A guerra e as suas trágicas consequências
Um marco para uma geração acostumada a blockbusters vazios e geralmente descompromissados, a franquia Jogos Vorazes ganha um desfecho épico e estritamente fiel aos livros no intenso A Esperança - O Final. Encerrando a jornada de Katniss Everdeen de maneira extremamente digna, o longa capitaneado por Jennifer Lawrence não foge da raia ao reproduzir a atmosfera sombria presente no último livro da série de Suzanne Collins, equilibrando a ação e a tensão com absoluta maturidade. Enquanto em A Esperança - Parte 1 (2014) nos deparamos com um soberbo estudo de personagem, que se aprofunda no pano de fundo politico e midiático sem esquecer do desenvolvimento dos protagonistas, nesta segunda parte vemos as peças deste elaborado jogo de xadrez revolucionário finalmente entrando em ação, revelando através de um argumento contundente e nada condescendente as trágicas consequências de uma guerra civil. Desta forma, mesmo se escorando em algumas soluções inegavelmente problemáticas, o diretor Francis Lawrence consegue contornar as questões mercadológicas ao dar inesperada validez a divisão do último capítulo da saga, encontrando no talento de sua protagonista o misto de humanidade, fúria e dor necessário para arrematar a ascensão da "garota em chamas".
Diferente da expectativa dos mais alarmistas, A Esperança - O Final está longe de se resumir ao frenesi em torno do aguardado conflito entre a Capital e os rebeldes do Distrito 13. Por mais que as empolgantes sequências de ação sejam valorizadas pelo roteiro, assinado por Peter Craig, Danny Strong e pela própria Suzanne Collins, o longa em nenhum momento deixa de lado o jogo de interesse político e psicológico por trás desta revolução, mostrando na prática os reflexos do autoritarismo e do manipulador tom propagandista evidenciado ao longo da série literária. Na verdade, indo bem além do sofrimento imposto pela guerra civil, o argumento é cuidadoso ao se concentrar principalmente nas atitudes dos "vitoriosos" Katniss (Lawrence) e Peeta (Josh Hutcherson), dois personagens involuntariamente moldados por este cenário desigual, dúbio e preciosamente atual. Sem tempo a perder, o último capítulo se inicia de maneira objetiva, acompanhando a dolorosa recuperação de Katniss após o ataque surpresa do seu maior aliado. Ainda chocada com as consequências da lavagem cerebral sofrida por Peeta, a hesitante jovem vê o seu ódio contra o Presidente Snow (Donald Sutherland) aumentar ao perceber o quão monstruosas podem ser as armas da Capital. Mesmo desconfiando das intenções da ambígua Presidente Coin (Julianne Moore), Katniss se coloca a disposição para seguir agindo como o Tordo, o símbolo de uma revolução cada vez mais devastadora e midiática. Disposta a evitar as trágicas sequelas deste iminente conflito, ela resolve então agir com as suas próprias mãos, iniciando um ataque solitário e não autorizado na tentativa de colocar um fim a vida do nefasto Coriolanus Snow.
Alimentando uma aura visceral incomum para as produções do gênero, Francis Lawrence segue um caminho visualmente corajoso ao revelar a violência por trás deste conflito. Sempre fiel ao discurso antibélico de Collins, o realizador é categórico ao reproduzir os relatos mais chocantes presentes na série literária, criando uma implacável atmosfera trágica. Apoiado pela sombria fotografia de Jo Willems, impecável ao explorar a opressão arquitetônica da Capital, Lawrence faz deste cenário hostil um aliado poderoso, injetando tensão a uma premissa por si só dolorosa. Se na primeira parte acompanhamos a introdução de alguns novos personagens, como o ardiloso Plutarch (Hoffman), a dúbia Alma Coin, o leal Boggs (Mahershala Ali) e a trupe midiática de Cressida (Dormer), neste último capítulo o roteiro atinge o seu ápice ao focar na desconstrução emocional de Peeta e Katniss. Ainda que praticamente todos os principais personagens tenham o seu lugar ao sol, preenchendo as evidentes brechas do argumento, o longa é particularmente zeloso ao conduzir os movimentos destas duas desgastadas peças dentro do jogo de xadrez construído por Collins. Em meio ao inspirado duelo midiático entre Snow e Coin, potencializado pelas capciosas atuações de Moore e Sutherland, chama a atenção a naturalidade com que a trama arremata a metamorfose dos protagonistas ao longo desta quadrilogia. Sem querer revelar muito, enquanto o afetuoso Peeta se transforma numa figura atormentada pela Capital, a idealista Katniss se torna o errático símbolo de uma revolução, tendo que enfrentar juntos os reflexos de tamanha manipulação e as dúvidas sobre o futuro que estão prestes a construir. Uma relação vigorosa que, diante do forte contexto político, só acrescenta mais camadas a este eloquente capítulo final.
