Os fantasmas da culpa
Dono de uma fisionomia comum e um estilo de atuar geralmente comedido,
Casey Affleck vem construindo uma filmografia singular em Hollywood. Ao
contrario do seu irmão mais velho, o popular Ben Affleck, o talentoso ator
preferiu se dedicar aos projetos menores e/ou independentes, daqueles que
dificilmente ganham eco junto ao grande público. Intenso e explosivo em cena,
Casey emplacou alguns excelentes trabalhos, entre eles o instigante Medo da
Verdade (2007), o elogiado O Assassinato de Jesse James (2007), o raivoso Tudo por Justiça (2013) e o doloroso Amor Fora da Lei (2013). É no desconfortável
Manchester à Beira-Mar, porém, que o ator encontra o personagem mais desafiador
da sua enxuta carreira. Conduzido com naturalismo por Kenneth Lonergan, o longa
incomoda ao desvendar o passado de um homem em busca de um recomeço. Com
diálogos secos, personagens reprimidos e um nervoso senso de humor, este
contido drama brilha ao traduzir o devastado estado de espirito do protagonista,
contornando os problemas de ritmo ao acompanhar a intimista relação entre um
carismático órfão e o seu apático tio.
Inserido num cenário tipicamente norte-americano, o argumento assinado
pelo próprio Kenneth Lonergan é magnífico ao revelar as nuances sentimentais
dos seus personagens dentro de um contexto masculinizado e emocionalmente
reprimido. Diante de temas essencialmente humanos, o roteiro esbanja realismo
ao arquitetar a complexa persona do seu protagonista, o errático Lee (Casey
Affleck), se esquivando do teor agridoce ao investigar os motivos por trás de
tamanha frieza. Esqueça, portanto, o aspecto redentor que geralmente acompanha
os filmes do gênero. Lonergan não está interessado nas respostas simples, nem
tão pouco nas soluções fáceis. Em Manchester à Beira-Mar, o peso do passado não
se esvai com um romance repentino ou uma afetuosa amizade. O processo é lento,
doloroso e tênue, uma experiência densa traduzida com espantosa sutileza ao
longo dos envolventes 135 minutos de projeção.
Na trama, após a morte do seu irmão (Kyle Chandler), Lee é obrigado a
largar o seu emprego como zelador em Boston e voltar para a sua pequena cidade.
Trazendo na bagagem algumas devastadoras lembranças, ele é pego de surpresa ao
descobrir que foi o escolhido para assumir os cuidados legais do seu
carismático sobrinho, o popular Patrick (Lucas Hedges). Completamente abalado,
Lee tenta convencer o jovem a partir rumo à Boston, mas logo percebe que ele
não tinha o mínimo interesse em deixar a região. Disposto a dar um pouco mais
de tempo ao jovem, o zelador resolve se estabelecer momentaneamente na cidade,
mas o que encontra são lembranças de um passado que ele luta para esquecer.
Fazendo um primoroso uso do silêncio, um elemento catalizador nas
comedidas sequências dramáticas, Kenneth Lonergan é cuidadoso ao estabelecer o
estado de espírito inerte do seu protagonista. Já nas primeiras cenas é
possível perceber que existe algo errado na vida de Lee, um homem solitário e
antissocial que carrega nas suas feições o olhar de alguém que perdeu o rumo. Através de cortes bruscos e angustiantes, o diretor é sagaz ao realçar o vazio presente na sua rotina, a sua frieza diante das
pessoas, expondo o desinteresse do personagem ao encurtar propositalmente algumas das suas sequências. Uma nítida quebra de ritmo que só amplia a sensação de desconforto em torno
da jornada de Lee. O grande trunfo de Manchester à Beira-Mar, porém, reside na
maneira com que o argumento consegue proteger os segredos envolvendo o passado
de Lee. Em meio aos diálogos ásperos sobre a dor da perda e o destino do
adolescente, Lonergan mostra inspiração ao sustentar os mistérios em torno do
reprimido protagonista, conflitos pessoais que são gradativamente desvendados a
partir de incisivos e bem orquestrados flasbacks. Lampejos de memória que são magnificamente
utilizados dentro da narrativa não linear, se associando intuitivamente ao presente
do protagonista. Sem querer revelar muito, a sequência em que descobrimos os
motivos por trás de tal comportamento é dilacerante, um momento devastador
potencializado pela eloquente trilha sonora clássica de Lesley Barber e pela
expressividade física de Casey Affleck.
