O apocalipse moral
Uma misteriosa doença. Uma família reclusa num cenário pós-apocalíptico.
Um provocador terror psicológico. Marcado pelo seu forte subtexto crítico. Ao
Cair da Noite é incisivo ao refletir sobre o impacto do individualismo e da
falta de diálogo no cada vez mais agressivo ambiente urbano. Numa proposta
singular, o diretor Trey Edward Shults eleva o nível de tensão ao investir numa
obra genuinamente sensorial, um suspense que assombra muito mais pela sua
mensagem, do que propriamente pelos fatos mostrados em tela. Embora faça um uso
ocasional dos populares 'jump scares', o promissor realizador norte-americano
esbanja maturidade ao investir numa densa e inteligente, um filme que preza
pela relação entre os personagens, pela construção da atmosfera de desconfiança
e pelos simbolismos escondidos num argumento marcado pelo seu teor social.
Impecável ao reforçar o clima de dúvida em torno dos seus personagens, o argumento assinado pelo próprio Trey Edward Shults narra a história de Paul (Joel Edgerton, intenso como de costume), um homem precavido que, isolado no meio de uma floresta, lutava arduamente para manter a sua pragmática esposa Sarah (Carmen Ejogo, excelente) e o seu errático filho Travis (Kelvin Harrison Jr, expressivo como um jovem atormentado por pesadelos) a salvo de uma letal doença transmissível. A rotina do trio, entretanto, muda drasticamente com o surgimento de Will (Christopher Abbott, impecável ao traduzir a vulnerabilidade do seu personagem), um pai de família desesperado em busca de água para ele, sua esposa (Riley Keough, humana em cena) e o pequeno filho. Embora relutante, Paul é convencido pela sua mulher a dar um teto para os desabrigados, iniciando assim uma frágil relação de confiança e autoproteção.
Com um roteiro instigante em mãos, Trey Edward Shults mostra pulso
narrativo ao realçar o gradativo clima de desconfiança entre os protagonistas. Após dedicar o contextualizador (mas nada óbvio) primeiro ato à rotina de Paul
e sua família, o diretor é cuidadoso ao estabelecer o subtexto social presente
no argumento, principalmente com o repentino surgimento do misterioso Will. Sob
um prisma imersivo, Shults nos coloca no centro da trama ao estabelecer o
crescente clima de paranoia e ao sempre duvidar das reais intenções dos seus
personagens. Apesar do clima de aparente segurança tomar conta do segundo ato,
o roteiro é astuto ao traduzir o desconforto\medo entre os moradores, a inquietação
de Paul diante de uma resposta contraditória, a subserviência de Will perante
as ordens do dono da casa ou o incômodo do filho adolescente ao se pegar
olhando para o decote da sua nova "hóspede". Os conflitos nascem na
sutileza, expostos com inspiração através do confuso olhar de Travis. Um jovem
superprotegido que, após alguns traumas, já não parece ser capaz de
diferenciar os seus pesadelos da realidade. Através de tipos tão bem
desenvolvidos, o diretor acerta ao não se prender aos rótulos, ao colocar os
moradores e os visitantes num mesmo patamar dentro da trama, permitindo que o
público se aproxime deles, experimente a insegurança dos personagens e enxergue
as suas falhas mais íntimas.
É na transição para o nervoso último ato, no entanto, que Trey Edward
Shults coloca o dedo na ferida ao questionar os valores morais das duas
famílias, ao contestar os seus personagens, ao expor o quão tênue pode ser a
linha entre o protagonismo e o antagonismo em meio ao caos. Sem um pingo de
concessão, ele não poupa o espectador ao expor a nossa face mais agressiva e
incoerente, extraindo o máximo da sua obra num clímax corajoso, reflexivo e
naturalmente pessimista. Um desfecho à altura da extraordinária atmosfera
construída. Sem apelar para os sustos fáceis, Shults brilha ao construir um
cenário tenso e claustrofóbico, uma ambientação labiríntica potencializada pelo
refinado uso da meia luz\escuridão, pela rústica fotografia avermelhada de Drew
Daniels, pelo desconfortável desenho de som e pelos ruidosos tambores da trilha
sonora de Brian McOmber. Os cenários estreitos e angulados da casa de Paul,
aliás, se tornam um elemento naturalmente soturno nas mãos do realizador, um
visual singular capturado com fluidez em centralizados planos fechados e nas
inspiradas sequências em primeira pessoa.
Em suma, indo além dos predicados técnicos, Ao Cair da Noite se revela um
suspense psicológico crítico e inquietante. Um filme com múltiplas camadas (e
perspectivas) que se distancia das soluções fáceis ao prezar pela solidez
narrativa e pela densidade emocional. Uma opção rara que, aqui, só ajuda a embasar
os questionamentos morais pensados por Trey Edward Shults.
Um comentário:
Tá, beleza, tecnicamente o filme é excelente. Eu gosto ler o livro antes de ver o filme, mas neste caso eu gostei de ambos, creio que é só questão de gostos. filme ao cair da noite foca essencialmente no psicológico dos personagens. Stephen King é o escritor mais adaptado do mundo, aterrorizando leitores e cinéfilos desde 1974. Mas uma coisa é certa: a obscuridade, a polêmica e a inovação de sua obra fizeram dele o escritor mais adaptado de todos os tempos para a TV e cinema.
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