Antes tarde do que nunca
Dono de um dos mais extraordinários feitos olímpicos da história do atletismo, o lendário Jesse Owens finalmente tem a sua trajetória contada para o grande público em Raça, uma cinebiografia completa e reveladora que não se contenta em acompanhar as conquistas esportivas do velocista americano. Mesmo limitado pelo baixo orçamento, modestos US$ 5 milhões, o diretor jamaicano Stephen Hopkins (A Vida e a Morte de Peter Sellers) é habilidoso ao reproduzir os bastidores dos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, incluindo a perseguição aos judeus, a ameaça de boicote norte-americano, as controversas negociações políticas envolvendo as duas nações e os simbolismos por trás desta grandiosa competição. O grande diferencial da película, porém, reside no cuidado do realizador ao escancarar o preconceito presente em parte da sociedade americana na década de 1930, se aprofundando nos conflitos étnicos e na crise de consciência enfrentada pelo atleta ao traçar um corajoso paralelo entre a Alemanha Nazi e os Estados Unidos no que diz respeito a questão da intolerância racial. Em suma, apesar do tradicionalismo narrativo e dos evidentes deslizes técnicos, Raça é uma biografia de respeito, um longa sólido e rico em detalhes que se mostra à altura das conquistas de Jesse Owens.
Disposto a englobar os principais assuntos em torno da participação da
equipe norte-americana na Olimpíada de 1936, o argumento assinado por Joe
Shrapnel e Anna Waterhouse transita com suficiente relevância por temas e
situações inegavelmente complexas. Com uma série de importantes personagens
históricos em mãos, a dupla é cuidadosa ao desvendar o papel de cada um deles
dentro deste grande evento, mostrando um magnífico poder de síntese ao
interliga-los com coesão e agilidade. Sem nunca parecer raso e inconclusivo,
o roteiro não só narra a ascensão do humilde JC Owens (Stephan James) e a
sua sincera relação com o subestimado técnico Larry Snyder (Jason Sudeikis),
como também se volta o jogo político por trás da participação americana na
competição. Com extrema propriedade, Stephen Hopkins captura as nuances em
torno deste imbróglio ao direcionar a sua mira para o dúbio Avery Brundage
(Jeremy Irons), um persuasivo membro do comitê olímpico norte-americano que,
assim como o alto escalão do partido nazista, encarava a competição como o
instrumento de exaltação nacionalista para o resto do mundo. Da relação
entre ele e o Ministro da Propaganda Joseph Goebbels (Barnaby Metschurat),
aliás, nascem alguns dos momentos mais interessantes da película,
principalmente pela maneira franca com que o longa disseca a intricada
parceria, reproduz as incisivas conversas dos dois e expõe as escusas intenções
do partido nazista. Além disso, o roteiro é generoso ao acompanhar
o célebre trabalho da diretora Leni Riefenstahl (Carice van Houten), a virtuosa
cineasta alemã que produziu o clássico Olympia (1938), um aclamado documentário
sobre os Jogos Olímpicos de Berlim que se tornou referência dentro do gênero.
Impecável ao explorar o fértil pano de fundo político, que, graças à
fluída montagem, se costura organicamente à trama, Stephen Hopkins adota uma
convencional estrutura linear ao desvendar os incríveis feitos de Jesse Owens. Mesmo diante de algumas soluções esquemáticas, entre elas a previsível construção
dos dilemas românticos do corredor e a superficial rixa com o "rival"
Eulace Peacock, o jamaicano é cuidadoso ao estabelecer os
personagens e os dilemas raciais enfrentados por eles ao longo da película. Logo
na cena de abertura, uma corrida pelas ruas de Cleveland, Hopkins ressalta a
pobreza e a desigualdade enfrentada pelos negros naquela região, um panorama
que fica ainda mais evidente quando o atleta decide estudar numa conservadora
(entenda preconceituosa) universidade de Ohio. Na verdade, ao equilibrar
esporte e o contexto sócio-político com inesperado domínio, o realizador
permite que o espectador enxergue as mazelas enfrentadas por Owens com clareza, se esquivando dos melodramas ao construir um primeiro ato
completo e envolvente. Melhor ainda, aliás, é a maneira humana com que o
roteiro desenvolve a personalidade de Jesse Owens. Indo além do tom reverencial,
Hopkins se preocupa em realçar o lado mais humilde do corredor, um homem comum
que, devido ao seu dom, se colocou no centro de algo muito maior do que a conquista de uma
medalha. Impulsionado pela convincente atuação de Stephan James,
sutil ao absorver o misto de tenacidade e simplicidade do velocista, o longa é
preciso ao expor tanto as barreiras raciais enfrentadas por ele, quanto a sua crise
de consciência diante do repentino reconhecimento,
dando ao protagonista um lastro emocional que se torna decisivo para a
construção do fascinante último ato.
E por mais que a honesta relação entre Owens e o técnico
Snyder se revele um dos pontos altos do longa, principalmente por exaltar os simbolismos
em torno do espírito olímpico, é quando o atleta desembarca em Berlim que o
filme alcança um patamar realmente significativo. Apesar das evidentes limitações
técnicas, nos enquadramentos mais fechados é possível perceber a
artificialidade dos elementos digitais, Stephen Hopkins mostra categoria ao
apostar em expressivas tomadas aéreas, conseguindo traduzir a grandiosidade da
competição com inegável verossimilhança. O plano sequência envolvendo o
primeiro contato de Owens com o Estádio Olímpico é magnífico e nos faz crer no
peso enfrentado pelo atleta ao se tornar o porta voz de uma urgente mensagem de
integração racial. Méritos para o jovem Stephen James que, mesmo diante da
superficialidade do argumento quanto a esta questão, consegue exprimir na sua
espantada feição a responsabilidade em torno deste breve momento. E como se não
bastasse o zelo estético\histórico ao recriar as provas e a atmosfera
esportiva, Hopkins é respeitoso ao investigar alguns outros episódios em torno
da presença da equipe de atletismo dos EUA nos jogos, incluindo a tocante
amizade entre Owens e o alemão 'Luz' Long (David Kross), a pressão
antissemita contra os judeus americanos e o esforço de Leni Riefenstahl para
filmar os eventos como eles aconteceram. A magnética Carice van Houten (A
Espiã), aliás, rouba a cena sempre que está nela e adiciona vigor à película ao
capturar a genialidade indomável da sua personagem. Somado a isso, a equipe de
direção de arte faz um detalhista trabalho no que diz respeito à confecção de
uniformes, figurinos e dos cenários, mostrando que é possível ter
um interessante design de produção mesmo com um modesto orçamento.
Contando ainda com as competentes atuações da dupla Jason Sudeikis e Jeremy Irons, que, juntos, representam a voz da experiência dentro do rejuvenescido elenco, Raça sobra na turma ao não se ver obrigada a criar mais um herói. Ciente do tamanho dos feitos conseguidos pelo lendário Jesse Owens, Stephen Hopkins foge do lugar comum ao traçar um relevante retrato sócio-político sobre os bastidores dos Jogos Olímpicos de Berlim, indo além das expectativas ao utilizar a trajetória do velocista para revelar a intolerância racial dentro de um contexto multidimensional e absolutamente complexo. Uma abordagem corajosa, principalmente por mostrar que os americanos não precisavam cruzar o oceano para se deparar com alguns enraizados problemas raciais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário