sexta-feira, 23 de março de 2018

Adeus Christopher Robin

Denso e corajoso, longa revela os bastidores da criação de um dos maiores clássicos da literatura infantil

Inspirado na rotina de brincadeiras de seu filho, o escritor A.A Milne extraiu a ideia para a criação de um dos clássicos mais adorados da literatura infantil, o popular Ursinho Pooh. Lançado em 1926, no período do pós-guerra, a otimista obra logo se tornou um estrondoso sucesso ao redor do mundo, se tornando uma espécie de símbolo de esperança em tempos difíceis. Com base nesta premissa, Adeus Christopher Robin tinha tudo para ser um daqueles adocicados melodramas sobre o impacto deste clássico na vida de milhões. Ledo engano. Embora a fotografia ensolarada sugira uma visão otimista sobre os fatos, o longa dirigido por Simon Curtis (do subestimado A Dama Dourada) se encanta pela verdade por trás da criação desta obra, investindo numa abordagem intimista ao mostrar o efeito negativo do sucesso na rotina de um pai traumatizado e o seu inteligente filho. Impulsionado pelas extraordinárias atuações de Domhnall Gleeson e do promissor Will Tilston, o realizador londrino se esquiva das soluções fáceis ao expor a influência da guerra nesta singela relação, respeitando a essência dos personagens e a fria dinâmica familiar da época ao revelar como uma simples brincadeira se tornou um trauma na vida de uma criança. Um viés denso e corajoso que, embora valorize o elemento lúdico presente na criação de Milne, surpreende ao se encantar pela humanidade dos personagens, ao tratá-los como tipos falhos envolvidos numa situação que fugiu do seu controle. 


Por mais que, num primeiro momento, o longa pareça querer partir para a simples reverência, dando voz aos pensamentos antibélicos de A.A Milner com artificialidade e diálogos vazios, o roteiro assinado por Frank Cottrell Boyce e Simon Vaughan não demora muito para corrigir o seu curso. Ao invés de se concentrar nos feitos literários do escritor, Adeus Cristopher Robin é delicado ao investigar a persona do escritor, os seus medos e convicções. Conhecemos então o homem por trás do seu legado, o ex-soldado traumatizado, o pai relutante entre a frieza e o afeto, o autor introspectivo, o marido sem voz. Antes mesmo de se aprofundar na relação pai e filho, Simon Curtis é direto ao traduzir os dilemas do veterano de primeira guerra, fazendo um inteligente uso dos efeitos sonoros ao traduzir os seus traumas, ao tornar tudo muito claro diante do público. Por trás dos trajes finos, da postura nobre e do evidente talento, existe um homem quebrado, um sobrevivente, um comportamento fragilizado interiorizado com profundidade e sutileza pelo talentosíssimo Domhnall Gleeson. Enfileirando ótimos trabalhos em gêneros completamente distintos, o versátil ator irlandês transita entre o distanciamento e a ternura com intensidade, realçando a verdade do seu Blue numa performance contida e emocionante. Um trabalho realmente difícil, já que devido a conduta “gélida” do seu personagem, Gleeson, por diversas vezes, precisa exprimir sentimentos contrários as suas próprias palavras. 


Impecável ao estabelecer o arco paterno, Adeus Christopher Robin é igualmente sóbrio ao construir esta particular dinâmica familiar. Sem nunca pender para a unidimensionalidade, é interessante ver o esmero de Simon Curtis ao traduzir a “fria” interação inicial entre pai, mãe e filho. Por mais que o roteiro peque ao não dar à independente Daphne (Margot Robbie, magnética como de costume) a mesma relevância narrativa em relação aos dois protagonistas, o realizador mostra categoria ao revelar a educação rígida imposta pelo casal, a falta de intimidade\voz entre a criança e os seus progenitores. Ao longo do sucinto primeiro ato, Curtis é astuto ao justificar não só os motivos que levaram o casal a ter o pequeno Cristopher (Will Tilson), como também as justificativas por trás do distanciamento paterno, preparando o terreno para o tema central da película: a crescente proximidade entre Blue\pai e Billy Moon\filho. Buscando um interessante equilíbrio entre o drama e o viés lúdico, o realizador esbanja sensibilidade ao construir este complexo elo, encontrando o espaço necessário para revelar tanto o descompromissado processo de criação de Milner, quanto o efeito terapêutico desta “parceria”. Sem sacrificar a infantilidade do jovem que, em meio aos seus precoces lampejos de maturidade, dá chiliques imaturos dignos de um garoto da sua idade, Curtis enche a tela de doçura ao mostrar como o inventivo protagonista se tornou uma peça fundamental no processo de “cicatrização” emocional do seu respeitado pai, realçando a espontaneidade do texto e a química entre os atores ao nos brindar com sequências revigorantes. Os passeios pelo bucólico bosque, em especial, trazem consigo uma energia especial, um predicado potencializado pela luminosa fotografia diurna em tons pastéis de Ben Smithard (O Exótico Hotel Marigold 2). 


Quando o filme novamente parecia apontar para um caminho mais tradicional, entretanto, Simon Curtis é maduro o bastante ao investigar as consequências negativas do sucesso de Ursinho Pooh nesta singela relação. Fiel aos fatos, o argumento não poupa ninguém ao expor o impacto da fama na rotina do pequeno Billy Moon, a superexposição, o distanciamento paterno e a perda de algo intimamente ligado a sua infância. Afinal de contas, Pooh, Bisonho, Leitão, Tigrão e os demais personagens deste clássico infantil nada mais eram do que brinquedos do jovem, sendo que as identidades nasceram fruto de uma experiência íntima e coletiva com o seu querido pai. Esqueça, portanto, a exaltação do legado da obra. Contrariando todas as expectativas, o realizador surpreende ao tratar a nova rotina do garoto sob um prisma triste e amargurado. No embalo da fantástica performance do pequeno Will Tilson, que, mesmo no seu primeiro longa, encanta ao absorver a frustração do seu Billy, ao esconder no seu maduro comportamento a desilusão de um garoto que viu a sua nova rotina ser diluída pelos holofotes do showbiz. Indo de encontro as populares jornadas de redenção, Curtis parte os nossos corações ao desconstruir tudo aquilo que havia sido estabelecido previamente, evidenciando a passividade paterna, o ímpeto materno e o florescer de um trauma que viria a marcar a vida da mente por trás de alguns dos mais queridos personagens infantis. 


E isso, volto a dizer, sem desrespeitar a identidade dos protagonistas, que, em nenhum momento, são tratados como vilões desnaturados. Um viés humano que só injeta peso ao emocionante último ato. Pena que, na transição para o clímax, o roteiro pise no acelerador ao acompanhar as sequelas desta experiência na rotina de um jovem adulto Christopher. Por mais que o igualmente promissor Alex Lawther e os incisivos diálogos deixem tudo muito claro aos olhos do público, inclusive, quando o assunto é a influência Milner na construção da personalidade do filho, o longa peca ao tentar sugerir uma espécie de círculo vicioso, um arco complexo que acaba resolvido com evidente superficialidade dentro do clímax. Menos mal que, quando necessário, Simon Curtis mostra pulso narrativo ao extrair o máximo do texto e do seu elenco, se esquivando dos melodramas e do teor condescendente ao apertar os botões certos nos momentos certos. Sem querer revelar muito, a cena em que pai, mãe e filho, apenas com olhar, dizem todas as palavras que a sua educação “polida” não permite expressar, sintetiza a essência do longa, uma obra que diz muito mesmo nos momentos em que se silencia. 


Contando ainda com a delicada presença da subestimada Kelly Macdonald, comedida ao traduzir o misto de compaixão, instinto materno e ternura da babá Olive, Adeus Christopher Robin se distancia da face mais formulaica das cinebiografias ao colocar o aspecto humano em primeiro lugar. Com a coragem necessária para revelar a verdade por trás da criação de um dos maiores clássicos infantis do século passado, Simon Curtis consegue criar uma obra densa e agridoce, um filme que, apesar de exaltar o imaginário infantil, busca na realidade dos fatos a sua genuína força motora.


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