quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Cinemaniac Indica (Akira e Ghost in The Shell)

O que falar de uma produção que inspirou obras do porte de Matrix (1999), Avatar (2009) e o recente Ex-Machina (2016)? Ou então de um filme que ainda hoje influencia títulos do quilate de A Origem (2010), Lucy (2014) e a popular série Stranger Things (2016)? Dois verdadeiros fenômenos da Cultura Pop mundial, Ghost in The Shell (1994) e Akira (1988) revolucionaram a animação japonesa, os populares ‘animes’, e porque não o futuro da ficção científica no Cinema, ao estabelecerem os paradigmas do tão explorado cenário 'cyberpunk'. Adaptação do cultuado mangá de Masamune Shirow, a versão animada de Ghost in The Shell instiga ao extrair as reflexivas questões existências presentes no riquíssimo material original. Sob a batuta de Mamoru Oshii, o longa é inteligente ao se aprofundar nas questões filosóficas presentes na trama, preenchendo a imersiva película com preciosos diálogos acerca da nossa humanidade. Afinal de contas, o que define a nossa existência? 



A partir desta provocante pergunta, o roteiro assinado por Kazunori Itô não subestima a inteligência do espectador ao transitar por temas inegavelmente complexos. Sem apelar para explicações didáticas e\ou soluções reducionistas, talvez um dos maiores pecados da subestimada adaptação estrelada por Scarlett Johansson, Ghost in The Shell exibe um invejável senso de plenitude ao não só questionar a nossa perigosa relação com as novas tecnologias, como também ao reforçar o profundo debate filosófico proposto por Shirow. Numa obra à frente do seu tempo, Mamoru Oshii utiliza a jornada da cibernética Major, uma policial robótica com cérebro humano errática quanto a sua humanidade, para refletir sobre a nossa existência, sobre aquilo que nos define enquanto indivíduo. Sem a intenção de apontar respostas fáceis, o longa é perspicaz ao colocar a memória no centro do debate. Numa época em que os dispositivos eletrônicos são definidos pela sua capacidade em armazenar\processar conteúdo, é inquietante ver um mangá da década de 1980 criar um inspirado paralelo entre o homem e a máquina, entre o cérebro humano e uma placa de rede. 


Na verdade, Mamoru Oshii provoca ao tratar o conceito "penso, logo existo", do filósofo René Descartes, sob um prisma bem mais amplo e virtual. Se esquivando dos clichês sentimentais, a adaptação reforça o seu visionarismo ao, seguindo o ponto de vista do mangá, não reconhecer as diferenças entre a consciência humana e o raciocínio lógico. Os padrões de comportamento, sejam biológicos, sejam artificiais, aqui são aproximados. Se a memória define a nossa existência, o nosso legado, por que uma inteligência artificial não pode ser tratada como um individuo? Como um ser "pensante"? Uma indagação aparentemente fantasiosa, de fundo retórico, mas que se torna pertinente num momento em que algoritmos e programas de IA vêm cada vez mais definindo o rumo das nossas vidas. 


É aqui, aliás, que o roteiro dialoga com os temais mais recorrentes na nossa realidade. Fazendo um primoroso uso do cenário 'cyberpunk', Mamoru Oshii resgata o viés crítico do mangá ao expor a perigosa presença da tecnologia na nossa rotina. Numa visão de futuro completamente reconhecível aos olhos do público atual, o realizador é incisivo ao falar sobre a invasão da privacidade, o ciberterrorismo e a perda da identidade neste cenário virtual. Pintado como o grande antagonista da película, o Mestre dos Fantoches surge como o agente catalizador deste arco tecnológico, uma figura dúbia capaz de externar a influência virtual na nossa existência. Nas entrelinhas, inclusive, Oshii é habilidoso ao realçar os escusos interesses das grandes corporações e do governo, levantando questões que hoje se tornariam recorrentes nos debates acerca da nossa "segurança" online. Em meio a tantas preciosas discussões filosóficas, Ghost in The Shell é também uma animação visualmente exuberante. 


