quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Manchester à Beira-Mar

Os fantasmas da culpa

Dono de uma fisionomia comum e um estilo de atuar geralmente comedido, Casey Affleck vem construindo uma filmografia singular em Hollywood. Ao contrario do seu irmão mais velho, o popular Ben Affleck, o talentoso ator preferiu se dedicar aos projetos menores e/ou independentes, daqueles que dificilmente ganham eco junto ao grande público. Intenso e explosivo em cena, Casey emplacou alguns excelentes trabalhos, entre eles o instigante Medo da Verdade (2007), o elogiado O Assassinato de Jesse James (2007), o raivoso Tudo por Justiça (2013) e o doloroso Amor Fora da Lei (2013). É no desconfortável Manchester à Beira-Mar, porém, que o ator encontra o personagem mais desafiador da sua enxuta carreira. Conduzido com naturalismo por Kenneth Lonergan, o longa incomoda ao desvendar o passado de um homem em busca de um recomeço. Com diálogos secos, personagens reprimidos e um nervoso senso de humor, este contido drama brilha ao traduzir o devastado estado de espirito do protagonista, contornando os problemas de ritmo ao acompanhar a intimista relação entre um carismático órfão e o seu apático tio. 



Inserido num cenário tipicamente norte-americano, o argumento assinado pelo próprio Kenneth Lonergan é magnífico ao revelar as nuances sentimentais dos seus personagens dentro de um contexto masculinizado e emocionalmente reprimido. Diante de temas essencialmente humanos, o roteiro esbanja realismo ao arquitetar a complexa persona do seu protagonista, o errático Lee (Casey Affleck), se esquivando do teor agridoce ao investigar os motivos por trás de tamanha frieza. Esqueça, portanto, o aspecto redentor que geralmente acompanha os filmes do gênero. Lonergan não está interessado nas respostas simples, nem tão pouco nas soluções fáceis. Em Manchester à Beira-Mar, o peso do passado não se esvai com um romance repentino ou uma afetuosa amizade. O processo é lento, doloroso e tênue, uma experiência densa traduzida com espantosa sutileza ao longo dos envolventes 135 minutos de projeção.


Na trama, após a morte do seu irmão (Kyle Chandler), Lee é obrigado a largar o seu emprego como zelador em Boston e voltar para a sua pequena cidade. Trazendo na bagagem algumas devastadoras lembranças, ele é pego de surpresa ao descobrir que foi o escolhido para assumir os cuidados legais do seu carismático sobrinho, o popular Patrick (Lucas Hedges). Completamente abalado, Lee tenta convencer o jovem a partir rumo à Boston, mas logo percebe que ele não tinha o mínimo interesse em deixar a região. Disposto a dar um pouco mais de tempo ao jovem, o zelador resolve se estabelecer momentaneamente na cidade, mas o que encontra são lembranças de um passado que ele luta para esquecer.


Fazendo um primoroso uso do silêncio, um elemento catalizador nas comedidas sequências dramáticas, Kenneth Lonergan é cuidadoso ao estabelecer o estado de espírito inerte do seu protagonista. Já nas primeiras cenas é possível perceber que existe algo errado na vida de Lee, um homem solitário e antissocial que carrega nas suas feições o olhar de alguém que perdeu o rumo. Através de cortes bruscos e angustiantes, o diretor é sagaz ao realçar o vazio presente na sua rotina, a sua frieza diante das pessoas, expondo o desinteresse do personagem ao encurtar propositalmente algumas das suas sequências. Uma nítida quebra de ritmo que só amplia a sensação de desconforto em torno da jornada de Lee. O grande trunfo de Manchester à Beira-Mar, porém, reside na maneira com que o argumento consegue proteger os segredos envolvendo o passado de Lee. Em meio aos diálogos ásperos sobre a dor da perda e o destino do adolescente, Lonergan mostra inspiração ao sustentar os mistérios em torno do reprimido protagonista, conflitos pessoais que são gradativamente desvendados a partir de incisivos e bem orquestrados flasbacks. Lampejos de memória que são magnificamente utilizados dentro da narrativa não linear, se associando intuitivamente ao presente do protagonista. Sem querer revelar muito, a sequência em que descobrimos os motivos por trás de tal comportamento é dilacerante, um momento devastador potencializado pela eloquente trilha sonora clássica de Lesley Barber e pela expressividade física de Casey Affleck.


