sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Thor: Ragnarok

A perfeita sinergia entre a Marvel Studios e a Marvel Comics


Um dos heróis mais poderosos do selo Marvel, o popular Thor foi, de longe, um dos personagens mais modificados na transição das páginas dos quadrinhos para as telas dos cinemas. Embora os competentes dois filmes solos do lendário deus nórdico tenham resgatado algumas das características mais marcantes das hq's, entre elas a imponência visual, o elemento fantástico e o constante jogo de poder palaciano, o protagonista ganhou uma perspicaz roupagem mundana, uma faceta convencida\imatura que o transformou num natural alívio cômico dentro do MCU. Ele, no entanto, merecia mais. E a Marvel tratou de reconduzi-lo ao time A dos Vingadores. Após se tornar uma espécie de coadjuvante de luxo em A Era de Ultron (2014), o príncipe de Asgard volta das "férias" após Guerra Civil (2016) no irreverente Thor: Ragnarok, uma comédia aventureira que finalmente soube explorar o potencial "zueiro" do remodelado protagonista em sua máxima potência. Um dos projetos mais autorais da franquia, o longa dirigido pelo extravagante Taika Waititi (O que Fazemos nas Sombras) empolga ao ampliar a mitologia do herói com extrema espontaneidade, se afastando mais do que o costume da geralmente "confortável" fórmula Marvel ao tratar o fim de forma irônica e indiscutivelmente audaciosa. Numa proposta irreverente, escapista, mas nada despretensiosa, o realizador neozelandês justifica o frisson em torno da sua improvável escalação ao pregar o desapego, ao subverter o teor épico\super-heroico presente no arco original, fazendo jus ao drástico subtítulo da película sem nunca abrir mão do seu afiado senso do humor. Além disso, Waititi esbanja virtuosismo técnico ao reverenciar o legado de cores e formas do cultuado quadrinista Jack Kirby, contornando os pontuais problemas de tom ao valorizar o 'fan service' na composição dos exuberantes cenários e das imagéticas sequências de ação.


Com roteiro assinado pelo trio Eric Pearson, Craig Kyle e Christopher Yost, Thor: Ragnarok é sagaz ao extrair o melhor da dobradinha Marvel Comics\Marvel Studios. No que diz respeito ao aspecto narrativo, o terceiro filme solo do deus nórdico comprova a engenhosidade da fórmula cinematográfica da franquia numa aventura ágil, concisa e naturalmente urgente. Numa proposta positivamente simples, Taika Waititi amplia a mitologia em torno do protagonista com enorme habilidade, preparando o terreno para a sua nova aventura de maneira objetiva e descomplicada. Em menos de meia hora de projeção, ele consegue não só estabelecer a rotina de Thor (Chris Hemsworth) pós-Era de Ultron e o que Asgard se tornou nas mãos do faceiro Loki (Tom Hiddleston, excelente), como também introduzir a perversa nova antagonista, a poderosa Hela (Cate Blanchett), realçando as suas respectivas motivações e as consequências das suas atitudes num dos melhores primeiros atos do MCU. Mesmo escorado em pequenas conveniências narrativas e no formulaico uso dos flashbacks, o plot se encaixa com extrema precisão, reaquecendo a conexão entre o público e alguns velhos personagens enquanto arquiteta os novos elementos da trama.


