Quanto mais absurdo melhor
Reconhecida como uma das mais rentáveis e populares franquias de ação da
atualidade, a série Velozes e Furiosos soube se reinventar ao longo dos últimos
dezessete anos. Inserida inicialmente num cenário bem específico, o marrento
submundo das corridas clandestinas, a saga estrelada por Vin Diesel e pelo
saudoso Paul Walker se aproximou gradativamente do escapista cinema de ação,
(re)iniciando um lucrativo ciclo com Velozes e Furiosos 5: Operação Rio. Embora
tenha se mantido fiel à temática base dos primeiros longas, o valor da família
dentro deste ambiente moralmente dúbio, a missão passou a ser outra. Os “pegas”
foram substituídos pela pancadaria e pelas mirabolantes perseguições. O quanto
mais absurdo melhor passou a ditar o rumo da franquia e a transformou num
produto atual aos olhos do grande público. Inserido neste contexto,
Velozes e Furiosos 8 se revela um continuação à altura dos três últimos títulos
da série. Por mais que não tenha o peso, o frescor e a coesão narrativa do seu
excelente antecessor, o filme dirigido por F. Gary Gray (Uma Saída de Mestre) empolga ao entregar
duas horas de puro entretenimento, nos brindando com alguns dos momentos mais
insanos e estupidamente divertidos da saga. O grande trunfo desta sequência,
porém, reside na perspicácia do realizador ao aproveitar os “novos” integrantes
desta disfuncional "família", principalmente a dupla Jason Statham e
Dwayne Johnson, adicionando novas possibilidades a uma fórmula que já apresenta sinais
de esgotamento.
Com roteiro assinado por Chris Morgan, um dos grandes responsáveis pela
retomada da franquia, Velozes e Furiosos 8 não se faz de rogado ao colocar
novamente a família no centro da história. Embora a repetição temática reduza o
impacto da continuação, o argumento é sagaz ao utilizar o vínculo entre os
personagens sob um prisma um pouco mais autêntico, tornando a mudança de lado
de Dominic Toretto (Vin Diesel) justificável aos olhos do público. Sem querer revelar
muito, o roteiro surpreende ao criar um 'plot' realmente crível, um sopro de
coerência dentro de um universo cada vez mais inverossímil e espetaculoso. Digo
mais, o arco pessoal do protagonista surge como um bem-vindo contraponto,
realçando brevemente o fator emocional numa película movida pela adrenalina,
pelo humor e pela ação incessante. Na trama, cansados de fugir, o casal Dom e
Letty (Michelle Rodriguez) resolve levar uma vida sossegada em solo cubano.
Estabelecido na região, o ex-criminoso é surpreendido com a aparição da
misteriosa Cipher (Charlize Theron), uma perigosa 'hacker' que usa dos seus
meios para convencê-lo a se voltar contra o seu grupo. Surpreendidos com a
postura do seu líder, Letty, Parker (Ludacris), Roman (Tyrese Gibson), Ramsey
(Nathalie Emmanuel) e Hobbs (Dwayne Johnson e o seu enorme carisma) são reunidos
pelo influente Sr. Ninguém (Kurt Russel, a vontade) para impedir que uma
perigosa arma nuclear caia em mãos erradas. Desta vez, no entanto, a grande
ameaça faz parte da família.
Eficaz ao estabelecer os motivos por trás da mudança de lado de Dom, F.
Gary Gray mostra inteligência ao investigar o impacto da traição dentro deste
unido grupo. Ciente que o foco não está nas questões íntimas, o realizador
é sucinto ao traduzir os conflitos de ordem pessoal, a maioria deles envolvendo
o casal de protagonistas, pontuando a frenética trama com momentos densos e
levemente tensos. Mesmo limitado pelo texto e pela falta de recursos dramáticos
de Vin Diesel, Gray é astuto ao jogar o foco na figura de Letty, dando a
'bad-ass' Michelle Rodriguez a oportunidade de adicionar elementos mais humanos
a sua personagem. Na verdade, enquanto a atriz texana se mostra mais a vontade
ao interiorizar os (rasos) dilemas afetivos defendidos pelo roteiro, o astro
californiano fica com a missão de reproduzir a raiva e a frieza do "velho"
Dom, nos fazendo enxergar o desconforto do herói sem grandes dificuldades.