Inspirado pelo clássico Blade Runner, Oshii cria uma obra imersiva e estilosa, um cenário vigoroso capaz de aliar o tradicional e o 'hi-tech' com extraordinária desenvoltura. Com traços marcantes e personagens magnéticos, o realizador nipônico é igualmente virtuoso ao construir as viscerais sequências de ação, reforçando a imponência de Major ao coloca-la no centro de empolgantes combates. Por diversas vezes, entretanto, Oshii surpreende ao investir em subjetivas cenas contemplativas, momentos íntimos carregados de simbolismos que, indiscutivelmente, são potencializados pela inesquecível trilha sonora de Kenji Kawai. Em suma, contando ainda com um audacioso desfecho, um final provocante e libertador que passou longe de ser replicado na versão hollywoodiana, Ghost in the Shell é um clássico instantâneo, um Sci-Fi tenso e reflexivo que, apesar de pecar no desenvolvimento dos personagens de apoio, se tornou uma referência natural dentro deste concorrido segmento.

Bem mais caótico que Ghost in the Shell, Akira promove uma instigante reflexão ao apontar a sua feroz mira para a degradação do estilo de vida nas grandes metrópoles. Embora absorva os principais temas do seu cultuado mangá, o diretor Katsuhiro Ôtomo surpreende ao investir pesado no subtexto religioso, remetendo a um passado não muito distante ao criar um inspirado paralelo entre a Guerra e o Apocalipse. Sem a intenção de se prender às respostas fáceis, o realizador nipônico amplia o escopo da trama ao abrir espaço para uma série de inspirados questionamentos, realçando o viés anárquico do texto original ao falar sobre ciência, política e religião sob um prisma indiscutivelmente singular. Na verdade, em meio às inteligentes críticas, Ôtomo revolucionou a estética do gênero ao criar também uma obra visualmente rica e imponente, um filme pop que, nos anos seguintes, inspirou uma vasta gama de realizadores e produções do universo Sci-Fi.



Com roteiro assinado pelo próprio Katsuhiro Ôtomo, ao lado de Izô Hashimoto, Akira adapta os seis volumes do mangá num longa ágil, complexo e naturalmente envolvente. Por mais que alguns arcos sejam nitidamente "simplificados", vide a repentina amizade colorida entre Kaneda e Kei, o argumento compensa ao se aprofundar no pano de fundo questionador, criando um contexto universal e assustadoramente atual. Um cenário em que a corrupção, a desigualdade e a crise econômica "criaram" uma realidade violenta e decadente. Qualquer semelhança com a nossa realidade (definitivamente) NÃO é uma mera coincidência. Na trama, após ser destruída durante a 3ª Guerra Mundial, a cidade de Neo-Tokyo renasceu das cinzas com a esperança de se tornar um lugar melhor. Grande engano. Em 2019, o clima era de caos social, protestos, atentados e uma evidente crise moral. Sem grandes perspectivas, o jovem Kaneda liderava uma gangue de agressivos motoqueiros, um grupo de rebeldes "abandonados" pelo Sistema. Durante o duelo com uma gangue rival, um dos integrantes do grupo, o ambicioso Testuo, se envolve num acidente com uma misteriosa criança, um garotinho superpoderoso criado em laboratório pelas forças do governo. Capturado pelo idealista Coronel, um militar convencido que as suas experiências poderiam livrar Neo-Tokyo da destruição, Tetsuo é submetido a uma série de testes, ganhando poderes paranormais nunca antes visto. Alheio a tudo isso, Kaneda decide partir em busca do paradeiro do seu parceiro de gangue, sem saber que estava próximo de se tornar a última linha de defesa da cidade diante de uma raivosa ameaça.