Sem querer revelar muito, a tão elogiada coesão do universo Marvel, por exemplo, se torna evidente quando percebemos a naturalidade com que uma figura secundária é alçada momentaneamente ao patamar de herói. Uma transição justa e quase que instantaneamente compreendida. O mesmo, aliás, acontece quando o assunto são os novos personagens. No melhor estilo Guardiões da Galáxia (2014), Taika Waititi brilha ao dar relevância narrativa a todas as peças do seu tabuleiro, extraindo o melhor de cada uma delas ao encontrar tempo para desenvolvê-las sem sacrificar o envolvente ritmo da película. Enquanto a 'badass' Valquíria (Tessa Thompson) logo se revela a protagonista feminina mais empoderada do universo Marvel, figuras como o dúbio Executor (Karl Urban, surpreendente) e o solitário Korg (Taika Waititi) ganham arcos bem mais sólidos que o esperado, roubando a cena graças ao particular senso de simultaneidade\entretenimento do realizador. A tiradas da criatura de pedra vivida, aliás, são em sua maioria hilárias, um daqueles personagens secundários que só a Marvel parece ser capaz de tirar do papel. O que falar então do Grão Mestre vivido por um impagável Jeff Goldblum, um personagem extravagante e propositalmente afetado que ganha uma justificada importância mesmo tendo bem pouco a oferecer para a história.


E por mais que o humor debochado de Thor: Ragnarok salte aos olhos, o grande diferencial deste terceiro filme está no desenvolvimento do personagem título, mais precisamente na maneira com que Taika Waititi se distancia dos conflitos apresentados nos dois longas anteriores. Um dos grandes expoentes da comédia na atualidade, o diretor consegue ir além das piadas ao realçar, sempre que necessário, a face mais humana e vulnerável do herói. Enquanto Kenneth Branagh, Alan Taylor e - especialmente - Joss Whedon pareciam trata-lo com certo distanciamento, como um "estrangeiro" superpoderoso, egocêntrico e naturalmente estranho, Waititi se encanta pelo 'loser' por trás do príncipe de Asgard, pela sua faceta mais errática e impotente. Além de rir sem piedade da sua até então desconhecida fragilidade, o humor físico, em particular, é explorado com desenvoltura, o neozelandês se preocupa em jogar uma breve luz sobre as nuances mais íntimas do protagonista. Ao contrário dos filmes anteriores, o foco, aqui, não está na exemplar figura de Odin (Anthony Hopkins). Thor já não está mais à procura de respeito, honra e\ou aceitação. Ele finalmente avança, rompe laços e encontra novas perspectivas.


Embora cercada de piadas sobre a imaturidade do personagem e situações engraçadas, a autoafirmativa jornada do deus nórdico ganha um bem vindo frescor no momento em que se torna mais terna e altruísta. Um arco eficaz potencializado pela reveladora presença da indomável Hela. De longe uma das antagonistas mais visualmente impactantes da Marvel, a destruidora deusa da morte surge como uma espécie de agente catalisador, uma figura com sede de poder interpretada com um indescritível ar sedutor pela magnética Cate Blanchett. Além de esconder alguns promissores segredos, daqueles que só ajudam a humanizar a trama, a vilã expõe as fraquezas de Thor com contundência e se torna um dos maiores trunfos do longa. Me arrisco a dizer, inclusive, que ela merecia um tempo maior de tela, principalmente pela excelente química com Chris Hemsworth. Em contrapartida, Taika Waititi é certeiro ao arquitetar a impagável relação entre Thor, Hulk, Loki e Valkyria, extraindo o melhor do quarteto na construção de um "supergrupo" volúvel e particularmente entrosado. Uma parceria imprevisível valorizada pela enérgica presença de Tessa Thompson (que achado!), radiante ao criar uma heroína mundana totalmente nova dentro do MCU. Assim como ela, aliás, o alter-ego monstruoso do pacato Bruce Banner (Mark Ruffalo, à vontade) rouba a cena sempre que está nela, expondo tanto a perspicácia do diretor em rir do próprio gênero, quanto o extraordinário avanço técnico da Marvel no quesito captura de movimentos.