Com Toretto “jogando” no outro lado, F. Gary Gray é igualmente
habilidoso ao dividir os holofotes entre os demais integrantes da trupe
Velozes. Reverente aos últimos filmes, o diretor é sagaz ao dialogar com o
passado da franquia, permitindo que os "novos" membros desta família
roubem a cena com os seus marcantes personagens. De longe o principal trunfo
narrativo da película, a ofensiva relação entre Hobbs e o dúbio Deckard (Jason
Statham, excelente), por exemplo, rende alguns dos melhores e mais engraçados
momentos da película, justamente por representar algo novo dentro desta
desgastada fórmula. Sem querer revelar muito, a sequência da prisão é
fantástica, o ponto alto da continuação. Somado a isso, o verborrágico Roman
desponta novamente como um eficiente alívio cômico, atestando o afiado tempo de
comédia de Tyresse Gibson e o viés humorístico do roteirista Chris Morgan.
Em contrapartida, Velozes e Furiosos 8 derrapa quando o assunto são as
conveniências narrativas. Por mais que a trama não perca o fôlego durante as suas
fluidas duas horas e dez de projeção, F. Gary Gray se escora em uma série de
soluções pouco inspiradas, confiando na boa vontade do espectador em diversos momentos.
Embora a mudança de conduta de Dom seja bem explicada, a tentativa de torna-lo
um traidor aos olhos dos seus amigos, por exemplo, não faz qualquer sentido, já
que nada o impedia de revelar a sua real situação para eles. Na tentativa de
justificar algumas destas opções, inclusive, o realizador testa a nossa
inteligência ao criar um didático 'plot twist', uma reviravolta que se
justifica, apenas, pela maneira com que dialoga com os dois últimos filmes da
saga. Nenhum destes problemas, entretanto, incomoda tanto quanto a caricata
vilã Cipher. Apesar do esforço da talentosa Charlize Theron, enérgica ao
traduzir a faceta mais cerebral e impulsiva da antagonista, a 'hacker' surge
com motivações fraquíssimas, uma figura rasa e unidimensional que só quer criar
o caos. Na verdade, Cipher até funciona dentro da proposta escapista defendida
pelo roteiro, a sua personagem é realmente odiosa, o ciberterrorismo rende situações interessantes, mas o resultado fica muito aquém das nossas
expectativas. Um enorme retrocesso, principalmente se comparada com os
irmãos Owen e Deckerd Shawn.
Equívocos que, diga-se de passagem, são gradativamente esquecidos quando nos deparamos com as espetaculares cenas de ação. Sem um pingo de vergonha, F.
Gary Gray abraça o escapismo com enorme energia, mantendo o elevado nível dos três últimos filmes ao testar os limites da física em sequências grandiosas
e inventivas. Impulsionado pela iluminada fotografia de Stephen F.
Windon (Star Trek: Sem Fronteiras), o realizador esbanja categoria tanto nas
insanas perseguições automobilísticas, quanto nos empolgantes embates físicos,
nos brindando com takes limpos e totalmente compreensíveis. Embora não tenha a
assinatura da dobradinha Justin Lin\James Wan, Gray brilha ao utilizar o
recurso da câmera lenta em prol do absurdo, realçando assim o aspecto mais
mirabolante por trás das impossíveis manobras e dos agressivos confrontos. Mesmo
após a cena do tanque em Velozes e Furiosos 6 e o "voo" entre os
prédios em Velozes e Furiosos 7, o diretor eleva o nível da brincadeira ao
entregar pelo menos três sequências memoráveis, entre elas a impressionante
chuva de carros e o estrondoso clímax envolvendo um submarino. Isso para não
citar o espetacular ataque ao avião, um momento enérgico e criativo
potencializado pelo ótimo senso de simultaneidade de Gray e pela excelente
montagem. O único senão visual, na verdade, fica pelo excessivo uso do CGI, um deslize
que se torna evidente, principalmente, na "rebelião" dos carros zumbis
em NY.
Narrativamente falho, Velozes e Furiosos 8 mantém o atual patamar da
série ao se render de vez ao maravilhoso (e mentiroso) mundo do Cinema de Ação. Ainda que o argumento tente criar um contexto mais sério e urgente, o
oitavo longa da série empolga no momento em que faz o impossível parecer
provável, se revelando assim uma continuação despretensiosa, envolvente e
tecnicamente impactante. Mais do que isso. Embora Vin DIesel siga forte no
comando da trupe, F. Gary Gray mostra que a franquia, em sua nova fase, já
estabeleceu os seus carismáticos novos personagens e pode sobreviver sem precisar apelar para o desgastado pano de
fundo familiar.
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