quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Crítica | Um 'coming of age' sobre o agora, "Licorice Pizza" assume a inquietude juvenil como força motora num filme cuja beleza está na imperfeição


Licorice Pizza não é "só" um filme. Licorice Pizza é um estado de espírito. Licorice Pizza é a adolescência em formato cinematográfico. O cultuado diretor Paul Thomas Anderson não se envergonha em propor um longa sobre o aqui e agora. Sobre a fome de um grupo de jovens por novas experiências. Simples assim… E complexo ao mesmo tempo.

PTA se encanta por um ideal setentista de liberdade. A Los Angeles de Licorice Pizza permite qualquer coisa. O exagero é parte da construção de um coming of age que flerta com a paródia sobre o showbiz para entender a singular visão de mundo dos seus personagens. Gary Valentine (Cooper Hoffman) era uma estrela da TV adolescente com prazo de validade. Por trás da fachada 'bon vivant' existia um garoto como qualquer outro: errático, impulsivo, excitado, imaturo. Um rapaz disposto a construir um novo futuro como um "homem de negócios".

É fascinante ver como Licorice Pizza enxerga o ridículo num mundo pouco retratado em Hollywood: o dos astros teen. PTA usa o ideal esquizofrênico de sucesso do protagonista como o ponto de partida para um drama geracional tão afetado, quanto afetuoso. Gary simboliza uma emancipação disfuncional. Gary se veste como adulto, mas age como criança. "Ele ainda consegue", diz o produtor de um comercial de ternos ao perceber que o crescido garoto de outrora ainda tinha o seu charme infantil.

Seria uma afirmação sincera? Ou parte de uma encenação criada para não machucar o ego de um jovem prestes a encarar uma dura derrocada? Licorice Pizza não cogita sequer responder a essa pergunta. O roteiro trata o fim da adolescência como uma efêmera corrida contra o tempo. Haja fôlego! Gary age e reage seguindo os seus instintos juvenis. O contexto setentista surge apenas como um alicerce para um retrato de uma geração livre, leve e sem rumo.


Licorice Pizza é um filme com DNA adolescente. Com espinha na cara. Com suor impresso na tela. Com o calor gerado por hormônios em fúria e sentimentos conflitantes. PTA assume a inquietude dos personagens como parte da construção narrativa. Ele abraça também o deboche, a inconsequência e até a natureza errática destes garotos pré-dispostos a viver algo que desconheciam. É a beleza da imperfeição. De um flerte aparentemente rotineiro nasce a relação que catalisa a trama. Alana (Alana Haim) é o rosto sem filtros de um coming of age relutante em aceitar o amadurecer como único caminho. Por que precipitar o que pode ser saboreado por mais tempo.

A imaturidade de Gary e Alana rege uma trama que acelera sem ter onde chegar. Com pressa, mas sem destino. PTA liberta os seus personagens do fardo limitante do objetivo. Querer é poder e ao mesmo não ter nesta fase da vida. Gary quer conquistar Alana, mas não sabe como. Alana quer abrir novas portas para o mundo adulto, mas se recusa a romper com o seu "eu" juvenil. São nos detalhes que o diretor realça a essência dos seus erráticos personagens.

Na maneira com que Gary não consegue viver um momento de rara intimidade com Alana sem deixar de pensar em tocar nos seios dela. Na maneira com que a "executiva" Alana parte em disparada após ver o seu novo chefe, um vereador aspirante a uma vaga no congresso (Ben Safdie), a convidar para um jantar. São gestos involuntários. São crianças incapazes de lidar sobriamente com as suas emoções.

Licorice Pizza renega a lucidez. PTA investe numa narrativa por vezes até caótica para mergulhar no mundo destes jovens. Ele não está preocupado nos "comos" ou "porques". É um filme guiado por reações. Por uma correria desenfreada que, mesmo quando gira em círculos, ainda tem muito a revelar sobre uma LA sem limites, uma Hollywood desvairada e uma nova geração forjada neste mundo em que basicamente tudo era possível.

PTA une Gary e Alana através da diferença entre eles. Com um direção repleta de engenhosos momentos de intimidade (os planos fechados na troca de olhares revelam a verdade que os adolescente relutam em verbalizar), o cineasta espelha a vontade dos dois personagens com a intenção de saborear aquilo que eles não podiam enxergar. O amor que cresce da admiração. A paixão instigada pelo ciúme. A empatia gerada pelo reconhecimento. São jovens, agindo como jovens, num filme que permite que eles ajam como como jovens sem julgamentos, obstáculos e grandes consequências.

PTA não precisa interferir para criar. Licorice Pizza respeita a natureza dos seus personagens e a liberdade deles na tomada de decisões. O que se torna um material fértil nas mãos dos radiantes Cooper Hoffman (filho do saudoso Philip Seymour Hoffman) e Alana Haim. É praticamente impossível dissociar um do outro aqui. São duas atuações naturais. Eles prezam pela verdade falível dos seus personagens. Eles entregam o nível de intimidade que um filme tão apegado ao agora precisava para empolgar. Não é só química. É tempo de comédia. É expressividade no olhar. É um senso de dramaticidade que floresce na sutileza dos pequenos gestos. Poucas cenas dizem tanto sobre o que é Licorice Pizza quanto a sequência do jantar no último ato. Ali, emoldurada num espelho, Alana enxerga a vida adulta. Ali, perdida entre dois homens, PTA enxerga o abismo que separa a pressa por viver dá pressa por crescer. Haim entrega o calor. Cooper a delicadeza. Eu me emocionei por diversas vezes em ver no garoto as feições do saudoso Philip Seymour Hoffman. Os trejeitos. A serenidade que diz tudo. Tal pai, tal filho… 

Por que crescer? É preciso mesmo? Licorice Pizza corre no ritmo de dois adolescentes erráticos numa obra que causa um misto de fascínio e admiração a partir da sua imperfeição. Quem se importa se alguns personagens somem e desaparecem ao bel prazer do roteiro? Quem se importa se os protagonistas mudam de curso num piscar de olhos? Quem se importa com a banalidade dos diálogos tipicamente juvenis? Tudo é parte de uma experiência imersiva. Uma volta ao passado. Um vislumbre da inquietude 'teen' tomada pela vida adulta. Não é só sobre as memórias criadas. É sobre estímulos, sensações e o caos íntimo que dita esta complexa fase da vida.

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