Terceiro longa-metragem na carreira do britânico Steve McQueen, 12 Anos de Escravidão é a prova que todo mundo esperava para coloca-lo entre os mais promissores diretores da atualidade. Após os elogiados Fome e Shame, McQueen precisava de um grande trabalho, de maior alcance mundial, para conseguir encontrar o seu devido espaço dentro da indústria cinematográfica. Precisava, aliás, é a conjugação verbal certa, já que esta impressionante história real sobre a escravidão ganha contornos ainda mais impactantes nas mãos deste realizador. Apostando em um tom extremamente realista, o longa recria todo o período da escravidão norte-americana de forma visceral e objetiva. Sem tentar esconder do espectador a assombrosa realidade deste período, Steve McQueen tira o máximo do seu poderoso time de atores, conseguindo criar um trabalho definitivo sobre o tema. Um retrato cru e (infelizmente) verossímil.
Ciente de que o tema escravidão já foi amplamente utilizado em Hollywood, McQueen e o roteirista John Ridley optaram por criar uma abordagem mais amplificada sobre o tema. Na trama, Solomon (Chiwetel Ejiofor) é um homem culto que vive com certa pompa em Nova Iorque. Casado, pai de dois filhos e respeitado pelos próximos, ele vê a sua vida mudar quando aceita participar da turnê de um circo de variedades. Exímio tocador de violino, Solomon é confundido com um escravo em Washington. Desesperado e sem os seus documentos, ele acaba sendo sequestrado e levado para a região sul dos EUA, onde a escravidão ainda imperava em todas as fazendas. Ciente de que o seu nível cultural poderia ser uma afronta para os brancos, o violinista decide assumir uma outra identidade, sendo comprado pelo bondoso fazendeiro Ford (Benedict Cumberbatch). No entanto, após uma série de problemas com o capataz Tibeats (Paul Dano), Ford é obrigado a se desfazer de Solomon. É ai que o pesadelo só aumenta, já que ele acaba comprado por Edwin Epps (Michael Fassbender), um cruel e violento fazendeiro que trata os seus escravos de forma degradante. Principalmente a bela Patsey (Lupita Nyong'o), uma escrava que acaba atraindo as atenções de Epps, criando, inclusive, uma grande crise de ciúmes na esposa do fazendeiro (Sarah Paulson).
Apesar do foco central ser a história de Solomon, o longa não se contenta em narrar a jornada de um homem alforriado que acabou sendo sequestrado e teve que voltar a se tornar escravo. Na verdade, o grande mérito deste drama é o de mostrar todo este complexo cenário, destacando como funcionavam as engrenagens da escravidão. Apostando em uma narrativa simples, mas extremamente fluída e bem conduzida, o roteiro não só destaca a postura escravocrata da sociedade daquele período, mas também a posição do escravo em meio a este contexto. É muito interessante a forma como McQueen abre espaço para interessantes personagens, que mostram de forma incisiva como era devastadora a realidade negra naquele período. Personagens como o interesseiro vendedor de escravos Freeman (Paul Giamatti), que trata o escravo como uma simples mercadoria, o bondoso Ford (Cumberbatch), que não tem coragem de fazer o certo, e o desequilibrado Epps (Fassbender), o grande símbolo nefasto da escravidão, todos eles, acrescentam ainda mais peso a incrível jornada de Solomon.
Jornada que, aliás, só cresce devido a grande atuação de Chiwetel Ejioffor. Muito bem dirigido por McQueen, que explora como poucos a expressividade dos seus comandados, Ejiofor tem um desempenho impactante. Conseguindo evidenciar o ar reprimido de seu personagem, o ator brilha ao destacar a superioridade do seu Solomon, um homem bem mais esclarecido e racional do que a maioria de seus opressores. Uma marcante e expressiva atuação, que é seguida de perto pela "força da natureza" chamada Lupita Nyong'o. Sem se intimidar em contracenar com um timaço de atores, Lupita imprime força e energia na escrava Patsy, uma mulher que acreditava na possibilidade de sobreviver oferecendo "agrados" ao seu proprietário. Com um desempenho de intensidade impar, ela exibe o seu talento tanto nos momentos mais emocionais e sensíveis, como também nos takes de maior impacto. O genial plano-sequência do seu açoite é uma das cenas mais chocantes que já assisti. Quem também rouba a cena é Michael Fassbender, um velho colaborador de Steve McQueen. Protagonista de Fome e Shame, o astro vive aqui um assustador e explosivo antagonista. Encarnando toda a carga negativa de seu personagem, o ator consegue tornar crível a oscilação emocional e o desequilíbrio de seu personagem. Com destaque para a abusiva relação dele com Lupita. Vale destacar também as menores, mas não menos expressivas atuações de Paul Giamatti, como sempre sensacional, da maquiavélica Sarah Paulson, e da dupla Paul Dano e Benedict Cumberbach, que infelizmente tem pouco tempo em cena.
Melhor do que as atuações, no entanto, é o ar naturalista com que o longa recria as desventras de Solomon. Sem qualquer tipo de pressa narrativa, McQueen não se preocupa em perder alguns segundos dando destaque as expressões dos personagens, nem tão pouco em mostrar as reais condições de trabalho e vida dos escravos norte-americanos. Na verdade, o diretor faz questão de ressaltar o quão doloroso e degradante foi esse período. A forma natural como a obra destaca os açoites, os enforcamentos e toda a violência, seja física ou psicológica, é expressivamente devastadora para o espectador. Não menos impactante é a ênfase dada às alternativas degradantes que alguns escravos encontravam para sobreviver, quase todas ligadas a exploração sexual e a violência contra eles mesmos. Apresentando tudo isso de forma corriqueira, McQueen faz questão de deixar claro que enquanto um homem lutava contra a forca, outros brincavam e seguiam as suas vidas ao seu redor. E toda essa atmosfera natural, aliás, ganha ainda mais peso graças à bela fotografia assinada por Sean Bobbitt. Destacando a bucólica paisagem sulista, sempre luminosa e cheia de vida, o diretor britânico contrasta o harmônico cenário com a violência dos seus relatos,nos brindando com uma película esteticamente refinado. Tudo isso embalado pela incidental trilha sonora de Hans Zimmer, que acompanha todas as nuances do drama de forma sensível e delicada. Nos momentos mais densos, porém, McQueen opta - acertadamente - pela ausência da trilha sonora, o que sem dúvida cria um impacto maior do que qualquer bela composição.
Apesar da unidimensionalidade de alguns personagens incomodar um pouco, principalmente com relação aos escravocratas, 12 Anos de Escravidão é uma obra de impacto único. Apresentando a incrível história real de Solomon Northup, Steve McQueen não foge da responsabilidade ao promover uma obra definitiva sobre o tema. De forma completamente imparcial e crua, o diretor britânico captura toda a complexidade deste nefasto período histórico, destacando as verdadeiras diferenças entre viver e sobreviver. Criando, como um próprio personagem diz, "uma história incrível, mas de modo negativo".
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