quinta-feira, 29 de março de 2018

Frantz

A guerra, a dor, o perdão e a mentira 

Alemanha, pós-primeira guerra mundial. Anna (Paula Beer) enfrentava o luto após perder o amor de sua vida, o querido Frantz (Anton von Lucke), no front. Numa das suas sistemáticas idas ao túmulo do seu amado, ela se depara com um visitante misterioso, o francês Adrien (Pierre Niney), um tipo de passado nebuloso que nutria certo carinho pelo saudoso soldado alemão. Quem seria esse homem? Um amigo do passado? Um interesse amoroso? Um possível algoz? Uma outra vítima do conflito? Guiado por este instigante ‘plot’, o respeitado François Ozon convida o espectador para uma experiência insinuante ao desvendar os íntimos conflitos dos seus traumatizados protagonistas. Sem um pingo de condescendência, o realizador francês envolve ao mostrar o quão dolorosas podem ser as feridas impostas por um conflito deste porte, realçando o fator humano e o elo entre os opostos ao não se apegar excessivamente ao enigma sugerido acima. Embora o clima de tensão em torno das motivações deste visitante inesperado seja habilmente explorado ao longo da trama, Ozon esbanja maturidade ao não sustentar a sua obra em meros segredos, se aprofundando na psique dos seus personagens ao traduzir a reação de cada um deles a dor, ao luto, a esperança e a mentira. O resultado é uma obra densa e esteticamente virtuosa que, ao valorizar as consequências em detrimento das respostas, expõe os fantasmas da guerra sob um prisma intenso, original e absolutamente realístico. 


Com roteiro assinado pelo próprio François Ozon, ao lado de Phillipe Piazzo e Ernst Lubitsch, Frantz valorizar o poder do seu texto ao preencher a trama com diálogos carregados de simbolismos. Num dos trabalhos mais elegantes da sua elogiada filmografia, o realizador francês mostra um evidente pulso narrativo ao solidificar o drama dos seus personagens sem sacrificar o ritmo da película que, ao contrário de alguns representantes do gênero, em nenhum momento soa arrastada ou cansativo. Tirando um inspirado proveito do mistério que cerca a narrativa, Ozon é inicialmente perspicaz ao testar as expectativas do público, apontando para um caminho mais palatável ao estabelecer o intrigante vínculo entre Anna e Adrien. Sem nunca abdicar do contexto político, o revanchismo entre franceses e alemães surge como uma espécie de pimenta dentro da narrativa, Ozon é sutil ao trabalhar os dilemas familiares presentes no texto, dando um merecido tempo de tela aos pais de Frantz, o introspectivo Hans (Ernst Stötzner) e a amorosa Magda (Marie Gruber), enquanto introduz a gradativa aproximação entre os protagonistas. Ao invés de se concentrar basicamente no clima de tensão em torno da repentina aparição deste possível inimigo de guerra, o realizador enche a tela de sentimento ao reforçar o drama dos sobreviventes, ao mostrar com uma simples lembrança do saudoso filho trouxe um pouco de luz para uma entristecida família. Recheado de diálogos pacifistas, Ozon comove ao mostrar as feridas da guerra dentro de uma perspectiva igualitária, criando uma “frágil” sensação de esperança enquanto investiga o real estrago dos seus personagens. Um predicado valorizado pelas soluções estéticas de Ozon. Numa opção inteligente, ele opta por fazer um sóbrio uso da fotografia em preto e branco durante a maior parte da película, realçando o tom fúnebre da obra e a expressão de frieza dos seus comandados com enorme delicadeza. Nos momentos de maior leveza, porém, as cores tomam contam da tela de maneira surpreendente, uma solução inventiva que não só remete ao período pré-guerra, como também sugerem uma mudança no estado de espírito das vítimas. 


