Uma fantástica comédia de erros
Responsável pelo mais ousado lançamento da Marvel Studios, o
incompreendido Homem de Ferro 3 (2013), Shane Black coloca a sua sagacidade
novamente em evidência no hilário Dois Caras Legais. Sem se levar a sério por
um segundo sequer, o roteirista do aclamado Máquina Mortífera (1987) resolve
rir do gênero que o consagrou, o popular 'buddy cop movie', ao construir uma
comédia de ação incorreta, envolvente e recheada de absurdos. Numa combinação
propositalmente inusitada, Black mostra uma improvável coesão narrativa ao
trabalhar com ingredientes totalmente contrastantes, misturando elementos do
cinema 'noir', uma generosa dose de humor negro e uma pitada de familiaridade
ao narrar as desventuras de uma dupla de desastrados detetives envolvidos numa
perigosa conspiração. E como se não bastasse isso, em duas fantásticas
performances, os astros Ryan Gosling e Russel Crowe resolvem abraçar a zoeira
defendida pelo argumento com total desprendimento, esbanjando uma invejável
química e um afiado 'timing' cômico ao dar o dinamismo necessário para a
construção desta impagável comédia de erros.
Com vigor e irreverência, o argumento assinado pelo próprio Shane Black,
ao lado de Anthony Bagarozzi, é inicialmente impecável ao estabelecer os
cômicos e antagônicos protagonistas. De um lado temos o sarcástico Jackson
Healy (Crowe), um detetive turrão que ganhava a vida protegendo os seus
contratantes das "companhias" indesejadas. Sem um pingo de vaidade,
mas com um integro senso de justiça, o brutamonte era conhecido pelo seu
temperamento agressivo, principalmente quando se deparava com a corrupção de
menores e\ou inocentes. Já do outro lado da trama está o atrapalhado Holland
March (Gosling), um investigador particular medroso que escondia na sua bem
sucedida aparência alguns dos seus problemas, entre eles o vício em álcool, o
baixo intelecto e a delicada situação financeira. Pai da esperta Holly
(Angourie Rice), uma pré-adolescente precoce que parecia a voz da razão na
família, ele mantinha o seu padrão de vida graças a casos aparentemente sem
risco, enrolando as suas clientes com a intenção de faturar cada vez mais. As
rotinas de Hearly e March, no entanto, mudam drasticamente quando eles cruzam o
caminho de Amelia (Margaret Qualley), uma jovem que desaparece após se envolver
com o submundo da indústria pornográfica. Após um início problemático, os dois
detetives resolvem aparar as arestas e se unir para solucionar este nebuloso
caso, sem saber que estariam se metendo numa grande e perigosa enrascada.
Com personagens tão bem estabelecidos em mãos, Shane Black é igualmente
habilidoso ao introduzir o clima de mistério em torno do sumiço de Amelia.
Apesar do tom descompromissado da trama, o realizador faz um criativo uso dos
elementos do cinema 'noir', entre eles a narrativa em off, a ambiguidade moral
e a ênfase do clima conspiratório, permitindo que a hilária investigação se
torne naturalmente instigante aos olhos do público. Mesmo sem grandes surpresas
e\ou reviravoltas, o roteiro esbanja perspicácia ao acompanhar os atrapalhados
passos da dupla de protagonista, arrancando sucessivas risadas à medida que os
dois se veem presos a um caso de grandes proporções. Assim como no seu primeiro trabalho na
direção, o ácido Beijos e Tiros (2005), Black se volta para o subgênero 'buddy
cop' com extremo bom humor, brincando com as fórmulas e os clichês ao criar uma
comédia de erros dinâmica e essencialmente engraçada. Sem querer revelar muito,
a maneira propositalmente conveniente com que as pistas cruzam o caminho dos
detetives é realmente divertida e realça a bizarra inaptidão da dupla diante
desta complexa investigação. Melhor ainda, aliás, são as ágeis e empolgantes
cenas de ação. Com criatividade, presença de espírito e um inegável apuro
estético, Black é particularmente sagaz ao destacar o absurdo por trás das
atitudes dos personagens, principalmente do atrapalhado March, nos brindando
com uma série de cenas insanas e um clímax absolutamente impagável.
Quanto ao humor, aliás, Dois Caras Legais é primoroso do início ao fim.
Impulsionado pelos afiados diálogos, que com inteligência e fluidez enfatizam a
estupidez e a inocência dos detetives, Shane Black é versátil ao explorar não
só as incorretas gags verbais, como também as inusitadas piadas físicas,
permitindo que o clima de zoeira dite o tom desta crescente e desastrada parceria.
Méritos que, logicamente, precisam ser divididos com a dupla Ryan Gosling e
Russel Crowe. Um dos nomes mais talentosos de sua geração, o astro do cultuado
Drive (2011) mostra uma magnífica veia cômica ao absorver o misto de burrice,
medo e vaidade de Holland March. Sem se levar a sério por um segundo sequer, o
ator cativa ao interiorizar tanto os espontâneos trejeitos assustados do
protagonista, quanto a sua inabilidade nos momentos mais corpulentos, se
tornando parte fundamental do 'mise en scene' criado por Black. Se Gosling
encarna com perfeição o rótulo bem humorado da dupla, Crowe mostra uma inexplorada
dose ironia ao traduzir o sarcasmo do linha dura Jackson Healy. Com um vozeirão
grave e uma aparência agressiva, o australiano cria uma imagem inicialmente
segura, 'bad-ass', mas que se desmonta em cena à medida que o seu personagem
não se revela tão astuto assim.
Indo de encontro à performance extravagante do seu parceiro de cena, Russel
Crowe é mais sutil, debochado, principalmente quando se depara com as idiotices
de March. Deste contraste, aliás, nascem algumas das mais engraçadas sequências
da trama, potencializadas pelo magnífico entrosamento entre os protagonistas e
pela habilidade de Shane Black ao explorar as diferenças entre os dois. Quem
rouba a cena, porém, é a magnética Angourie Rice. Extremamente à vontade em
cena, a promissora atriz não se intimida ao dividir a tela com dois veteranos e
adiciona uma convincente dose de doçura ao longa. Com inocência e um
excepcional tempo de comédia, ela traduz a esperteza da sua personagem com rara
espontaneidade e se torna uma das grandes surpresas do roteiro. A exótica
relação paternal entre March e Holly, por exemplo, rende momentos genuinamente
divertidos, a maioria deles envolvendo a precocidade dela diante da imbecilidade
dele. Por outro lado, apesar do tom familiar funcionar ao longo da trama, a
quase onipresença da jovem dentro do último ato soa exagerada e se revela um
dos poucos deslizes de Black ao longo da película.
Contando ainda com o carismático elenco de apoio (Matt Bommer está
excelente), com a vibrante fotografia do veterano Philippe Rousselot (Esperança
e Glória) e com o incrível trabalho da equipe de direção de arte, impecável ao
traduzir o fervor de cores, o visual extravagante e a psicodélica ambientação
da década de 1970, Dois Caras Legais é a comédia do ano. Um filme saboroso marcado
pelas afinadas atuações, pela agilidade do texto e pelo nítido amadurecimento
de Shane Black ao se apropriar do humor politicamente incorreto com uma dose a
mais de sagacidade e refinamento.
2 comentários:
Adorei seu blog e resenha! :D Dois Caras Legais superou as minhas expectativas ❤️ O ritmo da historia nos captura a todo o momento. Quero vê-la novamente! Se vocês são amantes dos filmes de detetives, este é um que não devem deixar de ver. :)
Valeu pele visita e pelos elogios Natalia. Olha, Os Dois Caras Legais é uma das melhores comédias recentes de Hollywood. Baita filme. Engraçadíssimo.
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