Escrever uma crítica sobre um filme como Blade Runner 2049 é uma missão
realmente difícil. Embora não dependa dos seus "segredos", o corajoso
longa dirigido por Denis Villeneuve resolveu avançar as discussões filosóficas
presentes no clássico de 1982, rompendo com alguns conceitos ao oferecer novas
interpretações sobre as questões existenciais num mundo tecnológico. Como de
costume aqui no Cinemaniac, porém, as nossas opiniões são livres de spoilers, o
que limitou uma análise mais reveladora acerca das "evolutivas"
mudanças pensadas pelo realizador canadense para a continuação. Neste artigo,
portanto, irei me aprofundar em alguns destes novos conceitos, expondo um pouco
mais da minha percepção sobre o filme e a minha interpretação sobre as ideias
defendidas no memorável Blade Runner 2049. Desde já, aviso de spoilers !!!!!!!
Logo no primeiro parágrafo da crítica eu escrevi sobre as novidades
"no 'status quo' da trama". Na verdade, refletindo sobre a mudança da
nossa percepção no que diz respeito às novas tecnologias após três décadas, o
roteiro assinado por Hampton Fancher e Michael Green é sagaz ao desenhar o novo
'status quo' dos replicantes. No 'hit' cult de 1982, Ridley Scott sugeriu um
futuro pessimista, uma distopia em que a tecnologia (entenda replicantes) não
convivia harmoniosamente com os humanos. Apesar da nossa pretensa
superioridade, os "androides" lutavam contra a sua condição inferior,
se insurgindo contra os humanos ao entender que não eram diferentes dos seus
criadores. Eles evoluíram, passaram a ter pensamentos próprios e a buscarem o
prolongamento da sua vida. Já em Blade Runner 2049, os replicantes são seres
completamente integrados ao dia a dia de Los Angeles. Ao contrário de Roy Batty
e sua turma, a nova geração de "androides" foi criada com uma espécie
de "trava de segurança", cientes da sua inferioridade perante os
humanos.
Os replicantes sabem que são replicantes, seguem a risca a sua
programação e sequer cogitam a possibilidade de se rebelarem. Por mais que a
crítica envolvendo a nossa "frágil" relação com as novas tecnologias
seja relativamente semelhante nos dois filmes, uma abordagem atual que fica bem
clara quando percebemos a (perigosa) influência de algoritmos, aplicativos e dispositivos
eletrônicos na nossa rotina, a mudança no 'status quo' revela o cuidado de
Villeneuve ao criar uma ambientação mais reconhecível aos olhos do público.
Afinal de contas, apesar dos escândalos em torno do vazamento de informações
sigilosas, o ciberterrorismo e os constantes crimes na "rede", a
nossa relação com o virtual é, atualmente, rotineira. Além disso, ao fazer de K
um replicante resignado com a sua situação, o longa prepara o terreno para
outra importante ruptura envolvendo a estrutura narrativa do 'hit' cult
oitentista: a mudança de perspectiva no papel do protagonista.
- Sai Deckard, entra replicante
No quarto parágrafo da minha crítica eu comentei sobre a mudança de
perspectiva dentro da trama. Enquanto no primeiro filme "desbravamos"
o universo Blade Runner sob o ponto de vista humano (será?) do caçador Rick
Deckard (Harrison Ford), em 2049 Dennis Villeneuve brilha ao colocar no centro
da trama este novo modelo de replicante. Ao seguir os passos do introspectivo K
(Ryan Gosling), a continuação expõe o que não foi mostrado no original, o
processo de "humanização" de um "androide" a luz das suas
descobertas. Impulsionado pelas mudanças no 'status quo' dissecadas acima, o
realizador canadense é sensível ao se debruçar sobre os crescentes conflitos
mais íntimos do personagem, revelando a sua raiva, confusão e esperança à
medida que ele passa a cogitar a possibilidade de ter nascido "naturalmente"
e não ter sido criado. Mais do que enfrentar um humano, K luta contra a sua
própria programação, contra os paradigmas idealizados por Wallace (Jared Leto)
e o seu "destino".