François Ozon, porém, não construiu o seu prestígio se rendendo às escolhas fáceis. Fazendo um inspirado uso do poder de sugestão, as respostas, pouco a pouco, vão tomando conta da tela, diluindo a atmosfera de redenção ao mostrar que estamos diante de um argumento com os dois pés na realidade. As feridas, aqui, não são facilmente cicatrizadas. Reparem, por exemplo, como praticamente não existem personagens jovens no núcleo alemão. A dor seguia evidente. As dúvidas idem. No momento em que a aura de mistério em torno da figura de Adrien já parecia próxima do esgotamento, o diretor quebra as expectativas do público ao revelar a verdade antes mesmo da virada para a metade final do longa. O foco, aqui, não está na reviravolta em si, facilmente identificável aos olhos do espectador mais experimentado, mas nas consequências impostas por ela. Agora no centro da trama, Anna se vê diante de um cenário desolador, um arco espinhoso brilhantemente desenvolvido pelo roteiro. Impulsionado pela soberba performance de Paula Beer, magnífica ao capturar o misto de resiliência, desilusão, altruísmo e fragilidade da sua personagem, Ozon se encanta pelos dilemas morais da “viúva”, reabrindo algumas feridas ao discorrer sobre o perdão em tempos de guerra. Sem descaracterizar a essência da protagonista, o realizador francês revigora a trama ao colocá-la no centro de uma jornada guiada por sentimentos relutantes, realçando os seus conflitos morais enquanto tenta estreitar os laços entre dois indivíduos separados pela devastação (física e emocional) da guerra. 


Por mais que, na transição para o último ato, o roteiro surja com um conveniente novo obstáculo, um ‘plot twist’ compreensível, mas um tanto quanto oco, François Ozon reafirma o viés realístico defendido pelo longa ao mostrar que alguns vazios são difíceis de serem preenchidos novamente. Guiado pela invejável química entre Beer e o expressivo Pierre Niney, contido ao revelar o sofrimento e as angústias do seu Adrien apenas no olhar, Frantz premia o espectador com um clímax inquietante, um desfecho sentimentalmente claro, mas emocionalmente dúbio. Uma sensação potencializada, volto a frisar, pela maneira criativa com que François Ozon relaciona o uso da cor com o preto e branco. Muito mais do que uma simples firula estética, as sequências coloridas surgem como um autoral recurso narrativo, uma sacada de mestre que ajuda a enfatizar a verdade que os personagens insistem em esconder. Um predicado valorizado pelo virtuoso trabalho do diretor de fotografia Pascal Marti, requintado ao construir as luminosas e classudas cenas em preto e branco, e do próprio Ozon, principalmente no que diz respeito a utilização do contraluz e na construção dos belos planos externos. Além disso, pode até ser uma impressão minha, mas por diversas vezes percebi a presença de um discreto avermelhado no contraste das cenas em P\B, um recurso que parece remeter às manchas de sangue e às feridas do conflito. Espero que não seja um defeito da minha televisão. 


Embalado pelos sofisticados acordes da discreta trilha sonora de Phillppe Rombi, Frantz se coloca entre os ótimos filmes sobre o pós-guerra ao respeitar os sentimentos dos seus personagens. Com tipos multidimensionais e conflitos humanos em mãos, François Ozon estreita os laços entre os inimigos ao mostrar que os fantasmas da guerra não escolhem lados, nem tão pouco nações, sintetizando a sua opinião ao acompanhar os passos de dois jovens “sobreviventes” divididos entre viver na mentira ou padecer diante da verdade. Uma realidade marcada pela destruição, pelo ódio velado e pela dor da perda. E para os interessados, vou deixar a minha interpretação abaixo sobre a sequência final. Alerta de Spoilers! Na minha opinião, ficou bem claro que as cenas à cores representavam mentiras. Factuais e\ou sentimentais. Os flashbacks criados por Adrien são tão frágeis quanto a sensação de conforto experimentada pelos pais de Frantz diante de um solo de violino. Dito isso, ao usar as cores na sequência final, Ozon parece enfatizar que nada do que Anna diz é verdade. Uma sensação potencializada pela pintura que está à sua frente, o quadro O Suicídio, de Monet. O que segundo as atitudes da personagem, sugere uma mudança no sentido figurado. Não a morte em si, já que ela teria de seguir se comunicando com os seus “tios”, mas como uma renovação. Uma transformação nada otimista, sugerida pela mudança no figurino da personagem e pela utilização da cor vermelha.


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