infelizmente, a impressão desse que aqui escreve não poderia estar mais equivocada. Por mais que seja cedo para constatar qualquer grande mudança da raiz do problema, o fato é que a 90ª edição do Oscar (confira o nosso artigo e a lista completa de vencedores) mostrou que diversidade e qualidade podem caminhar de mãos dadas. Numa das mais equilibradas safras das últimas temporadas, o renovado corpo votante finalmente rompeu com alguns velhos tabus, valorizando a pluralidade numa noite marcada pela leveza, pela latinidade, pela energia dos discursos e pela naturalidade.


Esqueça, portanto, o clima quase fúnebre do último Globo de Ouro. Sem a necessidade de querer impor uma imagem de renovação, a Academia conseguiu equilibrar crítica e diversidade com indiscutível harmonia. Logo de cara, com a revigorada lista de indicados, os membros votantes deram provas que estávamos diante um evento mudado. Tivemos filmes ‘indies’ entre os favoritos, Steven Spielberg dividindo categoria com Jordan Peele e Greta Gerwig, a primeira mulher indicada ao Oscar de Melhor Fotografia, Daniel Kaluuya e Timothée Chalamelet entre os melhores atores, Logan entre os indicados ao prêmio de Melhor Roteiro Original, produções da Netflix com relevância dentre os demais nomeados. Já era claro que, desta vez, a cerimônia não ia seguir a pauta social da vez. A novidade se fez presente em diversas categorias. Uma impressão inicial que, diga-se de passagem, só foi reafirmada ao longo da divertida noite de premiação. Conduzida com energia por Jimmy Kimmel, brilhante ao rir das questões mais espinhosas com sutileza e bom senso, a 90ª edição do Oscar tentou dar voz a todos os públicos. Negros, brancos, jovens, idosos, gays, héteros, nerds, cinéfilos, a grande maioria deve ter se sentido representada numa premiação que (nitidamente) tentou romper com o elitismo e abraçar o pop. Num dos pontos altos da noite, por exemplo, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, celebrando as nove décadas de existência, decidiu homenagear o cinema. O que se viu foi uma copilação arrepiante, um vídeo magnificamente editado que reuniu alguns dos maiores clássicos da Sétima Arte embalado por icônicas trilhas sonoras. Exterminador do Futuro, Jurassic Park, E.T, Pantera Negra, Mulher-Maravilha e De Volta para o Futuro dividiram espaço com clássicos do quilate de Cidadão Kane, Casablanca, A Malvada e Os Dez Mandamentos num recorte que resume a face fantástica por trás da criação dos Irmãos Lumière. 

Patrick T. Fallon (The New York Times)
Não confunda, porém, leveza com displicência. Nos momentos em que precisava premiar a diversidade, o corpo votante o fez com indiscutível justiça. Greta Gerwig e Jordan Peele, por exemplo, mereciam uma indicação na categoria Melhor Direção, mas o prêmio seria um exagero. Ficou para o mexicano Guillermo del Toro e o seu mágico A Forma da Água. Em contrapartida, a vitória de Peele na categoria Melhor Roteiro Original foi justíssima, já que Corra! era - por muito - o filme mais original do quinteto. Num ano em que o MeToo ganhou força e ajudou a expor uma repugnante realidade em Hollywood, o esperado triunfo de Frances McDormand em Três Anúncios para Um Crime também fez jus a qualidade e aos anseios por igualdade dentro da indústria. Na pele de uma mãe raivosa em busca da identidade do assassino da sua filha, a falha Mildred despontou como o símbolo deste movimento, uma personagem em busca justiça que decidiu se insurgir contra o ‘status quo’ masculino que cercava a ineficiente força policial da sua região. Embora não fosse a única personagem feminina forte da lista, Sally Hawkins e a sua Elisa, Margot Robbie e a sua Tonya e Meryl Steep e a sua Kay também fizeram por onde, McDormand entregou a atuação certa, na hora certa, culminando num dos momentos mais impactantes da noite. “Todas nós temos histórias para contar e projetos para financiar. Não falem conosco sobre isso nas festas esta noite. Nos convidem para seus escritórios daqui uns dias. Ou podem ir aos nossos. O que for melhor. E contaremos tudo sobre eles. Tenho três palavras para deixar com vocês esta noite, senhoras e senhores: cláusula de inclusão.”, clamou uma consciente e talentosa atriz que há tempos está na frente de batalha na luta por grandes protagonistas femininas. A sua carreira, por si só, não me deixa mentir.


Sem forçar a barra por um segundo sequer, o Oscar 2018 pregou a diversidade racial, de gênero e também a cultural. Como se não bastasse a invasão mexicana que tomou conta das principais premiações nos últimos anos, Guillermo del Toro se juntou aos seus conterrâneos Emanuel Lubezki, Alejandro G. Iñarritu e Alfonso Cuarón ao levar a estatueta dourada para casa, a Academia saiu em defesa da latinidade e viu em Viva: A Vida é uma Festa a oportunidade perfeita para alfinetar o presidente Donald Trump. Ao som de um desafinado Gael Garcia Bernal, dos cantores Miguel e Natalia LaFourcade, a canção Remember Me pintou o Teatro Dolby com as cores, os costumes e os trajes mexicanos. Um visual vibrante que só reafirma a importância das tradições deste país dentro da América. No seu discurso, del Toro foi igualmente feliz ao questionar a divisão territorial defendida pelo presidente dos EUA. “Eu sou um imigrante, como Alfonso (Cuarón), Gael (Garcia Bernal) e muitos de vocês. A melhor coisa no nosso setor é poder apagar as linhas, as fronteiras. Muros só vão piorar as coisas.”, enfatizou o diretor de A Forma da Água. Por falar em latinidade, ver a atriz transgênero Daniela Vega entre as apresentadoras do Oscar já era o bastante para comprovar que a Academia estava verdadeira aberta ao movimento LGBT. Para a minha surpresa, entretanto, o seu filme, o chileno Uma Mulher Fantástica, desbancou rivais de peso e levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Desde 2010, com o triunfo de O Segredo dos Seus Olhos, o continente sul-americano não sabia o que era levar uma estatueta dourada. Volto a frisar. Mais do que uma simples manifestação, a vitória de Vega e Uma Mulher Fantástica se justifica pela qualidade do material apresentado. Um filme delicado sobre uma questão extremamente atual.


Reconhecendo a qualidade sem esquecer da sua relevância perante as pautas sociais, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas mostrou que o Oscar pode ser uma cerimônia agradável de se ver, um evento democrático aberto para piadas, célebres convidados e opinião. Embora com uma derrapada aqui ou ali, a menção aos militares soou deslocada e concessiva, a nonagésima edição do Oscar parece ter encontrado o tom ideal, defendendo pautas sociopolíticas com naturalidade e presença de espírito. O que fica claro quando, em meio a tantos temas urgentes, a Academia encontrou brecha para quebrar o protocolo, para aproximar o público das estrelas, nos dando a hilária oportunidade de ver o bonachão Guillermo del Toro, com um pão a metro, invadindo um cinema ao lado de nomes como Gal Gadot, Margot Robbie e Ansel Elgort. Um momento que sintetiza o Oscar 2018.

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