Por mais que as discussões filosóficas envolvendo a existência humana
não sejam tão metafísicas quanto no original, é interessante ver também como
Denis Villeneuve reaproveita a teoria do "penso, logo existo" de René
Descartes. Embora o subtexto religioso seja bem mais presente nesta sequência,
o roteiro dialoga com o dualismo cartesiano proposto pelo filósofo francês ao
tratar o termo alma no seu sentido mais amplo. Numa leitura bem básica da sua
teoria, a alma representaria a mente, que, por guiar o nosso corpo, definiria a
nossa existência. Ou seja, seguindo essa lógica, no momento em que os rebeldes
defendem a tese que o replicante nascido detém uma alma, podemos entender que o
filme remete a capacidade dele ter pensamentos próprios e memórias reais. Neste
cenário, a alma\mente justificaria a existência humana dos replicantes e seria
o bastante para uma rebelião na luta pelo fim da pretensa superioridade dos
criadores. É neste ponto, aliás, que chegamos ao terceiro tópico que comprova a
evolução de Blade Runner 2049 em relação ao original.
- Mudança nos paradigmas envolvendo a definição da existência humana
E aqui chegamos ao ponto em que a evolução da mitologia Blade Runner se
torna mais evidente. Numa sacada audaciosa, Denis Villeneuve arrisca ao
mudar os paradigmas envolvendo o debate existencial em torno dos replicantes.
No clássico de 1982, Roy Batty defendia uma tese mais metafísica, acreditando
que os seus pensamentos, sentimentos e as suas memórias já definiriam a sua
humanidade. Neste cenário, os replicantes queriam primeiro a sobrevivência, já
que o seu tempo de vida era curto, e depois a fuga e o isolamento. A busca pelo
reconhecimento da sua existência era algo estritamente individual. É
interessante ver como o filme se concentra simbolicamente nos olhos dos
personagens e os tratam como a verdadeira "janela da alma". Além de
expor as diferenças entre replicantes e humanos, o olhar surge como a
representação da porta de entrada para as experiências humanas. No discurso
final, Roy atrela a sua existência às memórias, à sua percepção visual.
"Eu vi coisas que vocês homens nunca acreditariam...", diz o poético
personagem refletindo sobre a sua humanidade num cenário em que os
"androides" eram caçados quando não seguiam a sua programação. Segundo a teoria de Descartes, os olhos\sentidos fariam então
parte da ponte entre o corpo e alma (entenda mente), o que explica o uso
simbólico deste órgão ao longo do primeiro filme. Nas entrelinhas, inclusive,
Ridley Scott mostra inspiração ao questionar a nossa cegueira neste mundo
tecnológica, o que fica bem claro com o doloroso destino do grande antagonistas
da trama, o "criador" Eldon Tyrell (Joe Turkel).
Já em Blade Runner 2049, trinta anos após os episódios do primeiro
filme, Denis Villeneuve troca a metafísica por uma abordagem bem mais material
ao discutir a existência replicante diante de uma nova perspectiva. Por mais
que o argumento siga usando a memória como o estopim para a discussão
envolvendo a humanidade de K, o realizador canadense é sagaz ao jogar novas
peças na mesa, proporcionando um inquietante debate ao abraçar conceitos mais
biológicos. Na verdade, a ruptura entre os dois filmes nesse sentido já começa
a ficar claro com a figura de Niander Wallace (Jared Leto), o novo criador de
replicantes, um homem cego com uma visão de futuro bem sólida, prática e
"empreendedora". Em outras palavras, os olhos, aqui, se tornaram supérfluos.
O velho "penso, logo existo", entretanto, soa ainda mais
"datado" no momento em que descobrimos o plot da trama, o nascimento
de uma criança gerada por um replicante, no caso a apaixonante Rachel (Sean
Young). Numa inspirada mudança de paradigmas, enquanto em Blade Runner os "androides"
associavam a sua existência aos pensamentos\memórias, em 2049 o longa avança a
discussão ao usar o "milagre" da vida como uma prova material da sua
humanidade. As criaturas passaram a ser criadores. Os "peles falsas"
se veem capazes de gerar um ser naturalmente, colocando um aparente fim na
pretensa superioridade humana e nas barreiras que os "separavam" dos
seus criadores. Com esta reveladora descoberta, a reação dos replicantes muda
drasticamente. A fuga e o isolamento deixam de ser o seu destino. A rebelião se
torna coletiva. A busca não é mais pelo reconhecimento da sua existência, mas
pela igualdade, pelo fim da opressão\programação, pela construção de uma
identidade própria. O que nos leva a questões ainda mais atuais.