Quando necessário, aliás, Kenneth Lonergan mostra delicadeza ao compor as cenas mais contundentes, principalmente na relação de cumplicidade entre Lee e Patrick. Com a opção de não prolongar a revelação em torno do passado do protagonista, o realizador ganha mais tempo para se aprofundar neste reencontro, flertando com elementos mais amenos ao expor a intimidade dos dois personagens. Indo de encontro à atmosfera incomoda do restante da película, quando os dois estão em cena o argumento ganha contornos mais sinceros e afetuosos. Além de investigar o impacto do luto na rotina de tio e sobrinho, Lonergan surpreende ao valorizar o humor por trás desta desajeitada relação, uma pegada cômica por vezes nervosa que adiciona um tempero especial ao longa. Sem apelar para os clichês paternos, é interessante ver também a naturalidade do diretor ao traduzir o comportamento do jovem Patrick, um adolescente mulherengo que busca nos amigos a força para seguir a sua rotina. Uma reação aparentemente indiferente, mas que dialoga com elementos humanos em momentos inadvertidos, como na sequência em que o jovem entra em contato com as suas mais reprimidas emoções ao simplesmente abrir a porta do seu congelador.


Na transição para o último ato, no entanto, Manchester à Beira-Mar patina em torno da figura de Lee. Exageradamente preso ao protagonista, o argumento perde ritmo ao subaproveitar as suas personagens femininas, entre elas a mãe de Patrick, a reabilitada Elise (Gretchen Mol) e a ex-esposa do zelador, a abalada Randi (Michelle Williams). Além disso, Kenneth Lonergan peca pelo exagero numa cena pontual dentro do clímax, um momento melodramático e reducionista que não parece combinar com esta realística obra. Nada que o talentoso elenco não consiga contornar. Carregando no olhar a tristeza de Lee, Casey Affleck mostra o seu usual comedimento ao absorver a dor e a inércia do seu personagem. Com um tom de voz baixo e pouquíssimas palavras, o ator nos faz enxergar o aspecto mais seco do zelador, um comportamento distante e instável que se torna compreensível no momento em que conhecemos os segredos em torno do seu passado.


Não se engane, porém, com a aparente frieza emocional do protagonista. Casey é sutil ao extrair a emoção em muitas destas sequências silenciosas, com destaque para o singelo último abraço no seu irmão e o desconfortável reencontro com a sua ex-mulher. Em resumo, uma atuação poderosa. Indo de encontra ao viés intenso do seu parceiro de cena, o novato Lucas Hedges adiciona energia ao longa na pele de popular Patrick. Completamente à vontade, o jovem ator rouba a cena com o seu afiado tempo de comédia, esbanjando uma excepcional química com Casey ao compor esta intimista relação fraternal. Quando necessário, aliás, Hedges é igualmente maduro ao traduzir os conflitos do seu personagem, ainda que o roteiro se mostre mais interessado em explorar o impacto da perda sob o denso ponto de vista de Lee. Por fim, a excelente Michele Williams precisa de apenas duas cenas para validar a sua presença no filme, se tornando uma peça chave dentro do clímax.


Contando ainda com a gélida e naturalista fotografia de Jody Lee Lipes (Descompensada), impecável ao exprimir a sensação de realidade que permeia o longa, Manchester à Beira-Mar é um longa cru que emociona à sua maneira. Embora o ritmo gradativo possa soar incomodo aos olhos do espectador mais desavisado, Kenneth Lonergan é incisivo ao investigar os efeitos do luto e da culpa dentro de um contexto realmente original, numa obra que, tal quais os seus embrutecidos personagens, se esforça para reprimir as lágrimas e o sentimentalismo. 

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