A partir de uma premissa naturalmente questionadora, Katsuhiro Ôtomo instiga ao transitar por temas tão diversificados com energia e originalidade. Logo de cara, o realizador é sagaz ao explorar o subtexto religioso dentro desta distópica ficção-científica. Ainda convivendo com os fantasmas dos ataques nucleares às cidades de Hiroshima e Nagazaki, Ôtomo esbanja sensibilidade ao associar a guerra ao Apocalipse, subvertendo o conceito do "recomeço" bíblico ao preencher a trama com diálogos envolvendo a evolução humana e o 'Big Bang'. Sem nunca soar óbvio, Ôtomo cria um improvável paralelo entre a ciência e a religião, fazendo um primoroso uso dos símbolos ao nos brindar com um clímax anárquico e reflexivo. Na verdade, enquanto o Mangá sugere uma interpretação bem mais científica, nele do choque de forças da natureza nasce um novo ambiente, uma nova Neo-Tokyo, a versão animada parece abraçar o viés religioso, já que o lendário Akira surge como um símbolo, uma figura quase messiânica capaz de restabelecer a luz, o equilíbrio em meio ao caos. Uma releitura particular que, inegavelmente, estreitou os laços do anime com o público ocidental. Curiosamente, porém, o diretor não se faz de rogado ao se insurgir também contra o fanatismo religioso, o surgimento dos falsos profetas, impedindo que o longa soe exageradamente alegórico e\ou ingênuo.



Outro ponto que agrada, e muito, é o cuidado do longa ao realçar o clima de efervescência social dentro de uma metrópole decadente. Sob um prisma universal e desesperançoso, o realizador exibe um invejável senso de plenitude ao falar sobre a corrupção, a crise econômica\educacional, a violência urbana e a degradação da juventude. Nas entrelinhas, inclusive, Katsuhiro Ôtomo é sagaz ao realçar o sucateamento das escolas, o desrespeito às instituições, a promiscuidade juvenil, um fato ainda hoje chocante dentro da rigorosa sociedade japonesa. A rebeldia, aqui, não é idealizada, nem tão pouco associada ao movimento da contracultura. Os jovens são apenas imaturos, vazios, garotos entediados preocupados com futilidades e a busca de status. Longe de ser um exemplo de herói, Kaneda, por exemplo, só assume o "protagonismo" devido ao pueril interesse na revolucionária Kei. Já Tatsuo surge como o símbolo desta geração perdida, um rapaz "esquecido" moldado pelo agressivo ambiente em que vivia. Uma abordagem densa que não só justifica a sua reação pós-poderes, como também reforça os contrastes envolvendo a figura de Akira. Num todo, aliás, os protagonistas são humanos e tridimensionais, personagens com motivações bem justificadas. Sem querer revelar muito, pintado inicialmente como o antagonista, o homem "brincando de ser Deus", o complexo Coronel ganha um arco realmente instigante, principalmente quando compreendemos as suas crenças e o esforço dele para que os erros do passado não sejam repetidos.



A influência de Akira dentro do Universo Pop, porém, foi bem além do seu conteúdo. Enquanto narrativamente o mangá\anime seguiu inspirando títulos como Lucy, Poder sem Limites e a série Stranger Things, visualmente o longa ganhou um status revolucionário, se tornando referência estética muito em função dos virtuosos traços de Katsuhiro Ôtomo. Lançado em 1988, o longa parece não ter envelhecido um ano sequer, tamanha a expressividade dos traços, a variedade de cores e a fluidez da animação. Assim como Ghost em The Shell fez anos mais tarde, Akira explorou a estética 'cyberpunk' em sua máxima potência, nos brindando com cenários grandiosos e uma decadente mistura do 'hi-tech' com o tradicional. Através de expressivos planos abertos, Ôtomo causa um fascinante desconforto ao reproduzir o caos social de Neo-Tokyo. Os protestos, a violência, os atentados, tudo soa absurdamente verossímil aos olhos do público. 



Um nível de qualidade que, diga-se de passagem, se torna ainda mais evidente nas imponentes sequências de ação. Dono de uma assinatura original, ele escreveu o seu nome na história do Cinema ao nos presentear com sequências memoráveis, entre elas a icônica primeira grande perseguição pelas ruas de Neo-Tokyo ou a impactante sequência da fuga do hospital. Por diversas vezes, inclusive, é possível enxergar o reflexo da obra em outras grandes produções, principalmente nas explosivas cenas de destruição, algumas delas replicadas futuramente em blockbusters dos mais variados gêneros. Dito isso, numa vigorosa mistura de cores e conteúdo, Akira apontou um novo rumo para a indústria da animação ao conquistar a atenção do mercado ocidental, propondo uma inteligente reflexão numa obra adulta, moderna e inquietantemente subjetiva.

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