- Real x Virtual: o "novo" debate filosófico proposto por Denis
Villeneuve
Além de se aprofundar no debate filosófico envolvendo a existência
humana dos replicantes, Blade Runner 2049 se volta para a sua própria origem ao
discutir a diluição das barreiras entre o real e virtual numa sociedade regida
pela tecnologia. Tema central do conto Androides Sonham com Ovelhas?, obra de
Philip K. Dick que inspirou o filme Blade Runner (1982), a presença dos
elementos virtuais casa perfeitamente com a proposta contextualizada defendida
por Denis Villeneuve. Após três décadas do lançamento do longa original, a
visão de mundo 'hi-tech' mudou bastante. Enquanto nos anos 1980 o conceito
futurista era frequentemente associado a carros voadores, robôs humanizados e
cidades verticais, nas décadas seguintes a tecnologia ganhou uma forma cada vez
mais 'clean' e virtual. Internet, redes sociais, algoritmos, aplicativos,
inteligência artificial passaram a fazer parte da nossa rotina, guiando os
nossos passos, ampliando os nossos horizontes e nos conectando a um mundo
integrado. Sob este ponto de vista, Villeneuve brilha ao dialogar com temas bem
mais atuais, principalmente quando o assunto é a relação entre K e a devotada
Joi (Ana de Armas).
Buscando referência em títulos como o recente Ela (2013), Blade Runner 2049
fascina ao discorrer sobre a nossa relação com este universo virtualizado. Além
de se insurgir contra o sexisimo e a idealização do rótulo da mulher submissa,
Denis Villeneuve instiga ao debater a existência de uma inteligência
artificial, criando um inteligente paralelo entre o código binário e o DNA.
Através desta singela história de amor, o canadense amplia o escopo da trama ao
falar sobre a virtualização dos sentimentos e sobre a crescente gama de
experiências artificiais. A partir da desmotivada figura de K, Villeneuve tece
um crítico comentário acerca da conduta humana neste cenário, expondo a nossa
apatia social, a solidão e a inércia diante destas novas tecnologias. Nas
entrelinhas, inclusive, o argumento é bem mais cínico ao mostrar que por trás
dos sinceros (e evolutivos) sentimentos da virtualizada Joi existia uma
programação artificial, um elemento dúbio que reforça a nossa vulnerabilidade
num ambiente, volto a frisar, regido por algoritmos, aplicativos e dispositivos
eletrônicos. No final das contas, mais do que discutir a existência
física\humana, o novo Blade Runner aprofunda os questionamentos ao debater
também sobre o que é real e o que é virtual neste contexto 'hi-tech', tornando
a relação entre K e Joi um dos arcos mais reflexivos desta excelente continuação.
- A realidade influenciando a ficção
Por fim, em meio a tantos debates filosóficos\existenciais, Blade Runner
2049 buscou inspiração na vida real ao construir o seu principal plot. Após um
pequeno mistério envolvendo o destino de Rachel, Denis Villeneuve revela que a
replicante teve dois filhos e morreu no parto. Um deles também não sobreviveu.
O outro, dono de uma rara doença genética, teve que ser criado em confinamento,
caso contrário não resistiria as bactérias presentes na atmosfera. Um arco
genuinamente íntimo que, para a minha surpresa, dialoga com episódios da vida
de Philip K. Dick, o escritor por trás de Blade Runner. Na verdade, além de
também perder a sua irmã gêmea algumas semanas após o parto, ele nasceu com a
saúde frágil, tanto que seus pais não esperavam que ele fosse sobreviver. Reza
a lenda, inclusive, que eles chegaram a separar um espaço para que o seu filho
fosse enterrado ao lado da irmã, mas o escritor resistiu e viveu até os 50
anos. Este precoce contato com a morte, aliás, explica o pano de fundo presente
no clássico de 1982, principalmente quando o assunto é a constante luta dos
replicantes por novas "atualizações" e pela sobrevivência. Em Blade
Runner 2049, porém, esta referência surge como uma emblemática homenagem ao escritor
que, numa infeliz peça do destino, faleceu poucos meses antes do lançamento de
Blade Runner (1982) e não pode ver a sua obra se tornar referência dentro da
ficção-científica.
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