Quando necessário, aliás, Kenneth Lonergan mostra delicadeza ao compor
as cenas mais contundentes, principalmente na relação de cumplicidade entre Lee
e Patrick. Com a opção de não prolongar a revelação em torno do passado do
protagonista, o realizador ganha mais tempo para se aprofundar neste
reencontro, flertando com elementos mais amenos ao expor a intimidade dos dois
personagens. Indo de encontro à atmosfera incomoda do restante da película,
quando os dois estão em cena o argumento ganha contornos mais sinceros e
afetuosos. Além de investigar o impacto do luto na rotina de tio e sobrinho,
Lonergan surpreende ao valorizar o humor por trás desta desajeitada relação,
uma pegada cômica por vezes nervosa que adiciona um tempero especial ao longa. Sem apelar para os clichês paternos, é interessante ver também a naturalidade
do diretor ao traduzir o comportamento do jovem Patrick, um adolescente mulherengo
que busca nos amigos a força para seguir a sua rotina. Uma reação aparentemente
indiferente, mas que dialoga com elementos humanos em momentos inadvertidos, como na
sequência em que o jovem entra em contato com as suas mais reprimidas emoções
ao simplesmente abrir a porta do seu congelador.
Na transição para o último ato, no entanto, Manchester à Beira-Mar patina em
torno da figura de Lee. Exageradamente preso ao protagonista, o argumento perde
ritmo ao subaproveitar as suas personagens femininas, entre elas a mãe de
Patrick, a reabilitada Elise (Gretchen Mol) e a ex-esposa do zelador, a abalada
Randi (Michelle Williams). Além disso, Kenneth Lonergan peca pelo exagero numa
cena pontual dentro do clímax, um momento melodramático e reducionista que não
parece combinar com esta realística obra. Nada que o talentoso elenco não
consiga contornar. Carregando no olhar a tristeza de Lee, Casey Affleck mostra
o seu usual comedimento ao absorver a dor e a inércia do seu personagem. Com um
tom de voz baixo e pouquíssimas palavras, o ator nos faz enxergar o aspecto
mais seco do zelador, um comportamento distante e instável que se torna
compreensível no momento em que conhecemos os segredos em torno do seu passado.
Não se engane, porém, com a aparente frieza emocional do protagonista.
Casey é sutil ao extrair a emoção em muitas destas sequências silenciosas, com
destaque para o singelo último abraço no seu irmão e o desconfortável
reencontro com a sua ex-mulher. Em resumo, uma atuação poderosa. Indo de
encontra ao viés intenso do seu parceiro de cena, o novato Lucas Hedges
adiciona energia ao longa na pele de popular Patrick. Completamente à vontade,
o jovem ator rouba a cena com o seu afiado tempo de comédia, esbanjando uma
excepcional química com Casey ao compor esta intimista relação fraternal.
Quando necessário, aliás, Hedges é igualmente maduro ao traduzir os conflitos
do seu personagem, ainda que o roteiro se mostre mais interessado em explorar o
impacto da perda sob o denso ponto de vista de Lee. Por fim, a excelente Michele
Williams precisa de apenas duas cenas para validar a sua presença no filme, se
tornando uma peça chave dentro do clímax.
Contando ainda com a gélida e naturalista fotografia de Jody Lee Lipes
(Descompensada), impecável ao exprimir a sensação de realidade que permeia o
longa, Manchester à Beira-Mar é um longa cru que emociona à sua maneira. Embora
o ritmo gradativo possa soar incomodo aos olhos do espectador mais desavisado,
Kenneth Lonergan é incisivo ao investigar os efeitos do luto e da culpa dentro
de um contexto realmente original, numa obra que, tal quais os seus
embrutecidos personagens, se esforça para reprimir as lágrimas e o
sentimentalismo.
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