Impecável ao explorar o potencial "zueiro" do herói sem se esquivar do delicado contexto apocalíptico, Taika Waititi mostra inspiração ao se aproximar da Marvel Comics quando o assunto é o visual de Thor: Ragnarok. Reverente ao trabalho do virtuoso Jack Kirby, o realizador investe pesado nas cores e na grandiosidade cênica ao capturar o expressivo trabalho da equipe de direção de arte. As sequências no planeta lixão Sakar, em especial, são extraordinárias, um cenário recheado de contrastes, construções inusitadas e criaturas genuinamente exóticas. No melhor estilo Space Opera, Waititi esbanja categoria ao capturar os traços de Kirby impressos em cena, investindo em planos abertos imponentes, imersivos e repleto de elementos cênicos. Fazendo um expressivo uso do CGI na concepção de Asgard e nas empolgantes sequências aéreas, o neozelandês mostra um indiscutível bom gosto ao traduzir também o exotismo estético presente nas múltiplas ambientações, reforçando o aspecto imagético do longa ao nos brindar com momentos poderosos. Como não citar, por exemplo, a explosão de Thor ao som de Led Zeppelin ou então a violenta ascensão de Hela em solo asgardiano. Duas cenas grandiosas.


Uma composição visual ímpar capturada com vigor e textura pelas lentes do diretor de fotografia Javier Aguirresarobe (Os Outros). Em meio aos impactantes planos panorâmicos, Taika Waititi é igualmente criativo ao trabalhar com as gigantescas noções de escala. No primeiro longa capaz de absorver a magnitude das histórias do personagem, ele faz questão de revelar o quão minúsculos eram os heróis diante dos oponentes mitológicos, permitindo que o micro e o macro dividam o quadro de maneira imponente. E como se não bastasse isso, o realizador enche a tela de estilo ao construir as velozes sequências de ação, um 'mise en scene' ágil, luminoso e totalmente compreensível aos olhos do público. Por diversas vezes, inclusive, Waititi investe num refinado uso do 'slow motion' (viva Zack Snyder!), resgatando o aspecto mais plástico dos quadrinhos ao realçar o poder dos personagens, a performance corporal dos atores (da Hela em especial) e a ferocidade deles no campo de batalha. O neozelandês, aliás, sabe como construir uma boa entrada triunfal, um predicado favorecido pela memorável (finalmente!) trilha sonora épica e sintetizada de Mark Mothersbaugh (Uma Aventura Lego).


Tal qual o seu personagem, entretanto, Thor: Ragnarok é também um filme falho. Embora dite o tom da ritmada trama, o humor se torna invasivo em momentos pontuais, esvaziando o peso e o senso de consequência de algumas importantes cenas. Sem querer revelar muito, diferente do que geralmente acontece na consagrada fórmula Marvel, o problema, aqui, não está na falta de contundência\coragem do roteiro, mas na overdose de irreverência nas cenas mais dramáticas. Somado a isso, no último ato o argumento se escora numa solução frágil, uma opção coerente com a mitologia proposta, visualmente expansiva, mas mal desenvolvida diante dos fatos apresentados logo na sequência de abertura. Uma porção de deslizes que de maneira alguma reduz o resultado final de Thor: Ragnarok, uma produção autoral, irônica (vide a autorreferente sequência do teatro em Asgard) e indiscutivelmente empolgante que reafirma a capacidade criativa do MCU. Com uma inesperada "carta branca" dos executivos da Marvel em mãos, desde Shane Black (Homem de Ferro 3) um realizador não tinha tanta liberdade dentro da franquia, Taika Waititi justifica a sua improvável contratação ao oferecer um "fim" ousado e inusitadamente familiar. Impulsionado pela carismática performance de Chris Hemsworth, que, com um material bem mais rico a sua disposição, entrega a sua melhor atuação à frente do herói, o neozelandês nos brinda com uma película pop, leve e vibrante, uma obra estilosa capaz de tornar o apocalipse da Asgard genuinamente engraçado. E isso sem sacrificar o senso de ameaça e a forte carga altruísta presente no longa.


E com o lançamento de Thor: Ragnarok, confira o nosso ranking com o melhor e o pior do Universo Marvel nos Cinemas. Para mais informações sobre o Cinema siga as nossas contas no Instagram, no Twitter e no Facebook

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