Por outro lado, ainda que personagens como Finnick (Sam Claflin), Cressida, Boggus e Pollux (Elden Henson) ganhem merecido destaque, A Esperança - O Final peca ao tentar não só introduzir novos elementos, mas também ao desenvolver alguns dos velhos conhecidos. Nitidamente sem tempo para arquitetar todas as subtramas, Lawrence se esforça para aproveitar os coadjuvantes da melhor maneira possível, mas a impressão que fica é que enquanto nomes como os de Haymitch (Woody Harrelson), Johanna (Jena Malone) e BeeTee (Jeffrey Wright) não possuem grande função narrativa, os militares liderados pela sargento Jackson (Michelle Forbes) se tornam descartáveis peões dentro do argumento. Num todo, porém, a trama é respeitosa ao conduzir o trágico destino de alguns dos mais queridos personagens, evidenciando o sofrimento dos protagonistas a cada perda significativa. O grande pecado do longa, no entanto, reside no insosso e pueril triângulo amoroso envolvendo Katniss, Peeta e Gale. Ainda que a química entre os três atores seja nítida, as sequências em torno deste romance se tornam completamente supérfluas, principalmente pelo cenário hostil em que estão inseridas. Pouco à vontade em cena, Liam Hemsworth também não colabora muito, encarando de maneira sisuda tanto a vocação bélica do seu Gale, quanto a instável relação com Katniss. Pra ser sincero, apesar de entender a importância deste romance para os fãs da série literária, o triângulo amoroso me pareceu completamente deslocado dentro deste último capítulo, quebrando por diversas vezes o envolvente ritmo do filme. Ao menos Lawrence, ciente do senso de urgência da premissa, explora este caso de amor com sobriedade, evitando que o clima "água com açúcar" tome conta da película.
Deslizes que acabam amenizados pelas vibrantes atuações de Jennifer Lawrence e Josh Hutcherson. Se apropriando das nuances de Katniss com enorme propriedade, a atriz atrai os holofotes ao reproduzir o peso, as dúvidas e a força presente nas atitudes da "garota em chamas". Impressionando também nas sequências mais físicas, J-Law esbanja magnetismo ao "domar" uma personagem tão emblemática, tornando crível tanto a sua faceta mais icônica, como também a mais humana. Me arrisco a dizer que se Katniss é o símbolo da revolução criada por Suzanne Collins, Jennifer Lawrence é a verdadeira força motora desta franquia cinematográfica. Neste último capítulo, porém, Hutcherson se torna a grande surpresa do longa ao entregar a sua melhor performance dentro da quadrilogia. Após deixar uma excelente impressão nas duas últimas cenas da primeira parte, o jovem ator abraça com intensidade a versão mais atormentada do seu Peeta, tirando proveito da instabilidade do personagem. Mais magro e abatido, ele vai do insano ao afetuoso com rara inspiração, tornando perigosa a relação de cumplicidade com Katniss. Contando ainda com o talentoso elenco de apoio, incluindo o saudoso Philip Seymour Hoffman, que mesmo sem gravar todas as cenas marca importante presença, Francis Lawrence é competente ao conduzir as precisas sequências de ação. Sem esquecer do pano de fundo politizado, o realizador pontua o argumento com cenas ágeis e digitalmente bem construídas, se mantendo fiel ao tom épico do último livro da série. Em meio as armadilhas montadas pelo presidente Snow, o diretor alimenta como poucos a tensão em torno da suicida incursão de Katniss à Capital, criando takes limpos, intensos e habilmente coreografados. Apesar do explosivo clímax chamar a atenção, principalmente pela maneira como valoriza a dramaticidade e a sensação de perigo iminente, Lawrence realmente brilha na claustrofóbica sequência subterrânea, empolgando ao traduzir visualmente a batalha dos "vitoriosos" contra ferozes criaturas.
Mesmo se prendendo excessivamente a série literária, vide o dispensável e condescendente epílogo, Jogos Vorazes: A Esperança - O Final é contundente ao arrematar a incrível jornada de Katniss Everdeen. Equilibrando a ação e o suspense com enorme categoria, Francis Lawrence dialoga de maneira madura com as novas gerações ao mostrar através de um engajado blockbuster os perigos por trás da manipulação política e midiática. Ainda que se renda a algumas pequenas concessões voltadas a legião de fãs da série literária, o longa não titubeia ao valorizar a proposta dramática e antibélica defendida pela franquia, evidenciando a partir do olhar de uma idealista sobrevivente o sofrimento, a impotência e a desesperança por trás de uma grande guerra. Uma mensagem por si só poderosa, que encontra no talento da atriz Jennifer Lawrence uma porta voz à altura da fantástica protagonista criada pela escritora Suzanne Collins.
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