Uma pequena pérola do cinema nacional
Muito mais do que uma versão tupiniquim do clássico Cinema Paradiso, O Último Cine Drive-In mistura ficção e realidade numa verdadeira carta de amor à Sétima Arte. Consciente do domínio das grandes redes de exibição, o diretor e roteirista Iberê Carvalho encanta ao sair em defesa dos pequenos exibidores, daqueles que, mesmo asfixiado pelos lucrativos multiplex, insistem em tratar o cinema como parte de uma experiência única. Rodado num dos últimos drive-in’s do Brasil, um sobrevivente localizado em Brasília, o realizador enche a tela de sentimento ao nos brindar com uma película nostálgica, melancólica, mas levemente otimista, um filme recheado de predicados técnicos que resiste em ser encarado como um mero produto.
Prestando uma inspirada reverência aos clássicos de um passado bem mais glorioso, Iberê Carvalho tira um ótimo proveito desta fascinante premissa ao mostrar a força do cinema autoral. Numa época em o desigual circuito comercial nacional é dominado pelos poderosos blockbusters, o diretor e roteirista coloca o dedo na ferida ao realçar a realidade dos exibidores independentes, daqueles que insistem em nadar contra a corrente ao investir na qualidade, na arte em detrimento do produto. E isso, inteligentemente, sem cair num discurso elitista. Ao longo do filme, inclusive, o diretor é eclético ao buscar referências em diversos gêneros, preenchendo o deteriorado cenário com pôsteres de sucessos do quilate de Curtindo a Vida Adoidado, Operação Dragão, Cinema Paradiso, Taxi Driver entre outros. Imagens que ajudam a lembrar da grandeza daquele decadente espaço. Equilibrando drama e comédia com desenvoltura, O Último Cine Drive-In acompanha a jornada de Marlonbrando (Breno Nina, intenso como um rapaz perdido em meio aos seus problemas), um jovem humilde que, diante da doença da sua querida mãe, a simpática Fátima (Rita Assemany, magnífica) se vê obrigado a voltar para Brasília. Sem ter a quem recorrer, ele decide buscar abrigo na casa do seu distante pai, o dono de cinema Almeida (Othon Bastos, indomável como um idoso que insiste em não recuar), um homem resiliente que se recusa a abandonar o negócio da sua vida. De volta para o seu antigo "lar", Marlon entra em contato com lembranças que pareciam distantes, encontrando nelas e no combalido cinema a força necessária para superar esta espinhosa situação.
Por mais que o teor agridoce sugira uma relação mais direta com o Cinema Paradiso, Iberê Carvalho coloca os dois pés na realidade brasileira ao preencher o longa com questões bem mais densas que a premissa parecia sugerir. Diferente do clássico italiano, a nostalgia, aqui, não parece ser a única opção. Em vez de simplesmente se referir ao passado de maneira introspectiva, como um tempo que não voltará jamais, o argumento é inteligente ao criar um interessante paralelo entre os arcos de pai e filho, ao uni-los em prol de um inimigo em comum: a morte. Seja ela no sentido físico, seja no sentido figurado. Numa sacada de mestre, Iberê Carvalho reforça o elo entre os personagens ao ligar a situação do cine Drive-In a de Fátima. Embora o fim pareça próximo, Marlon e Almeida decidem lutar, resistir, um sentimento comum à jornada dos pequenos exibidores. Com uma condução intimista, enquadramentos fechados que só ajudam a valorizar a expressividade do elenco e diálogos naturalistas, o diretor comove ao desenvolver a reaproximação entre os protagonistas, ao solidificar um vínculo que parecia ter ruído. Tudo soa muito real. Muito convincente. E ao mesmo tempo muito puro. Sem querer revelar muito, a emotiva sequência em que a destemida Paula (Fernanda Rocha), uma espécie de faz tudo no Drive-In, praticamente se despede do projetor ao iniciar a tão esperada última sessão sintetiza a sensibilidade do realizador em traduzir a sincera relação dos personagens com aquele combalido espaço. Na verdade, embora nunca apele para o melodrama, Iberê Carvalho fascina ao explorar o amor presente no texto, ao utilizá-lo como um combustível para a sua história, transitando gradativamente do realismo para o escapismo ao entender que enquanto há vida, há esperança. O resultado é um último ato leve, mas não menos inspirado.
Com a responsabilidade de defender um nicho cada vez mais desvalorizado dentro da indústria, Iberê Carvalho surpreende ao entregar uma obra tecnicamente irrepreensível. Com o auxílio da luminosa fotografia de André Carvalheira (Comeback), o realizador extrai o máximo de beleza do cenário brasiliense, exibindo um inegável bom gosto estético ao valorizar elementos como a luz natural e os cenários reais. Além disso, embora faça uso da câmera na mão, um recurso que reforça o viés intimista defendido pela película, Iberê exibe também o seu virtuosismo ao buscar o equilíbrio cênico, valorizando a forma ao investir em planos médios milimetricamente calculados. Uma preocupação que, verdade seja dita, em nenhum momento soa supérflua.
Em um ou dois momentos, inclusive, Iberê Carvalho usa este recurso técnico em prol da narrativa, realçando o viés crítico ao refletir sobre a asfixia do circuito artístico. Numa delas, em especial, o bondoso dono de uma grande rede surge solitário numa sala de cinema, uma cena de rara beleza que, graças a uma brilhante solução narrativa, diz muito sobre o atual momento da indústria. Nela, com Almeida “eclipsado” num primeiro momento, a impressão que fica é que o próprio cinema está se comunicando com o bem-sucedido empresário, buscando um diálogo que, infelizmente, parece cada vez mais raro nos dias de hoje. Na verdade, este talvez seja o grande trunfo de O Último Cine Drive-In. Ao tratar o dispositivo cinema quase como um personagem, o longa personifica alguns dos seus problemas mais enraizados, refletindo sobre o fechamento de salas e o pouco espaço dado as produções menores num filme em que a implosão não é a resposta.
OBS: Ao contrário do Cinema Paradiso, o verdadeiro Cine Drive-In Brasília segue resistindo como o último da “espécie” em solo brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário