sábado, 12 de novembro de 2016

Raça

Antes tarde do que nunca

Dono de um dos mais extraordinários feitos olímpicos da história do atletismo, o lendário Jesse Owens finalmente tem a sua trajetória contada para o grande público em Raça, uma cinebiografia completa e reveladora que não se contenta em acompanhar as conquistas esportivas do velocista americano. Mesmo limitado pelo baixo orçamento, modestos US$ 5 milhões, o diretor jamaicano Stephen Hopkins (A Vida e a Morte de Peter Sellers) é habilidoso ao reproduzir os bastidores dos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, incluindo a perseguição aos judeus, a ameaça de boicote norte-americano, as controversas negociações políticas envolvendo as duas nações e os simbolismos por trás desta grandiosa competição. O grande diferencial da película, porém, reside no cuidado do realizador ao escancarar o preconceito presente em parte da sociedade americana na década de 1930, se aprofundando nos conflitos étnicos e na crise de consciência enfrentada pelo atleta ao traçar um corajoso paralelo entre a Alemanha Nazi e os Estados Unidos no que diz respeito a questão da intolerância racial. Em suma, apesar do tradicionalismo narrativo e dos evidentes deslizes técnicos, Raça é uma biografia de respeito, um longa sólido e rico em detalhes que se mostra à altura das conquistas de Jesse Owens. 


Disposto a englobar os principais assuntos em torno da participação da equipe norte-americana na Olimpíada de 1936, o argumento assinado por Joe Shrapnel e Anna Waterhouse transita com suficiente relevância por temas e situações inegavelmente complexas. Com uma série de importantes personagens históricos em mãos, a dupla é cuidadosa ao desvendar o papel de cada um deles dentro deste grande evento, mostrando um magnífico poder de síntese ao interliga-los com coesão e agilidade. Sem nunca parecer raso e inconclusivo, o roteiro não só narra a ascensão do humilde JC Owens (Stephan James) e a sua sincera relação com o subestimado técnico Larry Snyder (Jason Sudeikis), como também se volta o jogo político por trás da participação americana na competição. Com extrema propriedade, Stephen Hopkins captura as nuances em torno deste imbróglio ao direcionar a sua mira para o dúbio Avery Brundage (Jeremy Irons), um persuasivo membro do comitê olímpico norte-americano que, assim como o alto escalão do partido nazista, encarava a competição como o instrumento de exaltação nacionalista para o resto do mundo. Da relação entre ele e o Ministro da Propaganda Joseph Goebbels (Barnaby Metschurat), aliás, nascem alguns dos momentos mais interessantes da película, principalmente pela maneira franca com que o longa disseca a intricada parceria, reproduz as incisivas conversas dos dois e expõe as escusas intenções do partido nazista. Além disso, o roteiro é generoso ao acompanhar o célebre trabalho da diretora Leni Riefenstahl (Carice van Houten), a virtuosa cineasta alemã que produziu o clássico Olympia (1938), um aclamado documentário sobre os Jogos Olímpicos de Berlim que se tornou referência dentro do gênero.


Impecável ao explorar o fértil pano de fundo político, que, graças à fluída montagem, se costura organicamente à trama, Stephen Hopkins adota uma convencional estrutura linear ao desvendar os incríveis feitos de Jesse Owens. Mesmo diante de algumas soluções esquemáticas, entre elas a previsível construção dos dilemas românticos do corredor e a superficial rixa com o "rival" Eulace Peacock, o jamaicano é cuidadoso ao estabelecer os personagens e os dilemas raciais enfrentados por eles ao longo da película. Logo na cena de abertura, uma corrida pelas ruas de Cleveland, Hopkins ressalta a pobreza e a desigualdade enfrentada pelos negros naquela região, um panorama que fica ainda mais evidente quando o atleta decide estudar numa conservadora (entenda preconceituosa) universidade de Ohio. Na verdade, ao equilibrar esporte e o contexto sócio-político com inesperado domínio, o realizador permite que o espectador enxergue as mazelas enfrentadas por Owens com clareza, se esquivando dos melodramas ao construir um primeiro ato completo e envolvente. Melhor ainda, aliás, é a maneira humana com que o roteiro desenvolve a personalidade de Jesse Owens. Indo além do tom reverencial, Hopkins se preocupa em realçar o lado mais humilde do corredor, um homem comum que, devido ao seu dom, se colocou no centro de algo muito maior do que a conquista de uma medalha. Impulsionado pela convincente atuação de Stephan James, sutil ao absorver o misto de tenacidade e simplicidade do velocista, o longa é preciso ao expor tanto as barreiras raciais enfrentadas por ele, quanto a sua crise de consciência diante do repentino reconhecimento, dando ao protagonista um lastro emocional que se torna decisivo para a construção do fascinante último ato.


E por mais que a honesta relação entre Owens e o técnico Snyder se revele um dos pontos altos do longa, principalmente por exaltar os simbolismos em torno do espírito olímpico, é quando o atleta desembarca em Berlim que o filme alcança um patamar realmente significativo. Apesar das evidentes limitações técnicas, nos enquadramentos mais fechados é possível perceber a artificialidade dos elementos digitais, Stephen Hopkins mostra categoria ao apostar em expressivas tomadas aéreas, conseguindo traduzir a grandiosidade da competição com inegável verossimilhança. O plano sequência envolvendo o primeiro contato de Owens com o Estádio Olímpico é magnífico e nos faz crer no peso enfrentado pelo atleta ao se tornar o porta voz de uma urgente mensagem de integração racial. Méritos para o jovem Stephen James que, mesmo diante da superficialidade do argumento quanto a esta questão, consegue exprimir na sua espantada feição a responsabilidade em torno deste breve momento. E como se não bastasse o zelo estético\histórico ao recriar as provas e a atmosfera esportiva, Hopkins é respeitoso ao investigar alguns outros episódios em torno da presença da equipe de atletismo dos EUA nos jogos, incluindo a tocante amizade entre Owens e o alemão 'Luz' Long (David Kross), a pressão antissemita contra os judeus americanos e o esforço de Leni Riefenstahl para filmar os eventos como eles aconteceram. A magnética Carice van Houten (A Espiã), aliás, rouba a cena sempre que está nela e adiciona vigor à película ao capturar a genialidade indomável da sua personagem. Somado a isso, a equipe de direção de arte faz um detalhista trabalho no que diz respeito à confecção de uniformes, figurinos e dos cenários, mostrando que é possível ter um interessante design de produção mesmo com um modesto orçamento. 


Contando ainda com as competentes atuações da dupla Jason Sudeikis e Jeremy Irons, que, juntos, representam a voz da experiência dentro do rejuvenescido elenco, Raça sobra na turma ao não se ver obrigada a criar mais um herói. Ciente do tamanho dos feitos conseguidos pelo lendário Jesse Owens, Stephen Hopkins foge do lugar comum ao traçar um relevante retrato sócio-político sobre os bastidores dos Jogos Olímpicos de Berlim, indo além das expectativas ao utilizar a trajetória do velocista para revelar a intolerância racial dentro de um contexto multidimensional e absolutamente complexo. Uma abordagem corajosa, principalmente por mostrar que os americanos não precisavam cruzar o oceano para se deparar com alguns enraizados problemas raciais.

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